Por favor, coloque seu dispositivo em posição vertical
No aniversário de um disco que mudou a música, o Estadão apresenta uma jornada pela sonoridade da 1ª banda de metal
Arraste para continuar
Essas badaladas que você está ouvindo agora, ecoando em meio à chuva e aos trovões, são parte da introdução do primeiro disco do Black Sabbath.
Quando esse sino tocou pela primeira vez, um novo estilo musical tinha acabado de nascer: o heavy metal.
Lançado em uma sexta-feira, 13 de fevereiro de 1970, o disco exibia uma sonoridade diferente do blues rock distorcido que as bandas mais pesadas da época tocavam.
Grupos como Led Zeppelin e Cream já tinham aumentado o volume do rock 'n roll britânico, tornando a música dançante dos Beatles algo mais pesado e enérgico.
O Black Sabbath, porém, rompeu com a cadência despreocupada de seus contemporâneos. Em suas composições se destacam sons ruidosos, que foram combinados a uma estética sinistra e misteriosa.
A faixa-título do disco, que está tocando agora, encapsula a proposta: ela começa de forma lenta e pesada e evolui até atingir um ritmo veloz.
A melodia, sobreposta aos lamentos chorosos e monotônicos do vocalista Ozzy Osbourne, dialoga com a letra. Nela, o narrador se encontra com uma figura diabólica disposta a devastar o mundo todo.
Os responsáveis por essa sonoridade eram quatro jovens da classe trabalhadora de Birmingham, cidade industrial no centro da Inglaterra.
Para autores como Andrew L. Cope, pesquisador que dedicou sua tese de doutorado ao som da banda, a atmosfera lúgubre do local e a falta de perspectivas de futuro ajudaram a moldar um novo gênero musical que se baseava em uma forma agressiva de tocar.
Os membros da banda cresceram em Aston, região da cidade que foi muito afetada por bombardeios durante a 2ª Guerra
Foto: Phyllis Nicklin (1958). Licença CC.
A área era considerada um lugar duro, que não oferecia muitas esperanças além de um emprego industrial
Foto: Phyllis Nicklin (1968). Licença CC.
Ozzy, que acabaria se tornando o membro mais famoso e controverso da banda, teve uma juventude ilustrativa da situação da cidade.
Ele abandonou a escola aos 15 anos. Trabalhou como pedreiro, encanador, operário em uma fábrica de carros e até em um abatedouro. Antes de virar vocalista, chegou a passar seis semanas preso por furtar roupas.
“Estávamos bravos com isso [...] e pensamos: 'vamos assustar o mundo inteiro com música'”
Ozzy Osbourne, vocalista, em entrevista à revista Q Classic
Foto: Black Sabbath, divulgação
O baterista Bill Ward diz que até mesmo o barulho das fábricas e indústrias foi uma influência significativa para a banda.
Ele se destacou por tocar de forma agressiva e com alto volume, o que contribuía para a violência sonora – até então sem precedentes – do grupo. Sua performance raivosa, relata, era inspirado no som do maquinário.
O estilo ruidoso aparece em faixas como The Wizard, que evidencia como o Black Sabbath perverteu o blues rock e transformou-o em um som ameaçador.
“Você conseguia ouvir os pistões caindo... E eu ficava batucando, colocando ritmo nas batidas”
Bill Ward, baterista, em depoimento no documentário 7 Ages of Rock
Foto: Warner Bros. Studio
Além de oferecer uma inspiração sombria, o estilo de vida industrial de Birmingham causou uma mudança mais palpável na sonoridade do grupo.
O guitarrista Tony Iommi, principal compositor da banda, foi vítima de um acidente de trabalho que deformou os dedos de sua mão direita.
Assim, ele foi forçado a afinar o instrumento alguns tons abaixo, o que deixa as cordas mais soltas e menos resistentes ao toque. Como consequência, surgiu um som mais grave e – como dá para ouvir – distorcido.
“Me disseram que eu nunca ia tocar de novo, mas eu não ia aceitar isso”
Tony Iommi, guitarrista, em entrevista à BBC
Foto: Carl Lender. Licença CC.
A sonoridade raivosa encontrou companhia nas letras do grupo, que eram escritas pelo baixista Geezer Butler.
Todas as composiçõs originais do disco – que traz também dois covers de grupos de blues – versam sobre o oculto ou sobre guerra e injustiças.
Por exemplo, Behind The Wall of Sleep, que está tocando agora, fala sobre um dos pesadelos que atormentavam o sono do músico. Butler imaginava que seus sonhos poderiam ser prenúncios da morte.
“Eu estava cercado por guerra e religião. Quando comecei a escrever, estava me rebelando contra tudo com o que cresci”
Geezer Butler, baixista, em entrevista à revista Metal Hammer
Foto: Warner Bros. Studio
Foi Butler que insistiu em trocar o nome da banda – antes, o grupo já havia se chamado Polka Tulk Blues Band e Earth.
A inspiração para investir em uma estética maligna veio do cinema. Pouco depois de terminar um ensaio com o grupo, Butler viu uma fila enorme que esperava para assistir a um filme de terror.
Se essas pessoas estavam dispostas a pagar para ver um filme assustador, por que não estariam dispostas a pagar por música assustadora?
O filme era o italiano I tre volti della paura. Na tradução literal, a obra deveria se chamar 'As Três Faces do Medo', mas virou 'Black Sabbath' na versão em inglês
Além da faixa-título, outra canção do álbum faz referência direta ao demônio: N.I.B., cuja letra narra um episódio em que o diabo se apaixona por uma mortal.
O verso mais marcante da canção – “My name is Lucifer, plase take my hand!” – sintetiza a imagem controversa que a banda construiu e que ajudou o lançamento a atingir sucesso comercial: entre música e polêmica, o disco ficou em 8º lugar nas paradas britânicas.
Essa estética se tornaria um marco da banda até o fim da carreira – embora nenhum dos outros discos tenha uma capa envolvida em tanto mistério quanto essa.
A soma do barulho e da associação mal-disfarçada às forças do mal inspiraram várias bandas pesadas que vieram depois, do Iron Maiden ao Slayer e além.
Em retrospectiva, a tática funcionou. Porém, na época, os críticos não economizaram nas resenhas negativas e irônicas.
“O álbum inteiro é uma droga. Apesar dos títulos sombrios e das letras idiotas que parecem um tributo do Vanilla Fudge ao Aleister Crowley, o disco não tem nada de espiritualismo, ocultismo ou de qualquer coisa além de clichês do Cream mal-executados”
Lester Bangs, crítico musical, em uma resenha do álbum publicada na revista Rolling Stone logo depois do lançamento
Na mesma resenha, Lester elogiou o trabalho de uma banda chamada Gun. Hoje obscuro, o grupo deixou de existir já no ano em que a crítica foi publicada. As letras que ele considerava idiotas e os títulos sombrios, porém, tinham vindo para ficar e seriam adotados por um caminhão de artistas a partir dali.
Entretanto, até mesmo membros do Black Sabbath – geralmente reverenciados como mestres e anciãos pelo metaleiros – já declararam que se sentem desconfortáveis quando são associados aos sons mais pesados cuja gênese influenciaram.
“Que parte disso é inspirada em nós? Uma parte é só gente brava gritando no microfone”
Ozzy Osbourne, em entrevista à CNN
Foto: Carl Lender. Licença CC.
“Muito [do Black Sabbath] tem raízes no blues e na improvisação. As pessoas que vieram nos passos deles não têm essas mesmas habilidades”
Rick Rubin, produtor do último disco da banda, em entrevista para a revista Rolling Stone
No lado B do disco de estreia – vale sempre lembrar que, na época do vinil, as gravações tinham dois lados – essas raízes ficam bem evidentes.
Evil Woman – cover do Crow que está tocando há algum tempo – é a primeira de uma série de faixas que revelam muito do lado bluesmen do grupo.
Logo em seguida, em Sleeping Village, dá as caras a capacidade de improvisação de que o produtor Rick Rubin fala.
Depois de uma introdução lenta em que Ozzy Osbourne se limita a falar quatro frases, a música se desmancha em um solo breve.
A música do Black Sabbath não apenas tem ecos de blues e jazz, mas também incorpora um elemento importante da cultura desses gêneros: de acordo com Iommi, o disco todo foi gravado praticamente no improviso, em menos de dois dias.
A banda tocou junta no estúdio, quase como em uma jam. Em contraste, o mais comum é que as gravações de rock e metal sejam feitas de forma separada para cada instrumento.
Warning, a penúltima peça do álbum, bebe ainda mais dessa fonte.
A canção é um cover do projeto solo de Aynsley Dunbar, baterista de Liverpool que tocou com nomes como Jeff Beck, David Bowie e Frank Zappa.
Novamente, depois de um breve segmento cantado, a banda se dedica a improvisos, solos e exibicionismo técnico. A coisa toda dura mais de dez minutos.
Antes dos 38 minutos de duração do disco chegarem ao fim, porém, ainda dá tempo da banda voltar ao nascente heavy metal.
Wicked World retoma os temas e ritmos da primeira metade do álbum e serve como prenúncio para o próximo lançamento do grupo, Paranoid, que chegaria ao mercado pouco mais de seis meses depois.
Nele, o Sabbath ficaria ainda mais grave, mais distorcido e mais pesado. Isso, porém, já é assunto para outra retrospectiva.
Andrew L. Cope. Black Sabbath and The Rise of Heavy Metal Music (2010)
BBC. Black Sabbath: 'We hated being a heavy metal band'
BBC Two. 7 Ages of Rock: Never Say Die
Brumpic. The A-Z Of Phyllis Nicklin - Aston
Metal Hammer. Black Sabbath's Geezer Butler: My Life Story
Rolling Stone. Resenha do disco escrita por Lester Bangs
Rolling Stone. Black Sabbath on Sixties Origins: ‘We Were Rejected Again and Again’
Reportagem, design e desenvolvimento:
Rodrigo Menegat
Editor assistente multimídia:
Carlos Marin
Editora de infografia multimídia:
Regina Elizabeth
Editor executivo:
Fábio Sales
Todas as músicas tocadas neste especial, exceto a introdução da faixa Black Sabbath, são pré-visualizações oferecidas pelo Spotify.