Reportagem e edição: Ana Carolina Sacoman / Ilustrações e videográfico: Marcos Müller / Tradução: Ana Carolina Sacoman e Marcelo Godoy
6 de abril de 2019 | 15h
Vinte e cinco anos atrás, um pequeno e desconhecido país no coração da África mergulhava no primeiro do que seriam cem dias de caos e escuridão. Assim que o avião que levava seu presidente, Juvénal Habyarimana, foi abatido por um míssil, às 20h26 de quarta-feira, 6 de abril de 1994, ruas e estradas começaram a ser bloqueadas por assassinos armados com facões e machetes. Kigali, a capital, não dormiu naquela noite, tomada pelo ódio propagado pela Radio Télévision Libre des Mille Collines (RTLM), onde ministros do governo foram pedir o extermínio dos tutsis, etnia minoritária no país dos hutus. Quase conseguiram: 800 mil pessoas, de uma população total de 7 milhões de habitantes, foram assassinadas em pouco mais de três meses. Igrejas, escolas e hospitais viraram cenários de chacinas, enquanto o mundo assistia a tudo calado. Ruanda nunca mais seria apenas um pequeno e desconhecido país no coração da África.
Os hutus sempre foram maioria - cerca de 85% da população -, mas a minoria tutsi governou Ruanda durante séculos (havia ainda um terceiro grupo, os twas, que correspondiam a 1% dos habitantes). Em 1959, os hutus derrubam a monarquia tutsi e, em 1962, declaram independência da Bélgica. Começam os conflitos esporádicos e leis restritivas aos tutsis são aprovadas. Em 1973, é instituída uma política de cotas nas escolas e no serviço público: como eram minoria, os tutsis mal podiam trabalhar ou estudar e episódios de pequenos grupos assassinados em localidades mais ou menos isoladas ou de pilhagem de suas casas não eram exatamente novidade.
“O genocídio contra os tutsis foi gerado pela ideologia do ódio e da discriminação, ensinada desde o fim dos anos 1950. Além disso, a violência e os assassinatos tendo os tutsis como alvo nunca foram punidos, deixando a impressão de que a minoria tutsi é formada por cidadãos de segunda classe e bodes expiatórios de todo mal feito ”, afirma Jean Damascene Bizimana, secretário executivo da Comissão Nacional de Luta contra o Genocídio (CNLG), organização permanente criada em 2007 para preservar a memória do massacre e combater a apologia ao genocídio, hoje crime previsto em lei.
A partir de 1990, a Frente Patriótica de Ruanda (FPR), de maioria tutsi e formada por exilados em Uganda, invade Ruanda, situação que dura até 1993, quando um acordo de paz com o governo hutu de Habyarimana é estabelecido – e nunca cumprido. Nas entranhas do poder, o plano de extermínio começa a ser gestado. “O genocídio foi planejado com a intenção de exterminar todos os tutsis e apagar as evidências”, diz Bizimana. A derrubada do avião de Habyarimana foi a senha para o início da matança.
Na manhã seguinte, 7 de abril, a primeira-ministra, Agathe Uwilingiyimana, considerada uma hutu moderada, é assassinada dentro de casa por homens da guarda presidencial, junto com dez soldados belgas das Forças de Paz da ONU que faziam sua segurança. Ficou claro que ninguém estaria a salvo. Milícias hutus, os interahamwe, se espalham, fortemente armadas, pelo país.
Em poucos dias, a situação já havia saído do controle: entre 14 e 15 de abril, nada menos do que 10 mil pessoas são massacradas dentro das igrejas de Nyamata e N’tarama, hoje dois memoriais do genocídio. Antes disso, quase todos os estrangeiros já haviam deixado Ruanda, resgatados por suas embaixadas - o missionário americano Carl Wilkens é uma das poucas exceções. “Se os ruandeses precisavam de um parceiro, foi quando o genocídio contra os tutsis começou. Tragicamente, no entanto, foi quando os parceiros estrangeiros partiram”, diz. “Eu e minha mulher decidimos que não poderíamos deixar amigos ruandeses para trás, sabendo que seriam mortos.” Ela foi com os filhos para o Quênia. Ele permaneceu no meio do conflito em Ruanda. “Nunca me arrependi dessa decisão.”
Em 21 de abril, é a vez de a Força da Paz da ONU, comandada pelo general canadense Roméo Dallaire, remover quase todo seu efetivo do país: ficam 250 soldados, de um total inicial de 2,5 mil. A essa altura, corpos de homens, mulheres, crianças e idosos são deixados nas ruas, aos montes. Mulheres ainda são sistematicamente estupradas pelos milicianos - calcula-se que 250 mil foram violentadas e 5 mil crianças tenham sido geradas dessa forma.
Vinte dias após o início da matança, organizações humanitárias chamam o que acontece em Ruanda de genocídio - o que só é admitido pela comunidade internacional em 17 de maio. “Ignorou-se o objetivo político da manutenção do poder pelos hutus, naturalizando o conflito, ao defini-lo como tribal, com raízes de ódios ancestrais e, por isso, quase impossível de ser resolvido”, diz Leila Leite Hernandez, professora de História da África e Diretora do Centro de Estudos Africanos da USP. Além disso, lembra a professora, o fracasso da intervenção militar americana na Somália, poucos meses antes do início da matança em Ruanda, explica a relutância do governo de Bill Clinton em intervir novamente na África. “Uma terceira razão foi a decisão de intervir quando houvesse interesse econômico e político efetivo, e não apenas fazendo uma missão de paz para defender os direitos humanos”, afirma Leila.
Para Lyal S. Sunga, professor do Instituto Raoul Wallenberg de Direitos Humanos localizado em Lund, na Suécia, “é possível que Ruanda, de pouco valor estratégico para as grandes potências, atraísse menos interesse do que deveria”. “As elites políticas e empresariais em países poderosos ainda classificam os direitos humanos muito atrás de petróleo ou outros depósitos minerais em lugares como a Arábia Saudita e a Venezuela.” A convite das Nações Unidas, ele integrou uma equipe criada em julho de 1994 para investigar responsabilidades criminais cometidas durante o genocídio. Chegou a Ruanda no fim de outubro de 1994. “Nunca vou me esquecer do que vi lá.”
Nos primeiros dias de maio, homens da Frente Patriótica de Ruanda (FPR) se aproximam da fronteira com a Tanzânia, o que provoca a fuga de milhares de hutus para campos de refugiados, por medo de represálias. No fim do mês, os rebeldes tomam o aeroporto da capital. Parte de Kigali e outras localidades próximas já haviam sido ocupadas pelas forças comandadas pelo general Paul Kagame, para onde a ONU mandava quem conseguia resgatar. Odette Nyiramilimo e sua família foram alguns deles.
Refugiada por um mês com outras mil pessoas dentro do Hotel des Mille Collines - que no cinema virou Hotel Ruanda - e cercada pelos assassinos que eram constantemente subornados para não entrar, a hoje senadora Odette lembra da sensação ao chegar ao lugar: “Na minha opinião, estava tudo bem, mesmo que fôssemos mortos, pois pelo menos seríamos mortos junto com outras pessoas”.
Do outro lado da capital, mais de 400 pessoas também resistiam às investidas dos assassinos no orfanato comandado por Damas Gisimba. Sem água, luz e com pouca comida, viveram por três meses em uma situação-limite. “No começo, dei dinheiro aos milicianos que nos atacaram, para que se mantivessem longe”, conta Gisimba. “Depois não sabia mais o que fazer.” Ele e as 405 pessoas abrigadas foram salvas com a ajuda de Carl Wilkens, o americano que ficou no país. “Sem ele, teriam nos atacado e matado, como fizeram com todo mundo.”
Em junho, os soldados da FPR seguem pelo interior do país, mas os massacres não param. O Conselho de Segurança da ONU então aprova a intervenção francesa em Ruanda e no dia 23 começa a Operação Turquesa, com 2,5 mil soldados. Para críticos da atuação francesa, o objetivo era mais dar suporte à fuga de assassinos para outros países do que acabar com o conflito.
“Muito se falou sobre o papel do governo francês de 1994 (de François Mitterrand). Nós não cessamos de denunciar a cumplicidade política, diplomática e militar com o governo do presidente Habyarimana, depois com o governo interino, que cometeu o genocídio”, diz Alain Gauthier. Junto com a mulher, Dafroza, ele fundou o Coletivo de Partes Civis para Ruanda, com o objetivo de reunir provas e levar fugitivos a julgamento. Relatório de 2018 da Promotoria de Ruanda mostra que ainda hoje há 801 acusações contra fugitivos emitidas para vários países do mundo - e ignoradas.
Julho de 1994 chega ainda sem uma solução para o genocídio. Rebeldes da FPR tomam completamente Kigali, a capital, no dia 4 e, no dia 6, criam o governo de Unidade Nacional de Ruanda. Os EUA de Bill Clinton não o reconhecem, mas o conflito é dado por encerrado no dia 19 daquele mês, quando a FPR declara ter tomado as principais cidades do país. O período é marcado pela fuga em massa de hutus para campos de refugiados da República Democrática do Congo (na época, Zaire) - o de Goma chegou a ser considerado o maior do mundo -, onde muitos morrem em epidemias de cólera ou em ataques periódicos dos homens da FPR. Dos pouco mais de 7 milhões de habitantes, Ruanda começa 1995 com 5,9 milhões - 70% deles, mulheres.
Ainda no fim de 1994 é criado o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (ICTR, na sigla em inglês), em Arusha, na Tanzânia, com o objetivo de julgar os mandantes das matanças: políticos, jornalistas, empresários e religiosos, entre outros. O caso de Jean-Paul Akayesu, político do Movimento Republicano Nacional por Democracia e Desenvolvimento (MRND) e prefeito da Comuna de Taba, condenado em 2001 à prisão perpétua, foi o primeiro em que uma Corte internacional considerou estupro e violência sexual como formas de perpetração de genocídio.
“Isso foi particularmente importante porque acabou sendo uma oportunidade para se refletir sobre o que o estupro realmente significa para a vítima”, conta o juiz Vagn Joensen, ex-presidente do Tribunal Penal Internacional para Ruanda e hoje juiz do Tribunal Residual da ONU. “O julgamento do caso Akayesu determinou que ‘como a tortura, o estupro é usado com propósitos como intimidação, degradação, humilhação, discriminação, punição, controle e destruição de uma pessoa’”, afirma Joensen.
Ele atuou no ICTR de 2007 até a conclusão dos trabalhos, em 2015. Nesse período, entre outros casos, julgou o de Édouard Karemera, ex-ministro do Interior e vice-presidente do MRND, em que, também pela primeira vez na história, concluiu-se que o estupro é uma “consequência previsível” da campanha de genocídio. Para Joensen esse foi, de longe, o caso mais complicado. “Lidamos com um maior número de acusados, bem como um maior número de eventos (além de Karemera, foram julgados Mathieu Ngirumpatse, presidente do MRND, condenado à prisão perpétua, e Joseph Nzirorera, secretário-geral do mesmo partido e presidente do Parlamento de Ruanda, que morreu antes de ser condenado). Além disso, os acusados não eram os perpetradores físicos dos crimes, mas os líderes do partido político predominante, que controlava os militares, a polícia e a milícia juvenil, os interahamwe, que foram considerados a força motriz na execução do genocídio”, diz Joensen. “Assim, a tarefa do tribunal era determinar se os acusados, por meio de seus atos e omissões, poderiam ser responsabilizados pela campanha genocida fisicamente levada a cabo por outros.”
Em 20 anos de trabalhos, foram julgadas 93 pessoas, com 64 condenações, incluindo as de figuras influentes, como o ex-primeiro-ministro Jean Kambanda e Théoneste Bagosora, ex-chefe de Gabinete do Ministério da Defesa. Por outro lado, o tribunal internacional determinou absolvições polêmicas, como a de Protais Zigiranyirazo, ex-governador da Província de Ruhengeri e irmão das ex-primeira-dama Agathe Habyarimana, acusado de ordenar bloqueios nas estradas para revista e morte de tutsis.
Em outra frente, o Poder Judiciário de Ruanda é reconstruído para levar a julgamento milhões de casos criminais. “Havia restado, no fim de 1994, apenas cerca de 50 advogados e cinco juízes em todo o país”, conta o juiz Joensen. Em 2002, o governo reativa os tribunais “gacaca” que em kinyarwanda, a língua local, significa “justiça na grama”. “Antes do colonialismo, as cortes gacaca eram um instrumento de mediação comunal e de resolução de conflitos, conduzidas pelos anciões dos vilarejos, que ouviam as partes envolvidas e faziam com que chegassem a uma solução amigável”, diz Jean Damascene Bizimana, da Comissão Nacional de Luta contra o Genocídio.
“Os tribunais gacaca foram capazes de lidar com um enorme acúmulo de casos com uma fração do custo dos tribunais internacionais. Os julgamentos também individualizaram responsabilidades, minimizando assim a tendência a demonizar um grupo inteiro”, diz o juiz Joensen. Críticos do sistema apontam o despreparo dos juízes e a falta de garantias de direitos dos acusados como os principais problemas dessas Cortes locais, que encerraram os trabalhos em 2012, depois de analisar 1,9 milhão de casos.
Hoje a economia de Ruanda cresce em ritmo acelerado - 8,9% de 2017 para 2018 -, apesar de 16% de sua população ainda viver abaixo da linha da pobreza (com menos de US$ 1,90 por dia), e do país depender de ajuda externa. É considerado um dos lugares mais seguros da África e também um dos mais estáveis politicamente. O presidente, Paul Kagame, ex-líder rebelde da FPR, está em seu terceiro mandato, reeleito em 2017, e um referendo de 2015 tornou possível sua reeleição por mais duas vezes. Com isso, pode tentar garantir a permanência no poder até 2034.
Nas duas décadas e meia desde o fim dos massacres, o governo promulgou várias leis contra crimes relacionados ao genocídio. A Constituição de 2003 traz a proibição à apologia e à negação do genocídio. Políticas de reconciliação vetam as diferenciações entre hutus e tutsis - que antes apareciam nas cédulas de identidade - e grupos de apoio a assassinos e sobreviventes promoviam, até pouco tempo atrás, sessões públicas de perdão, um exercício nem sempre fácil.
“Perdoar pressupõe que há um pedido de perdão. Por ora, só podemos nos felicitar com o trabalho de reconciliação iniciado originalmente pelas próprias vítimas”, diz a escritora Scholastique Mukasonga, que perdeu 37 parentes, entre pai, mãe e irmãos. Ela sobreviveu porque vivia fora do país. Para a também escritora Immaculée Ilibagiza, o perdão foi uma forma de se reconciliar também consigo. Em mais de 90 dias presa em um banheiro para escapar dos ataques que também exterminaram praticamente toda a sua família, iniciou ali mesmo, enquanto era procurada pelos interahamwe, o exercício da difícil reconciliação. “Pedi a Deus que me ajudasse a perdoá-los. Já não conseguia rezar o Pai-Nosso, pois pulava aquela parte que diz ‘perdoai a quem nos tem ofendido’.”
Junto com leis e punições, há também um trabalho de educação, com cursos sobre o genocídio incorporados aos currículos das escolas, do ensino secundário até a universidade, em um esforço para, além de evitar novos confrontos no futuro, internalizar nos cidadãos que a coabitação pacífica depois do que aconteceu no país é uma necessidade. “As pessoas simplesmente são o que são, hutus, tutsis, não tem diferença”, diz Axana Uwimana, ruandesa que veio junto com sua família para o Brasil ainda criança e só voltou ao país natal há seis anos. “Para o ruandês, ele é apenas isso: ruandês.”
Vinte e cinco anos depois, oito pessoas contaram ao Estado histórias de perdas, perdão, coragem, busca por Justiça e o que viram então e agora em Ruanda.
“Ouvi quando os assassinos chamaram meu nome. Estavam do outro lado da parede, menos de 2,5 centímetros de gesso e madeira nos separavam. Suas vozes eram frias, duras e decididas: ‘Ela está aqui. Sabemos que está aqui em algum lugar, tratem de encontrá-la, encontrem Immaculée’. ‘Já matei 399 baratas’, disse um deles. ‘Com Immaculée serão 400. Esse é um bom número para se matar’.”do livro Sobrevivi para Contar - O poder da fé me salvou de um massacre
Immaculée Ilibagiza tinha apenas 21 anos quando passou 91 dias escondida em um banheiro de 1,20 metro de comprimento por 1 metro de largura com outras sete mulheres, sem poder falar nem tomar banho, dividindo um único prato de comida por dia. Também não havia espaço para todas se sentarem, e as mulheres tinham de se revezar. A luz do dia entrava por uma pequena janela basculante, no alto da parede, coberta por uma cortina vermelha, e a descarga só podia ser acionada quando alguém na casa também assim o fizesse. Immaculée entrou ali com 52 quilos e saiu com 29. Ela foi a única pessoa de sua família a conseguir abrigo, na casa de um pastor hutu que concordou em arriscar o próprio pescoço em respeito a Leonard, o pai da jovem. Com exceção de um irmão que morava no Senegal, todos os outros familiares, pais, dois irmãos e tios, foram chacinados logo nos primeiros dias do genocídio de Ruanda.
“Pensei muitas e muitas vezes que morreria”, disse ao Estado por telefone de Nova York, onde mora com o marido e os dois filhos. “Mas a única vez em que pensei em desistir foi quando vieram nos procurar e ficaram de frente para a porta do banheiro. Eram umas 300 ou 400 pessoas.” Os interahamwe, os violentos milicianos hutus responsáveis por garantir que o massacre fosse “bem sucedido”, tinham ficado sabendo que ela e as outras mulheres haviam entrado na casa nos primeiros dias de abril de 1994 - e ninguém podia dizer com certeza se haviam saído de lá. Por isso, constantemente iam procurá-las. Por algum motivo, o banheiro, localizado no quarto do dono da casa, cuja porta foi escondida por um armário, nunca foi notado, e o esconderijo continuou em absoluto segredo até mesmo para o resto da família que ali morava - para alimentar as mulheres, o pastor juntava os restos do jantar em um prato e levava para o banheiro de madrugada: era a única refeição do dia.
Para aguentar a dor, a fome, o medo e a falta de notícias da família, Immaculée, que sempre foi religiosa, rezava. Ela diz, em seu livro Sobrevivi para Contar, que chegava a rezar 20 horas por dia, numa espécie de transe. Depois, ela, que falava francês, resolveu aprender inglês apenas com a ajuda de um livro e de um dicionário, que pediu emprestados ao pastor. Immaculée tinha colocado na cabeça que, se sobrevivesse, trabalharia na ONU, o que realmente aconteceu, e onde conheceu seu marido, alguns meses depois de deixar seu cativeiro.
Apesar de tudo, Immaculée não buscou vingança, como era de se esperar de alguém que viveu em condições extremas como ela. Durante o tempo em que ficou no esconderijo, diz que sentiu necessidade de perdoar os assassinos - pelas notícias que vinham do rádio ligado no quarto do pastor, ela já imaginava que sua família provavelmente não havia sobrevivido. “Rezava o Pai-Nosso silenciosamente o tempo todo, mas comecei a pular a parte que diz ‘perdoai a quem nos tem ofendido’. Não conseguia dizer. Percebi que era porque eu não sentia aquilo. Queria matar esses assassinos”, disse. “Mas isso não me fazia bem. Lembro de pedir a Deus, de todo o coração, que me ajudasse a perdoá-los. Foi o que aconteceu.”
Resgatada por militares franceses da Operação Turquesa, em julho, ela ainda voltou, tempos depois, a seu vilarejo, Mataba, na Província de Kibuye. A casa onde sua família vivia estava destruída, não havia restado nada. Com a ajuda de vizinhos, Immaculée descobriu em uma cova rasa os restos mortais da mãe, Rose, e de um de seus irmãos, Damascene, executado na rua, depois de ser torturado. Ela conseguiu enterrá-los. “Sabe, quando você ama uma pessoa, você quer saber tudo sobre ela, quer saber como viveu, o tipo de música que gostava de ouvir, o que falou antes de morrer. Eu queria saber como tinha sido o fim de suas vidas, como tinham vivido os últimos dias.” Os corpos do pai, Leonard, e do irmão caçula, Vianney, nunca foram encontrados.
Hoje seu livro é usado em escolas de Ruanda e é leitura obrigatória para militares. “Para que saibam que estão servindo pessoas, o povo”, diz ela. Um curta-metragem sobre a sua história está sendo rodado em Ruanda e na Califórnia e tem previsão de lançamento em 2020.
A senhora passou mais de 90 dias escondida em um banheiro com outras mulheres. Qual foi o pior momento? Achou que morreria ali?
Eu temi e pensei muitase muitas vezes que morreria. Foi realmente pela graça de Deus que eu passei por aquilo. Eu rezava, rezava, rezava e pensava: “Deus é onipotente, Deus é onipotente, Deus é onipotente”. Mas também pensei em abrir a porta do banheiro onde estava escondida e acabar com aquela tortura. Eu não aguentava mais esperar pelas pessoas que estavam à nossa procura, e eles estavam lá fora. Então, muitas vezes eu pensei “Abra a porta, abra a porta”.
A senhora pensou em desistir então?
A única vez em que realmente pensei em desistir foi quando as pessoas vieram nos procurar. Muitos estavam à nossa procura, e eles pararam bem ali, na porta do banheiro, umas 300, 400 pessoas vieram nos procurar. Então pensei o pior, pensei que tudo tinha acabado e que eu iria morrer. Foi quando pensei em abrir a porta, mas algo me disse: “Não, não importa quão doloroso esteja, não desista, você não vai morrer”. Essa foi a única vez que pensei em desistir.
Em seu livro, Sobrevivi para contar - O poder da fé me salvou de um massacre, a senhora fala que teve um momento em que queria vingança e pensava em matar os assassinos. Como passou da vingança para o perdão?
Eu tinha muito ódio porque, você sabe, eles estavam tentando nos matar. Eu pensava em revidar, algo que qualquer um pensaria, não é? Então, rezei muito, mas o pensamento de morte e vingança continuava. Rezar me ajudava, mas esses pensamentos continuavam. Quando Jesus nos ensinou o Pai-Nosso, disse “perdoai a quem nos tem ofendido”. E, quando eu rezava, chegava nessa parte e não conseguia dizer essas palavras. Todas as vezes, chegava nessa parte e dizia: “Não, não consigo dizer isso, eu não acredito nessas palavras”. Então, comecei a pular essa parte do Pai-Nosso. Até que um dia eu estava pulando essa parte, quando algo me disse: “Essas palavras foram ditas por Deus”. Pensei então que teria de mudar a oração, mas meu coração começou a mudar, numa tentativa de, acima de tudo, ser sincero enquanto rezava. Entendi que você pode rezar o quanto quiser mas, se não acreditar naquelas palavras, a oração não significa nada.
E como foi a mudança depois, então?
Quando comecei a ser sincera, lembro de pedir a Deus, de todo o coração, para me ajudar a perdoar. E isso é uma coisa que sempre digo às pessoas: se você quer, você consegue perdoar. Se quiser de verdade, Deus vai ajudar, a ajuda chegará.
E quanto tempo demorou para sentir que realmente tinha perdoado pessoas que assassinaram a sua família?
Desde o momento em que eu quis perdoá-los, não levou muito tempo. Antes disso, claro, eu não pensava em perdão, não queria perdoá-los. Mas, no momento em que quis de verdade, levou um ou dois dias de orações e senti que havia perdoado.
A senhora estava em Ruanda recentemente. Como está o país hoje?
O país está indo realmente bem. As pessoas estão felizes e tudo está indo bem. Temos um bom governo. Você pode escolher dois caminhos: pode tentar se vingar ou pode seguir em frente. E é muito encorajador o caminho que nós tomamos lá. Antes, tínhamos duas universidades em todo o país, agora são 27. Muita coisa mudou, porque muita gente quer melhorar e pensa: “Vamos seguir em frente, em vez de olhar para trás”.
Mas é mais algo como “as feridas estão fechadas, vamos seguir em frente” ou mais como “vamos seguir em frente de toda forma”?
Eu acredito que Ruanda sabe que não se pode fingir perdão, você pode se arrepender. Temos um decreto nesse sentido, temos religiosos falando disso, temos programas de rádio em que religiosos falam de perdão. Eles estão dando palavras de cura para o povo, estão encorajando o bem.
E por que, em sua opinião, o mundo deu as costas para Ruanda?
Eu acredito que, muitas vezes, há aquele sentimento, quando as coisas estão bem para você, há aquele sentimento: “Por favor, não me venha com problemas”. Eu não acredito nesse modo de pensar. Você não pode se importar apenas consigo, enquanto seus irmãos estão sofrendo, não há alegria possível dessa forma. Então, quando você pensa: “Estou feliz, não me importo com você”, não é bom. E eu penso que o mundo foi egoísta com Ruanda naquela época. Foi algo como “o que temos lá?”, “por que vamos nos importar?”. Mas acredito que foi também uma lição para os outros países, de que é preciso fazer algo quando um país está em guerra civil, mesmo que não possa dar dinheiro ou meios de ajudá-lo. Mesmo que seja somente algo como “vamos falar com eles sobre bondade”. É melhor do que cruzar os braços e simplesmente não se importar.
A senhora acredita que algo tão cruel quanto o genocídio de Ruanda possa acontecer de novo?
Não acho que aconteceria em Ruanda. Pode acontecer em qualquer lugar, claro, mas espero que não aconteça novamente em Ruanda. Porque, se você tem maus líderes, que controlam a TV, o rádio, eles podem fazer isso acontecer. Porém, se não tivéssemos sido tão desorganizados, não teria acontecido do jeito que foi em Ruanda. Mas pode acontecer, mesmo que não seja da mesma maneira. E nós precisamos ser bons, precisamos pensar de forma diferente, precisamos querer a paz.
Seu livro é adotado em muitas escolas em Ruanda. Qual a importância de ensinar as crianças para que um episódio como aquele não volte a acontecer?
Sim, está sendo usado em diversas escolas em Ruanda. E ouvi de um militar que é obrigatório que todos os oficiais leiam também, para que saibam que estão servindo pessoas, o povo.
A senhora criou uma fundação com seu nome, que faz um trabalho similar ao que sua mãe fazia antes de ser assassinada, que é ajudar crianças a continuarem na escola. Pode contar um pouco mais desse trabalho?
Venho de um país pobre, no limite, mas, todos os dias, meu pai visitava escolas e todos os dias nós trabalhávamos para levantar algum dinheiro para a escola. Lembro do meu pai, todos os dias, quando vinha para casa, ele passava antes pelas casas das pessoas que ele tinha ouvido falar que estavam com problemas, por exemplo, uma pessoa que precisava ir ao médico e ele sabia que não tinha dinheiro para isso. Então ele reunia outras pessoas para ajudar aquela família e mandar a pessoa ao médico. Algumas pessoas que não tinham meios de mandar os filhos para a escola, nós também ajudávamos. Então, já naquela época, eu sabia que queria fazer algo parecido. Tenho duas fundações que ajudam a mandar crianças para a escola, ajudam a construir escolas, e auxiliam famílias que são realmente muito pobres, que não têm meios. Eu as ajudo todos os meses, gosto de falar com elas estão sofrendo, os necessitados, os famintos, não apenas as crianças.
Depois de tudo o que passou, algo ainda a assusta?
Tenho o medo, digamos, comum. Mas me sinto triste quando vejo pessoas se odiando umas às outras, quando discriminam com base na raça da outra pessoa ou fazem comentários que fazem um país, uma religião, se sentirem culpados ou maus. Isso tudo faz com que eu me sinta mal. Eu posso ver como o ódio começa, com pessoas discriminando umas às outras. Isso me assusta.
Por que quis saber como sua família morreu?
Era importante para mim, não necessariamente como tinham morrido, mas eu queria saber as palavras que tinham dito, queria saber as condições, o que tinha acontecido. A memória dos que eu amava, era isso que eu queria.
Mas por quê?
Sabe, quando você ama uma pessoa, você quer saber tudo sobre ela, quer saber como viveu, o tipo de música que gostava de ouvir, o que falou antes de morrer. Eu queria saber como tinha sido o fim de suas vidas, como tinham vivido os últimos dias. Eu queria saber qualquer coisa sobre o meu irmão. Sabia que eu ainda guardo uma camiseta dele? Então, não é uma grande razão, só gostaria de saber. E descobri que eles morreram como viveram: morreram carinhosamente, amorosamente, com fé.
Imagino que a senhora sentiu algum tipo de paz quando soube disso.
Não dessa maneira, sabe? Sei que às vezes as pessoas querem um tipo de desfecho, descobrir como morreram. Eu, definitivamente, queria saber qualquer coisa sobre eles. Quando descobri como eles morreram, aquilo me partiu o coração ainda mais. Eu acredito em Deus e acredito que se estivessem vivos e sofrendo seria pior. Então, foi como o fim da tortura. Saber o que pensavam era mais importante do que descobrir a verdade. Eles morreram tentando ajudar outras pessoas. Minha mãe morreu tentando resgatar meu irmão. Ela era louca por seus filhos, então isso, morrer tentando salvar meu irmão, representa bem o que era minha mãe. E meus irmãos, eu queria saber as palavras que falaram, foi triste, muito triste, mas queria saber que foram corajosos. Como disse (em seu livro), desde a escola eu queria saber tudo sobre meu irmão (Damascene, três anos mais velho, de quem era mais próxima). O que ele falou, como viveu.
Professor do Instituto Raoul Wallenberg de Direitos Humanos em Lund, na Suécia, Lyal S. Sunga fez parte da Comissão de Peritos do Conselho de Segurança da ONU, formada em julho de 1994 para relatar os crimes cometidos durante os cem dias do genocídio em Ruanda. Ele chegou ao país no fim de outubro de 1994 e voltou 21 anos depois, em 2015. Lyal contou, por e-mail, o que viu nas duas ocasiões no seguinte depoimento:
“Meu envolvimento para investigar as gravíssimas violações em massa perpetradas em Ruanda de 6 de abril até o final de junho de 1994 surgiu por acaso. Em agosto de 1994, viajei de minha casa, em Ottawa, no Canadá, para Genebra, na Suíça, para conduzir pesquisas sobre um livro que escrevi sobre Direito Penal Internacional. Em 1992, eu já havia publicado minha tese para o meu doutorado sobre “responsabilidade individual no Direito internacional por violações graves dos direitos humanos”, que escrevi em Genebra. Esse livro explora como a lei internacional poderia impor responsabilidade criminal sobre indivíduos por violações graves dos direitos humanos. Estava interessado em escrever sobre isso porque em muitos casos, em todo o mundo, funcionários do governo abusam de seu poder e os tribunais domésticos não podem ou não farão nada a respeito, daí a necessidade de soluções legais internacionais. Na época, pouco havia sido escrito sobre o assunto, pois havia muito pouco progresso em nível internacional desde que os julgamentos foram realizados em Nuremberg e Tóquio, em 1945 e 1946, para responsabilizar os criminosos da Segunda Guerra Mundial pelos crimes de guerra e contra a humanidade.
Poucas horas depois de chegar a Genebra, em agosto de 1994, para iniciar minha pesquisa, o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, José Ayala Lasso, do Equador, me chamou em seu escritório e pediu que eu suspendesse meu ensino universitário no Canadá e apoiasse a Comissão de Peritos do Conselho de Segurança da ONU - um órgão ad hoc que o então secretário-geral da ONU, Boutros Boutros Ghali, designou, em 1.º de julho de 1994, para investigar fatos e responsabilidades relativos às violações cometidas durante a guerra civil de Ruanda. Por isso, concordei em deixar o meu ensino universitário e me juntar à ONU e chegamos a Kigali em 29 de outubro de 1994.
Ruanda é um país de sol, solo rico em ferro, fértil, de vegetação exuberante, flores brilhantes e, acima de tudo, gente bonita, e esses aspectos formaram minhas primeiras impressões. Nossa tarefa, no entanto, colocou nossa equipe de investigação cara a cara com os horrores de um dos piores crimes do mundo no século 20. Viajamos por todo o país por 10 dias, entre o final de outubro e o início de novembro, e por mais 10 dias em dezembro de 1994, de helicóptero, por estrada e a pé, para investigar os locais de massacre de Ruanda.
Jamais esquecerei o que vi lá. Em 30 de outubro de 1994, fomos a Nyamirambo, na Província de Kigali. Cerca de 6 mil pessoas foram mortas ao longo de três dias, pela interahamwe (milícia hutu) de um lado e pela guarda presidencial do outro, o que nos demonstrou premeditação e planejamento substanciais. Prédios mostravam danos feitos por metralhadoras e abundância de projéteis de marcas francesas e russas espalhados pelo local. Havia sepulturas em massa de 100 homens, mulheres e crianças, outra com 70 e outra com 50. Não muito longe, havia um convento com paredes manchadas de sangue, onde as freiras eram estupradas e massacradas pela milícia interahamwe. Havia buracos de bala e montes de invólucros gastos e clipes de metralhadora vazios por toda a parte. Encontramos mais três ou quatro valas comuns com cerca de 200 corpos. Quando chegamos ao local, encontramos uma mulher com seu filho, forte e bonito aos 10 anos de idade, exceto pela desfiguração grosseira do golpe de machete com força total na frente do rosto. A mãe e o filho sobreviveram apenas porque o pessoal da Cruz Vermelha interveio. A mãe nos mostrou suas feridas de facão na parte de trás do crânio.
Em Gikondo, nós pesquisamos extensos danos feitos por metralhadoras e foguetes em uma mesquita e em uma igreja metodista. Em outra igreja, cordas manchadas de sangue e pisos marcados de concreto evidenciavam execuções sumárias. Na igreja Frères Palotins, dirigida por padres católicos poloneses, centenas de pessoas morreram e notamos várias grandes valas comuns com restos mortais.
Em 1.º de novembro de 1994, fomos de helicóptero para N’tarama, onde cerca de 400 dos cerca de 5 mil corpos ainda não haviam sido enterrados desde o ataque em 15 de abril pela milícia interahamwe. Foi lá que senti pela primeira vez o fedor de carne humana decomposta, que é um cheiro de carne apodrecida que permeia suas roupas e todo o seu ser. De alguma forma, você reconhece isso imediatamente e nunca vai esquecer, porque não há outro odor parecido. Como meus colegas forenses me explicaram, o mau cheiro permeia suas roupas, pele e cabelo e levaria vários dias para deixar as narinas.
Meu colega forense espanhol me guiou para dentro da igreja de N’tarama e me apoiou no banco da primeira fila, para evitar que eu escorregasse na gordura humana e caísse na massa de cadáveres. Cada fila da igreja estava cheia de cadáveres decompostos. Sozinha, a equipe forense espanhola removeu 272 corpos daquela sala. Os crânios mostravam um dos dois golpes: marcas de facão, limpas e alongadas, ou fraturas de força brusca de bastões. A equipe havia montado um arranjo macabro dos crânios de bebês para análise. Muitas árvores manchadas de sangue e cordas indicaram onde os indivíduos foram torturados e assassinados. Testemunhas relataram que as milícias estavam vestidas com uniformes militares, mostravam um alto grau de organização e seguiam claramente uma agenda pré-estabelecida que incluía retornar duas vezes às cenas do massacre em uma hora para eliminar quaisquer testemunhas sobreviventes. Tomei cuidado para não tropeçar em restos humanos meio decompostos espalhados por toda a parte. Logo o baque surdo dos helicópteros se aproximando nos fez voltar para Kigali, mas quando nos apressamos para encontrá-los, o fedor se agarrava a nós rapidamente.
Nyarabuye, outro complexo que alcançamos de helicóptero, foi o pior local. Havia centenas de corpos dentro e fora da igreja. Dentro havia uma mulher morta com a saia levantada obscenamente acima da pélvis, as pernas, meio carne, meio osso, abertas. Sua expressão facial horrorizada era claramente visível, embora suas pálpebras tivessem desaparecido e suas órbitas negras meio vazias olhassem para o teto desde seu estupro e assassinato. Tendo em mente as muitas crianças de uma perna só que vimos mancando ao redor de Kigali naqueles meses sombrios pós-guerra, tivemos de pisar com cuidado para evitar minas terrestres e artefatos explosivos não detonados. O fedor estava sobrecarregado e eu fiz o meu melhor para tapar as minhas narinas, mas as mãos encharcadas de álcool queimaram o interior do meu nariz.
A poucos quilômetros de distância, visitamos uma clínica médica que havia sido administrada por uma missão religiosa. No canto de uma sala estavam os restos de um menininho, agachado de costas para a quina, com uma lança de dois metros ainda presa na garganta. Sua expressão e postura aterrorizada contavam como ele havia sido encurralado, provavelmente insultado, e depois arrasado em seus momentos finais de sua breve existência. A essa altura, fiquei para trás do time e me vi andando sozinho por um prédio escuro, quando percebi que estava pisando em larvas negras mortas e crocantes que tinham comido carne humana: eu estava andando sobre um tapete de mortos que se banqueteara com mortos. De alguma forma isso me chocou. Eu me juntei ao resto da equipe, e notamos que rabiscadas nas paredes externas de prédios intactos ao longo de nosso caminho estava a palavra "hutu". E assim foi em outros locais de massacre, numerosos demais para recontar...
Encontramos evidências claras de que a milícia extremista do grupo étnico hutu (cerca de 85% da população de Ruanda de 7 milhões antes do genocídio) foi capaz, com o apoio do governo, de eliminar entre 500 mil e 1 milhão de civis, principalmente tutsis (que constituíam cerca de 14% da população) e milhares de hutus politicamente moderados. A Comissão de Peritos recomendou que o Conselho de Segurança da ONU estabelecesse o mais rapidamente possível um tribunal penal internacional, uma vez que 80% dos juízes e advogados haviam sido assassinados e não era possível processar os perpetradores. Em resposta aos nossos relatórios, o Conselho de Segurança agiu em 8 de novembro de 1994 para estabelecer o Tribunal Penal Internacional para Ruanda.
Vinte e um anos depois, voltei para a igreja de N’tarama, para sentar exatamente no mesmo banco onde havia sentado. As centenas de crianças massacradas, as mulheres e os homens foram havia muito tempo transferidos para caixões. Dessa vez, não precisei observar todos os meus passos, com medo de pisar em restos humanos. Um caminho limpo e organizado levava os visitantes ao redor do local do massacre. As pessoas estavam vivas, trabalhando, conversando, sorrindo, e os zumbidos suavemente reconfortantes do tráfego e de pessoas em movimento substituíram o silêncio e o mau cheiro humano de 1994. Ruanda foi transformada de cenário de genocídio, morte e destruição, em um lugar limpo, eficiente, seguro e vibrante em apenas duas décadas - um feito milagroso que testemunha a sabedoria, dedicação e desenvoltura dos líderes de Ruanda e de seu povo.
Se há risco de novo conflito em Ruanda? Se olharmos ao redor do mundo, veremos que, onde a propaganda, a marginalização política, a estigmatização e a perseguição não são controladas, e a democracia, os direitos humanos e o estado de direito não são sacrossantos, o conflito pode crescer e irromper em violações em massa, até genocídio. Vimos esse processo acontecer em todas as partes do mundo em vários momentos e em diferentes circunstâncias, desde as Américas até a Europa, em toda a África, Ásia e Oriente Médio. Ruanda é certamente um dos países mais seguros, talvez o mais seguro do continente africano. O desafio em Ruanda, como em todo lugar, é garantir que a segurança não chegue a um preço exorbitante para os direitos humanos e as liberdades fundamentais.”
Pesquisando sobre Ruanda, parece que o passado não está tão distante assim. Valas comuns com corpos continuam a ser encontradas (os restos mortais de 18 mil pessoas foram encontrados no ano passado) e até hoje há assassinos que não foram capturados. Como o senhor vê essa situação? É possível que o país supere esse trauma?
É difícil para qualquer país, qualquer sociedade, qualquer pessoa, superar o trauma na escala sofrida em Ruanda, e talvez não seja possível superá-lo verdadeiramente, porque cicatrizes profundas desfiguram o corpo político e põem em risco a confiança que grupos étnicos têm um no outro. Por outro lado, os seres humanos em todo o mundo, e eu vi isso em Ruanda, mostram uma notável capacidade de perdoar, até mesmo amar uns aos outros, e isso ajuda a sociedade a se curar. Essas possibilidades de conciliação podem florescer melhor quando o governo mostra liderança moral forte. E deve haver justiça, justiça justa, não só em termos de processos criminais, mas também de desculpas dos perpetradores às vítimas, pleno reconhecimento simbólico das vítimas e do que elas sofreram e documentação de fatos e responsabilidades. Caso contrário, elementos extremistas negam sua responsabilidade ou tentam revisar o registro histórico por meio de mentiras e propaganda. Isso não pode acontecer.
Já se tornou um clichê dizer que o mundo virou as costas para Ruanda. Por que isso aconteceu? Um conflito na África é menos importante? Se sim, o senhor acha que ainda é assim hoje?
O mundo certamente virou as costas para Ruanda. Kofi Annan, que era chefe do Departamento de Manutenção da Paz das Nações Unidas na época do genocídio, reconheceu, quando se tornou secretário-geral , que Ruanda representou o maior fracasso da ONU. No entanto, a ONU fracassou porque só pode fazer o que seus Estados-membros querem que ela faça, e a ONU tem de receber os recursos para realizar uma prevenção eficaz de conflitos. A culpa por não ter conseguido impedir o genocídio em Ruanda recai sobre os países mais poderosos do mundo, que não fizeram nada de significativo para intervir quando a mídia internacional mostrou claramente o que estava acontecendo lá. É perfeitamente possível que Ruanda, de pouco valor estratégico para as grandes potências, atraísse menos interesse do que deveria. As elites políticas e empresariais em países poderosos ainda classificam os direitos humanos e as considerações humanitárias muito aquém do petróleo ou de outros depósitos minerais em lugares como a Arábia Saudita e a Venezuela.
O Tribunal Penal Internacional para Ruanda foi o primeiro a emitir veredictos relacionados a genocídio depois da Convenção de Genebra, em 1948. Qual, na sua opinião, foi o destaque da Corte internacional? O que poderia ter sido melhor?
Três feitos se destacam. Primeiro, foi o primeiro tribunal penal internacional a aplicar a Convenção sobre o Genocídio da ONU de 1948. Segundo, no caso Akayesu (Jean-Paul Akayesu, político do Movimento Republicano Nacional por Democracia e Desenvolvimento e prefeito da Comuna de Taba, foi condenado à prisão perpétua em 2001), o tribunal decidiu inequivocamente que estupro em massa visando a um determinado grupo nacional, étnico, racial ou religioso constitui genocídio. Em terceiro lugar, em 2003, o tribunal condenou três personalidades importantes da mídia a mais de 30 anos de prisão pelo seu papel de incitação ao genocídio, o que envia um sinal claro aos propagandistas do ódio de hoje que incitar o genocídio é um crime muito sério. Em termos do que poderia ter sido melhor, é muito importante que a Justiça seja imparcial e justa - e, igualmente importante, vista como justa. Alguns advogados de defesa reclamaram que a acusação não divulgou informações suficientes a eles para permitir que se preparassem adequadamente e que o tribunal foi preconceituoso desde o início. Pessoalmente, não acho esta linha de argumentação convincente, dada a excelente qualidade dos juízes. Ao mesmo tempo, no entanto, é lamentável que apenas perpetradores do lado hutu extremista tenham sido processados e ninguém do outro lado. Enquanto elementos extremistas hutus perpetraram genocídio contra a minoria tutsi, houve algumas violações menores também das forças tutsis em Ruanda durante a guerra civil. Mesmo que estes fossem muito menos sérios do que as graves violações perpetradas pelos elementos hutus, no interesse da Justiça, o tribunal internacional deveria ter processado pelo menos alguns tutsis por suas violações.
Muitos assassinos foram condenados a alguns anos e até meses de prisão. É possível que essas pessoas voltem a viver nessa sociedade sem despertar uma forte sensação de vingança por parte das vítimas?
Minha impressão é de que o governo de Ruanda fez um trabalho notável para garantir que os ataques por vingança não ocorram. Acredito também que a sociedade ruandesa compreende a importância de se dar bem pacificamente, porque eles sabem quão perigosa, horrível e assustadora é a alternativa.
O Tribunal Penal Internacional também inovou no julgamento de pessoas consideradas importantes, como altos funcionários do governo, militares, políticos, empresários, líderes religiosos e profissionais da mídia. Sem a participação dessa parcela da sociedade o massacre não teria acontecido ou poderia ter sido menos violento? Por quê?
Há uma enorme diferença entre tumultos, combates espontâneos e violência criminosa comum, por um lado, e, por outro, violações altamente organizadas, planejadas, premeditadas, combinadas, sistemáticas e generalizadas, particularmente onde instituições governamentais ou funcionários estão envolvidos. Descobrimos que, em Ruanda, organização, planejamento e logística foram meticulosamente executados muitos meses antes dos ataques reais com liderança, comandantes e subordinados bem definidos, que envolviam líderes militares, políticos, empresariais e de mídia de alto nível. Certamente, o envolvimento desses tomadores de decisão em alto nível em vários setores e sua capacidade de mobilizar milhares de civis comuns na sociedade ruandesa para se tornarem genocidas é um fator importante que fez a taxa de extermínio em Ruanda cerca de dez vezes maior do que o genocídio nazista contra judeus e ciganos na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Os nazistas levaram vários anos para matar cerca de 6 milhões, enquanto os genocidas precisaram de apenas cem dias para aniquilar entre 500 mil e um milhão de civis.
O Tribunal Penal Internacional também inovou no julgamento de pessoas consideradas importantes, como altos funcionários do governo, militares, políticos, empresários, líderes religiosos e profissionais da mídia. Sem a participação dessa parcela da sociedade o massacre não teria acontecido ou poderia ter sido menos violento? Por quê?
Há uma enorme diferença entre tumultos, combates espontâneos e violência criminosa comum, por um lado, e, por outro, violações altamente organizadas, planejadas, premeditadas, combinadas, sistemáticas e generalizadas, particularmente onde instituições governamentais ou funcionários estão envolvidos. Descobrimos que, em Ruanda, organização, planejamento e logística foram meticulosamente executados muitos meses antes dos ataques reais com liderança, comandantes e subordinados bem definidos, que envolviam líderes militares, políticos, empresariais e de mídia de alto nível. Certamente, o envolvimento desses tomadores de decisão em alto nível em vários setores e sua capacidade de mobilizar milhares de civis comuns na sociedade ruandesa para se tornarem genocidas é um fator importante que fez a taxa de extermínio em Ruanda cerca de dez vezes maior do que o genocídio nazista contra judeus e ciganos na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Os nazistas levaram vários anos para matar cerca de 6 milhões, enquanto os genocidas precisaram de apenas cem dias para aniquilar entre 500 mil e um milhão de civis.
Como o senhor vê o governo de Paul Kagame, acusado de se manter no poder por meios não democráticos e de perseguir oponentes? Ruanda estaria em risco com uma possível mudança do governo?
Tive o prazer de conhecer Paul Kagame no início de nossas investigações, em 1994. Tenho muita admiração pela contenção que ele demonstrou após o genocídio e sua impressionante liderança no desenvolvimento de Ruanda em uma potência regional. No entanto, todos os líderes políticos devem ter grande cuidado na salvaguarda da democracia, dos direitos humanos e do estado de direito, e isso não é tarefa fácil em Ruanda, dada a sua composição étnica e o trauma do genocídio. Na minha opinião, Ruanda deu muitos passos importantes para garantir a plena promoção e proteção dos direitos humanos mas, como muitos países, poderia fazer muito mais. É especialmente importante permitir à oposição política a liberdade e a segurança para desafiar a política do governo, porque todas as sociedades precisam de ar fresco. Os governos que ficam muito tempo no poder tornam-se inevitavelmente ortodoxos e defensivos, em vez de abertos à mudança, e isso acaba por ameaçar minar os direitos humanos, a democracia e o estado de direito.
As Nações Unidas consideram a crise do Iêmen como a maior crise humanitária global atualmente em andamento. Pode ser comparado a Ruanda de alguma forma?
Suas perguntas me trazem de volta a uma preocupação pessoal e ao assunto da minha tese de doutorado, que é que pessoas em posições poderosas não devem ficar impunes quando assassinatos são cometidos. É por isso que, quando os governos nos decepcionam e Estados poderosos intervêm no território de outros Estados por todas as razões erradas, precisamos que o Tribunal Penal Internacional desempenhe um papel tão eficaz e universal quanto possível. É escandaloso que a Rússia, os Estados Unidos, a China, a Índia, o Paquistão, Israel e outros países se recusem a aderir ou apoiar o Tribunal Penal Internacional, que tantos países têm trabalhado para tornar realidade. Também é altamente perigoso que o mundo não tenha reformado a configuração antiquada do Conselho de Segurança da ONU - o principal garantidor da paz e da segurança internacional. China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos, membros do Conselho Permanente, vetam rotineiramente as iniciativas de manutenção da paz da ONU por razões geoestratégicas cínicas e míopes.
É possível que o mundo testemunhe algo tão cruel como o genocídio de Ruanda novamente? Como evitar isso?
Neste momento, estamos testemunhando uma crueldade maciça na Síria e na República Democrática do Congo. A República Centro-Africana e o Burundi estão em risco. Em muitas outras partes do mundo, a violência criminal organizada é desenfreada. Para evitar o genocídio no futuro, precisamos de instituições multilaterais fortes, uma forte Organização das Nações Unidas, um forte Tribunal Penal Internacional e fortes acordos regionais de paz e segurança. Acima de tudo, todos devem entender que a paz e a segurança em todo o mundo exigem engajamento pessoal, respeito e interesse pelas pessoas em seu país e em outros países que não se parecem com você, pensam como você, adoram como você ou agem como você. Colocando de outra forma, todos devem compreender e honrar plenamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos em princípio, prática e espírito. O nacionalismo baseado na desconfiança, no ódio e na demonização do outro nunca trouxe nada de bom ao mundo.
Dois desconhecidos se uniram para salvar 325 crianças e 80 adultos abrigados em um orfanato bem no meio do caminho da violenta milícia hutu em Kigali, capital de Ruanda, em junho de 1994. Carl Wilkens, um missionário que se tornou o único americano a permanecer no país durante o genocídio, encontrou Damas Gisimba, o dono do abrigo que, mesmo sabendo que sua decisão poderia lhe custar a vida, acolheu os que ali chegavam dia a dia.
Logo que a matança começou, conta Gisimba por telefone de Kigali, onde mora até hoje, tutsis moradores das redondezas procuraram o orfanato em busca de um esconderijo. “Todo mundo me conhecia, pois fazia 20 anos que eu morava no bairro”, diz. “As pessoas pensavam: ‘Alguém que ama as crianças deve ter um bom coração, não vai nos matar nem nos denunciar’.” Eram, segundo ele, levas de dez a 15 pessoas por dia, que superlotaram o lugar. Logo a situação ficou impraticável e a movimentação chamou a atenção dos grupos de assassinos. “No começo, dei dinheiro para os milicianos que nos atacaram, para que se mantivessem longe do orfanato.” Mesmo assim, seis funcionários foram mortos em uma das investidas.
A comida ficou escassa e os matadores cortaram água, luz e telefone. Parecia uma questão de (pouco) tempo até serem todos assassinados. “Eu esperava a morte a qualquer momento. Todo mundo esperava, mas não havia outra escolha, a não ser a de simplesmente proteger as pessoas”, lembra Gisimba.
Então Carl Wilkens entra na história. O americano que teve de tomar a difícil decisão de despachar mulher e filhos para o Quênia e continuar sozinho no país que adotara desde 1990 - ele não queria abandonar amigos tutsis - ficou sabendo do orfanato e da difícil operação para conter os milicianos que rondavam o lugar. Munido de um rádio-comunicador, ele rumou para o abrigo, do outro lado da cidade, passando por inúmeros bloqueios de milicianos e do exército ruandês. Naqueles dias, rodar alguns poucos quilômetros podia levar horas intermináveis, além de ser uma operação de altíssimo risco. O fato de ser estrangeiro, no entanto, lhe dava uma espécie de salvo-conduto.
Ao chegar, logo se viu cercado por 50 homens fortemente armados. “Por alguma razão, a milícia manteve suas posições em torno do perímetro do orfanato por duas ou três horas”, conta Wilkens ao Estado, por e-mail, de Spokane, nos Estados Unidos, onde mora. Para Gisimba, a explicação é simples: “Sem ele, teriam nos atacado e matado, como fizeram com todo mundo. Eles (milicianos) não sabiam o que fazer com o americano que estava ali.”
No que chama de “escolhas e sugestões bizarras”, Wilkens resolveu ir pessoalmente pedir ajuda ao então primeiro-ministro, Jean Kambanda, um dos principais responsáveis pelo genocídio, posteriormente julgado e condenado à prisão perpétua. “Acabei pedindo a ele que impedisse o iminente massacre. E ele fez isso!”, conta. “Todos os dias havia algo inesperado (em Ruanda), mas eu estava aprendendo rapidamente o poder do que poderia ser chamado de ‘encontrar aliados entre o inimigo’.”
Ele então coordenou uma arriscada operação de evacuação do lugar, com a ajuda de homens das Nações Unidas e do governo ruandês: colocou mais de 400 tutsis em alguns ônibus e atravessou barreiras de matadores até a igreja de Saint-Michel, em uma parte de Kigali já tomada pelos rebeldes da Frente Patriótica de Ruanda (FPR). Todos se salvaram. Um jovem professor de música que estava entre os abrigados se tornou diretor do orfanato, hoje transformado em uma ONG de educação extra-curricular.
“É especialmente emocionante e recompensador conhecer crianças do orfanato que agora são adultos e ver como alguns se tornaram profissionais de saúde, professores, advogados, músicos e até organizadores de casamentos!”, conta Wilkens, que fundou uma ONG, a World Outside My Shoes, voltada para o desenvolvimento educacional e profissional, escreveu um livro - que virou documentário e conta essa e outras histórias de seu tempo em Ruanda - e retorna ao país uma ou duas vezes por ano, com professores e estudantes americanos. “Ruanda está se reinventando, construindo um hábitat em que a Justiça restaurativa não é apenas possível, mas demonstrada todos os dias.”
Gisimba faz coro: “Atualmente em meu país há calma e segurança. As pessoas lutam muito para preencher o vazio deixado, pois o país foi destruído. Quando há paz e segurança, as pessoas se perdoam e trabalham juntas para construir o futuro”. Ele fez a sua parte ao perdoar o chefe dos milicianos que assassinaram seus funcionários.
Sobre o feito de terem salvado tanta gente em meio ao caos e às matanças desenfreadas, ambos preferem minimizar o gesto. “Não fiz nada sozinho”, diz Wilkens. “Sempre tive ajuda durante o genocídio. Quando chegamos ao orfanato de Gisimba, eu tinha um colega missionário e um oficial de segurança do governo comigo.” Gisimba tenta explicar que sua decisão não foi única. “Outras pessoas fizeram como eu (e abrigaram vários tutsis), mas eles (milicianos) as mataram, assim como todas as pessoas que eles esconderam. Para mim, foi um milagre terem nos deixado viver.”
O senhor diz em várias entrevistas que, do momento em que soube que o avião do presidente Juvénal Habyarimana havia sido abatido, percebeu imediatamente que as coisas iam mudar em seu país. Pode nos dizer como era viver em Ruanda antes do genocídio?
Antes do genocídio havia a guerra, mas havia ainda a insegurança aqui em Kigali, grupos que agiam nas ruas, que atacavam pessoas, lojas, sobretudo o comércio dos tutsis ou de pessoas que não compartilhavam da ideologia (do Movimento Republicano Nacional por Democracia e Desenvolvimento, MRND, partido de extrema-direita).
Isso quer dizer que antes do genocídio já havia a guerra?
Sim, já havia a guerra. Aquelas pessoas estavam realmente preparadas, os futuros milicianos eram os homens do partido MRND, portanto, homens de Habyarimana, do presidente, eles foram formados para matar e nós sabíamos que eles iam matar os tutsis, pois os consideravam inimigos do país e traidores que queriam invadir Ruanda.
Muitas pessoas foram ao seu orfanato procurando abrigo, um refúgio, elas pensavam que o senhor poderia salvá-las?
Todo mundo me conhecia, pois fazia cerca de 20 anos que eu morava lá no bairro, as pessoas me conheciam bem e pensavam: “Bom, alguém que ama as crianças deve ter um bom coração, não vai nos matar, vai nos acolher e não vai nos denunciar”. É por isso que as pessoas perseguidas no bairro vieram nos procurar.
Elas se sentiam seguras?
Não tinham outra escolha, porque atacavam as pessoas em toda parte. Eles diziam, nesse tempo, que, se alguém fosse buscar abrigo em uma igreja ou em outro lugar e fosse pego, eles viriam matar a todos ali. Mas eu não tinha medo dos interahamwe (milícia hutu). Eu não tinha medo do que devia fazer.
Quantas pessoas encontraram refúgio em seu orfanato?
A cada dia chegava mais gente. Após 3 meses, nós abrigávamos 405 pessoas. De todas as idades. Foram 325 crianças e 80 adultos. Eles não vieram, não chegaram ao mesmo tempo. Cada dia chegavam dez, 15 pessoas. Não foi fácil.
O que o senhor pensava sobre o seu papel na guerra, protegendo todas essas pessoas?
No começo, dei dinheiro aos milicianos que nos atacaram, para que se mantivessem longe do orfanato. Eu não tinha muita comida, ela só daria para três ou quatro dias, e eu não sabia o que fazer. Mas depois a Cruz Vermelha nos deu comida. Outras pessoas fizeram como eu, mas eles (os milicianos) finalmente as mataram, assim como todas as pessoas que eles esconderam. Para mim foi um milagre terem nos deixado viver.
Nesse momento, Carl Wilkens chegou ao seu orfanato. O senhor acredita que sem ele todos vocês teriam sido mortos?
Primeiramente, Carl Wilkens não quis deixar Kigali como os outros ocidentais que partiram. Ele não quis abandonar as pessoas, pois era um verdadeiro cristão. No meu bairro em Kigali, ele soube que alguém ali estava protegendo as pessoas e veio nos ver. E eu lhe expliquei toda a nossa situação e ele, ao tomar conhecimento de tudo, me perguntou o que poderia fazer por nós. Eu disse: “Veja, cortaram minha eletricidade, cortaram minha água e todas as pessoas estão nessa situação, não temos como preparar nossa comida ou água para beber e dar às crianças”. Ele então viu a situação, que era terrível, e disse que ia ver como arranjar água. Os milicianos haviam cortado nosso telefone, mas ele tinha um rádio e pôde pedir ajuda internacional, às Nações Unidas. Eles então passaram a nos abastecer duas vezes por semana com água. Eu diria que sem ele teriam nos atacado e matado como fizeram com todo mundo. Eles (milicianos) não sabiam o que fazer com o americano que estava ali.
O senhor já disse que estava cercado pela morte e por isso não pensava nela. Não tinha medo de morrer?
Eu esperava a morte a qualquer momento. Todo mundo esperava a morte. Não havia uma outra escolha, a não ser a de simplesmente proteger as pessoas.
Quanto tempo as pessoas ficaram no seu orfanato, enquanto ele permaneceu cercado pelas milícias, até que todos pudessem estar em segurança?
Quando o avião foi abatido, em abril, eles combateram perto do orfanato e mataram pessoas. Eles ficaram até 5 de junho, quando todo mundo foi evacuado para a Catedral de Saint Michel, uma operação feita pelo exército graças a Carl Wilkens. E em julho veio a libertação, quando reencontramos a paz.
Como seu país se transformou em um cenário de massacres?
O que eu posso dizer é que ter sobrevivido a um massacre é terrível. A angústia de ver isso se desenrolar a cada dia... Pessoas de um mesmo país começam a se matar por causa de um ódio fabricado há muito tempo pelo colonialismo, entre os tutsis e os hutus, que estes diziam que os tutsis não amavam o país, que eles não eram verdadeiros ruandeses, entre outras coisas, numa ideologia racista que os levou a matar as pessoas, que negava que nós éramos irmãos. Eis a razão do ódio, eis por que mataram.
Pode-se dizer que a humanidade de certa forma fracassou em Ruanda?
Sim, eu não creio que tenha contribuído para a credibilidade das Nações Unidas ou dos países que poderiam intervir e que nos abandonaram. As organizações governamentais, toda a humanidade nos abandonou ao nosso próprio destino. Todos nos abandonaram, todos partiram com suas famílias em aviões.
As feridas da guerra foram curadas?
Atualmente no meu país há calma e segurança. As pessoas lutam muito para preencher o vazio deixado, pois o país foi verdadeiramente destruído. Quando há paz e segurança, as pessoas se perdoam e trabalham juntas para construir o futuro.
As pessoas que atacaram o seu orfanato (seis assistentes de Gisimba foram mortos durante o cerco) lhe pediram perdão?
Sim, verdadeiramente, o chefe dos milicianos – ele está na prisão – me pediu perdão e eu perdoei. Ele me pediu perdão e disse: “Rezemos todos como verdadeiros cristãos”. E eu o escutei.
Após o governo fechar os orfanatos, o senhor transformou sua instituição em um “after school”. Pode contar detalhes do trabalho?
Após as crianças terem sido levadas por decisão do governo para famílias de acolhimento, nós aderimos ao programa after school, que dá às crianças e aos jovens das camadas populares, que perderam os pais na guerra ou por causas naturais, meios de se desenvolverem e os encoraja a estudar e a amar a escola, em vez de ficar desocupados nas ruas. Aqui eles têm aulas de artes, de música e fazem esportes – há as crianças que gostam de futebol, as que jogam basquete e as que fazem voleibol. Temos 140 crianças de todas as idades, a maioria do primeiro grau, embora tenhamos também do maternal e do segundo grau.
O senhor já disse em entrevistas que decidiu não deixar Ruanda durante o genocídio por causa de seus amigos tutsis, que certamente morreriam depois de sua partida. Em algum momento durante o conflito duvidou dessa decisão? O senhor pensou em desistir e ir embora?
Minha mulher, Teresa, e eu nos mudamos com nossa jovem família para Ruanda, trabalhando com a Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (ADRA), na esperança de fazer parceria com o povo de Ruanda para construir uma vida melhor. Se os ruandeses precisavam de um parceiro, foi quando o genocídio contra os tutsis começou. Tragicamente, no entanto, foi quando os parceiros estrangeiros partiram. Decidimos que não poderíamos deixar amigos ruandeses que se tornaram como uma família, sabendo que seriam mortos simplesmente por causa de seus cartões de identificação de tutsi. Somos muito gratos pelo fato de as duas pessoas em nossa casa terem sobrevivido. Já me perguntaram antes se alguma vez duvidei ou me arrependi da decisão de ficar e posso dizer honestamente que não.
Foi também uma questão de consciência, ter de viver o resto da vida com a decisão de partir?
A decisão de ficar não foi fácil, mas era clara. Não me lembro de pensar em como me sentiria pelo resto da vida se não ficasse.
Como foi ver o país que uma vez foi seu lar se transformar em um cenário de massacre, em que vizinhos assassinaram vizinhos sem nenhum problema?
Com Ruanda foi amor à primeira vista quando descemos do avião pela primeira vez, em 1990! As forças que impulsionaram o genocídio trouxeram uma transformação revoltante. E, à primeira vista, você poderia pensar que vizinhos estavam matando vizinhos com entusiasmo, sem remorso. No entanto, quando você olha mais a fundo, não é tão simples. Muitas pessoas não queriam ser identificadas com o inimigo, os tutsis, que estavam sendo agressivamente caçados e massacrados. A ideia de ser jogado nessa classe de "traidor" aterrorizou muitas pessoas. Os pais estavam especialmente temerosos pela vida de seus filhos. No entanto, enquanto alguns eram movidos pelo medo, havia aqueles que pareciam fazer esforços extraordinários para se sobressair na tortura e no massacre brutal. Eles estavam constantemente trabalhando para aumentar a raiva e o ódio em suas comunidades. Eu sempre me perguntei onde estavam os pacificadores, os líderes espirituais e educacionais locais. Para onde eles foram? Infelizmente, em muitos casos, eles uniram forças com os líderes do genocídio. Houve exceções, no entanto. Uma delas morreu recentemente, com mais de 100 anos. Zura (Karuhimbi, morreu em dezembro de 2018) era considerada idosa em 1994. Ela tinha um cartão de identificação hutu, a ocupação de curandeiro tradicional e uma reputação de ser possuída por espíritos malignos. Ela usou essa reputação para proteger com sucesso 17 pessoas em um pequeno abrigo para seus animais. Quando os assassinos chegaram, ela se levantou para eles sacudindo uma cabaça seca cheia de pedrinhas e ameaçando-os com o aterrorizante nome de Nyabingi (uma deusa guerreira).
O senhor diz em uma de suas palestras que nem todo mundo queria matar. O que, na sua opinião, aconteceu em Ruanda?
Eu acredito que sempre que nós humanos nos envolvemos em ações desumanas há uma luta acontecendo em nossas mentes. Eu acredito que nós preferiríamos fazer um amigo a uma briga. O “coquetel” perverso que pode nos levar a destruir uns aos outros vai ter ingredientes diferentes em proporções variadas para cada indivíduo. O ingrediente mais comum é o medo. O medo que vimos não foi apenas extremamente eficaz durante o genocídio, mas seu poder se manifesta diariamente em torno de nós. Nós vemos isso sendo usado para manipular e coagir nossos pensamentos, sentimentos e ações em tudo. Acho que temos um enorme desejo de segurança. Quando estamos convencidos em pensar em outro grupo como uma ameaça, nós quase que automaticamente os empurramos para dentro de um trem imaginário em nossa mente e apontamos esse trem para qualquer pista que possamos encontrar para tirá-lo de nossas vidas. Foi aí que a ideia começou a se formar em minha definição de onde vem o genocídio: O genocídio vem do pensamento que diz que meu mundo seria melhor sem você nele! “Meu mundo” é uma construção falsa. Uma maneira de pensar que devemos trabalhar constantemente para nos afastarmos, enquanto construímos o pensamento do “nosso mundo”! "Nosso mundo", uma maneira compartilhada de olhar para a vida, que se concentra na resolução de problemas inclusivos, e não na exclusividade. E, claro, existem outros ingredientes para esse “coquetel” genocida. Coisas como ganância e obediência à autoridade. No entanto, acredito que está claro que, ao analisarmos cada ingrediente, veremos um poderoso link para a segurança. Nossa segurança é uma prioridade absoluta e é completamente compreensível. A chave, no entanto, para a segurança sustentável é quando fazemos disso uma prioridade para todos, não apenas para nós mesmos.
O senhor é responsável por salvar um orfanato e as cerca de 400 pessoas que estavam escondidas lá. O que o fez atravessar a cidade, enfrentar bloqueios e tiroteios, para ir até lá?
Nunca fiz nada sozinho durante o genocídio. Minha mulher estava lá comigo quando tomamos a decisão de ficar. Eu tinha um pastor ruandês e sua mulher em minha casa me aconselhando - eles também ajudavam a encontrar comida para todos na casa. Eu tinha dois colegas ruandeses da ADRA que trabalharam comigo para trazer comida, água e remédios para três grupos de órfãos ao redor da capital, Kigali. Eu até mesmo estabeleci relações com aqueles que participaram do genocídio em nossos esforços para trazer alívio àqueles que sofriam. Então, no dia em que chegamos ao orfanato de Gisimba, onde estavam mais de 400 crianças e viúvas, e nos encontramos rapidamente cercados por um esquadrão de extermínio de cerca de 50 milicianos fortemente armados, eu não estava sozinho. Eu tinha um colega da ADRA e um oficial de segurança do governo comigo. Por alguma razão, a milícia manteve suas posições em torno do perímetro do orfanato por duas ou três horas. O impasse finalmente chegou ao fim quando, por meio de uma série de escolhas e sugestões bizarras, acabei pedindo ao primeiro-ministro (Jean Kambanda) - um dos responsáveis pelo genocídio - que impedisse o iminente massacre. E ele fez isso! Todos os dias havia algo inesperado, mas eu estava aprendendo rapidamente o poder do que poderia ser chamado de "encontrar aliados entre o inimigo".
Por que, na sua opinião, o mundo deu as costas a Ruanda?
Quando o genocídio começou, havia 2.500 soldados da ONU no pequeno país de Ruanda. Eles estavam lá passando a mensagem de que o mundo era solidário a Ruanda enquanto trabalhava para reconstruir o país após 3 anos de guerra. Em um movimento inacreditável, quase da noite para o dia, o Conselho de Segurança da ONU votou pela retirada desses soldados. Eles abandonaram milhares de famílias que recorreram a eles em busca de proteção. Esses terríveis massacres poderiam ter sido evitados! Eles poderiam ter cumprido a promessa que o mundo fez depois do Holocausto - “nunca mais!”. Mas, nas palavras do general Anyidoho, o vice-comandante da força das tropas da ONU em Ruanda, “não havia vontade política”. Ou, como disse um diplomata americano, “a América não tem amigos, só tem interesses. E não havia ‘interesses’ em Ruanda”. Como uma comunidade global, demos as costas para Ruanda porque não havia valor econômico, militar ou político lá. Nós nos recusamos a ver o valor das vidas de Ruanda.
Há perdão para o que aconteceu lá, na sua opinião?
Perdão significa tantas coisas diferentes para todos nós. Quando falo de perdão, gosto de começar com uma definição muito básica: o perdão é um ato ou processo de se libertar da raiva e do ressentimento em relação a alguém por uma falta, um erro ou uma ofensa. Trabalhando com essa definição, sim, eu absolutamente acredito que as pessoas em Ruanda, assim como muitos de nós profundamente ligados a Ruanda, estão se libertando do poder controlador da raiva e do ressentimento. Alguns encontram essa libertação participando de “experiências compartilhadas” entre os perpetradores do genocídio e aqueles que tiveram familiares e amigos assassinados. Projetos agrícolas, assim como outros projetos de desenvolvimento comunitário, são tocados em todo o país. A libertação começa no aprendizado das histórias e segue os exemplos de corajosos que não esperaram desculpas ou expressões de remorso, mas superaram a raiva e o ressentimento, a fim de construir um futuro melhor para seus filhos. “Procurar pelo bem” tornou-se minha ferramenta número um para me libertar da raiva e do ressentimento e avançar para uma cura mais profunda. Buscando o bem nas pessoas, nos lugares, nos eventos, constantemente construindo caminhos neurais celebrando e expressando apreço pelo bem. Eu adotei a antiga crença de que “bondade” não é uma qualidade de vida, é a essência da vida! Sem bondade, deixaríamos de existir!
Quantas vezes o senhor voltou a Ruanda e o que encontrou?
Tenho o privilégio de regressar a Ruanda uma ou duas vezes por ano. Eu levo professores que ensinam sobre o genocídio ruandês contra os tutsis. Eles conhecem pessoas que viveram o genocídio e ouvem as histórias em primeira mão. Várias vezes, agora, tive o privilégio de frequentar escolas que querem levar seus alunos para aprender as lições de vida de Ruanda. Um aluno saiu dizendo: “Em Ruanda, aprendi que o que você faz em seguida é o que te define”. A expressão “em seguida” faz uma diferença tão poderosa. Não precisamos ser definidos por nossas piores escolhas e ações. Em quase todas as viagens encontro alguém que não vejo desde o genocídio. É especialmente emocionante e recompensador conhecer crianças dos orfanatos que agora são adultos e ver como alguns se tornaram profissionais de saúde, professores, advogados, músicos e até organizadores de casamentos! Um jovem professor de música que sobreviveu no orfanato conosco é hoje diretor do orfanato de Gisimba. Ruanda está se reinventando, construindo um hábitat em que a Justiça restaurativa não é apenas possível, mas poderosamente demonstrada todos os dias!
O senhor poderia falar mais sobre a sua fundação World Outside My Shoes?
A World Outside My Shoes é uma organização de desenvolvimento educacional e profissional sem fins lucrativos. Nós usamos histórias para inspirar e equipar as pessoas para entrarem no mundo do “outro”. O "outro" pode estar sob nosso próprio teto ou do outro lado do globo. Nosso objetivo é capacitar as pessoas nas escolas, nos locais de trabalho e nas comunidades para buscar e acolher diferentes perspectivas e formas de aprendizagem, de modo a se darem bem e prosperarem pacificamente. Nós exploramos essas diferentes perspectivas em um ambiente de respeito, empatia e inclusão.
“Meu pai, Cosma, tinha 79 anos; minha mãe, Stefania, devia ter 74 anos; minha irmã mais velha, Judith, e seus quatro filhos, não sei mais exatamente quantos anos as crianças tinham; meu irmão Antoine, e sua esposa, eles tinham nove filhos, o mais velho com 20 anos, o mais novo com 5; Alexia, seu marido Pierre Ntereye, e quatro dos seus filhos, entre 10 e 2 anos; Jeanne, minha irmã mais nova, seus quatro filhos: Douce, 8 anos, Nella, 7 anos, Christian, 5 anos, Nénette, 1 ano, e o bebê do qual ela estava grávida de 8 meses;Eu contava e recontava. Somavam 37.”Do livro Baratas
Scholastique Mukasonga foi escolhida por sua família para sobreviver. Ela tinha apenas 17 anos quando, junto com um dos irmãos, André, foi para o Burundi em meio ao golpe de 1973 em Ruanda. Naquele ano, o general Juvénal Habyarimana tomou o poder de Grégoire Kayibanda (ambos hutus). Pela lei de cotas nas escolas, instituída na mesma época, os tutsis, como ela, não conseguiam estudar (de acordo com a legislação vigente então, como eram o povo minoritário, cerca de 15% da população, eles tinham direito a poucas vagas nas escolas do governo e também o emprego era escasso). “Eu não tinha mais futuro em Ruanda”, afirma ela por e-mail ao Estado da França, onde mora. “Meus pais decidiram que eu deveria me exilar no Burundi. Talvez pensaram também que eu carregaria a memória deles, dos que ficaram.”
Ela viu sua família pela última vez em 1986, oito anos antes do genocídio que mataria quase todos: dos parentes que ficaram em Ruanda, sobraram apenas quatro sobrinhas e um cunhado. No Burundi conheceu o marido, um francês, se casou e foi para o Djibouti, pequeno país encravado entre Eritréia, Somália e Etiópia. De lá viu o genocídio varrer 800 mil pessoas de sua etnia, incluindo seus pais e irmãos, em apenas cem dias. Em um de seus livros, Baratas (de 2006, lançado no Brasil em 2018), ela se pergunta: “Como continuei vivendo o meu dia a dia enquanto eles eram assassinados?” Scholastique se formou em Serviço Social, mas se tornou escritora, sempre falando sobre Ruanda e suas particularidades sociais. “Tentei com meu livros cumprir o dever de carregar a memória dos meus pais, cumprir com o que eles esperavam de mim.”
Hoje, 25 anos depois do massacre, ela volta com frequência a Ruanda - a viagem mais recente foi em setembro do ano passado, para as filmagens de Nossa Senhora do Nilo, filme baseado em seu quarto livro, de mesmo nome. “Meus livros são esperados pelos jovens de lá, que dizem: ‘Não é seu livro, é nosso livro’.” Ela também sempre vai a Gitagata, no sudeste de Ruanda, já na direção do Burundi, local para onde sua família foi mandada em uma espécie de exílio, em 1960, após a deposição do rei tutsi Kigeri 5.º, e onde todos morreram sem deixar rastros - a casa onde viviam foi saqueada e depois tomada pelo matagal.
“Em vão, escavei a cada ano à procura de um traço de minha família. Infelizmente, a vegetação tudo apagou e se tornou a cada ano mais impenetrável”, diz. “Mas não fui ingrata: creio ter feito o que meus pais esperavam de mim.” Sobre o perdão a quem participou do massacre, é direta: “Como para Shoah (Holocausto), ou para o tráfico negreiro, perdoar pressupõe que há um pedido de perdão. Por ora, só podemos nos felicitar com o trabalho de reconciliação iniciado originalmente pelas próprias vítimas.”
Como a senhora vê a situação de Ruanda hoje, 25 anos após o massacre?
O renascimento de Ruanda após a tragédia do genocídio dos tutsis, em 1994, um milhão de mortos em três meses, espanta o mundo inteiro. A prioridade para os sobreviventes, como para todos os ruandeses, era criar um espaço de vida em comum, de comunidade. Os diferentes componentes da sociedade ruandesa, tutsis, hutus e twas, falam a mesma língua, vivem uns ao lado dos outros e têm a mesma cultura. Para os sobreviventes, e mesmo para os carrascos, Ruanda deveria continuar a existir. A reconciliação era necessária e a Justiça, indispensável. Os ideólogos e os comandantes do genocídio foram na maioria julgados pelo tribunal internacional constituído em Arusha, na Tanzânia, criado logo depois do genocídio, a partir de novembro de 1994. Grande número de executores passou pelos tribunais inspirados na Justiça tradicional – gacaca –, que resolviam litígios entre vizinhos. A palavra era dada aos carrascos e às vítimas. Em um país em que a pena de morte fora abolida, eram importantes sobretudo as confissões e o arrependimento do assassino. Ruanda se tornou modelo para os países africanos. O visitante constata o desenvolvimento econômico, a luta implacável contra a corrupção, o lugar que têm as mulheres. Um serviço público foi criado para erradicar a corrupção. Nas últimas eleições, 54% de mulheres foram eleitas. A segurança que reina em Kigali (capital do país) leva as grandes empresas a estabelecerem lá suas sedes. Ruanda sonha ser a pequena Singapura africana.
O que aconteceu em Ruanda que transformou vizinhos em assassinos? Aos olhos do mundo, parece um conflito repentino. Em seus livros, a senhora mostra que não é bem assim, que os problemas vêm do tempo da colonização. Mas o que determinou a ferocidade, o ódio e a crueldade que chocaram o mundo, na sua opinião?
A sociedade ruandesa tradicional é dividida em três categorias que se diferenciam essencialmente pelas atividades econômicas ao mesmo tempo concorrentes e complementares: os tutsis são pastores, os hutus, agricultores, e os twas, caçadores e ceramistas. Se a posse de vacas, objeto de prestígio, e a realeza sagrada ligada à categoria tutsi lhes davam uma certa proeminência, os hutus tinham um grande lugar como sacerdotes e estavam no comando de vastas chefaturas (territórios sobre os quais se exercia a autoridade de um chefe tradicional na África) quase independentes da Corte real. Os europeus - antropólogos, colonizadores e missionários - interpretam essa estrutura complexa em termos de raça. Cria-se para os tutsis uma raça sob medida tirada da Bíblia - os hamites -, raça quase branca, invasora, vinda da Etiópia ou de mais longe ainda, superior, em todo caso, ao resto da população, qualificada de “negra bantu”. Os colonizadores belgas aplicam a política do “comando indireto” à inglesa, apoiam-se essencialmente sobre uma minoria de chefes tutsis para fazer aplicar as leis coloniais detestadas pela população. No momento da independência (em 1962), os ideólogos racistas hutus, que haviam assimilado as histórias inventadas pelos colonizadores, consideravam que os tutsis eram estrangeiros que deviam ser enviados de volta para seu “país” ou talvez exterminados. Foi bem isso o que aconteceu em abril-junho de 1994.
Em seu livro Baratas, a senhora conta que foi escolhida por sua família, entre seus irmãos, para estudar e isso também determinou a sua sobrevivência. Essa escolha pela sobrevivência foi consciente na época?
Em 1973, o governo hutu de Grégoire Kayibanda (1962-1973) - em dificuldade – resolveu, para desviar a atenção de todos, expulsar da administração pública os funcionários tutsis e os alunos tutsis dos estabelecimentos escolares. Pogroms contra os alunos tutsis explodem na maior parte das escolas. Eu escapei por pouco da morte. Eu não tinha mais futuro em Ruanda. Meus pais decidiram então que para sobreviver eu deveria me exilar no país vizinho, o Burundi. Eu tinha para isso um passaporte que podia me salvar: eu sabia francês. Talvez, pensavam eles também, que eu carregaria a memória deles - deles que decidiram não escolher o exílio, como centenas de milhares de outros tutsis haviam feito. Eu tentei, com meus livros, cumprir esse dever.
A senhora volta com frequência ao país? Vai ao seu antigo vilarejo? Como está hoje? No ano passado, 24 anos após o genocídio, 18 mil corpos foram encontrados em valas comuns. As feridas ainda estão abertas? Vão se fechar?
Eu volto frequentemente a Ruanda, onde meus livros são esperados sobretudo pelos jovens estudantes. “‘Inyenzi’” (Baratas, seu primeiro livro), eles me dizem, “não é teu livro, é nosso livro.” Eu estive lá em setembro, entre outros motivos para as filmagens de Nossa Senhora do Nilo (filme baseado em seu quarto livro, lançado na França em 2012 e no Brasil no ano passado). E, depois, ir a Gitagata, o vilarejo de minha infância, para onde minha família foi deportada em 1960, é uma peregrinação que se impõe para mim. Em vão, escavei a cada ano à procura de um traço da minha família. Infelizmente, a vegetação tudo apagou e se tornou a cada ano mais impenetrável. Eu voltei à França me dizendo, no entanto, que não fui ingrata: eu creio ter feito o que meus pais esperavam de mim.
A senhora perdeu quase toda a sua família no genocídio. Consegue perdoar o que aconteceu? Há perdão para isso?
Como para Shoah (Holocausto), ou para o tráfico negreiro, perdoar pressupõe que há um pedido de perdão. Por ora, só podemos nos felicitar com o trabalho de reconciliação iniciado originalmente pelas próprias vítimas.
O mundo deu as costas a Ruanda em 1994, o que foi lamentado anos depois por ex-líderes mundiais, como Bill Clinton, na época presidente dos Estados Unidos. O que o mundo aprendeu com Ruanda? A senhora acha que as guerras na África continuam merecendo menos atenção?
A África é sem dúvida um continente esquecido. É o lugar das guerras obscuras, das fomes, do subdesenvolvimento. Ainda que sempre existam guerras como em todas as partes do mundo, a África é um continente em marcha. Como eu escrevi: o futuro está no Sul.
A senhora escreve para que a história não seja esquecida. Já contou a perseguição à sua família (em Baratas), fez uma bela homenagem à sua mãe (em A mulher de pés descalços) e contou sobre o sistema escolar de cotas imposto aos tutsis(em Nossa Senhora do Nilo. Em todos, a senhora traça um panorama social e político de Ruanda e de seu povo. Qual o seu próximo projeto?
Por enquanto, a estreia do filme baseado em Nossa Senhora do Nilo está programada para a primavera de 2019 e toda a minha atenção está dedicada a esse evento. Mas é claro que eu tenho ideias para um novo livro.
O lema “Justiça sem vingança”, de Simon Wiesenthal, o célebre sobrevivente do Holocausto que se tornou caçador de nazistas, estampa o site do Coletivo de Partes Civis para Ruanda, organização sem fins lucrativos com sede na França que reúne até hoje, 25 anos depois, provas contra os mentores do genocídio que escaparam para a Europa e lá vivem sem prestar contas com a lei.
Alain Gauthier e a mulher, Dafroza, fundadores da associação, passaram os últimos 22 anos na missão de reunir documentos e depoimentos para levar essas pessoas a julgamento. Não é um trabalho simples. “Quando descobrimos que um suspeito está na França, vamos para Ruanda, para os locais onde os crimes foram cometidos, em busca de testemunhas, familiares de vítimas, sobreviventes ou assassinos, todas as pessoas que podem nos fornecer informações sobre quem queremos processar”, conta Alain por e-mail ao Estado. Ele escrevia de Ruanda, onde estava no fim de janeiro exatamente para isso: reunir provas para tentar abrir um novo processo, em um paciente trabalho de formiguinha, que não tem data para acabar. “Continuaremos enquanto tivermos força, apesar de ser um trabalho cansativo e envolvente.”
Ele é francês, mas a mulher, ruandesa, perdeu quase toda a família no genocídio. Em 1997, começaram a reunir os depoimentos dos sobreviventes que se refugiaram na Igreja Sagrada Família, na capital, Kigali, um dos poucos lugares onde, apesar do elevado número de mortes, algumas pessoas foram poupadas pelos matadores. Desde então, trabalharam em pelo menos 30 casos, entre eles, o da ex-primeira-dama Agathe Habyarimana, considerada uma das principais responsáveis pelo massacre de 1994, que mora na França e ainda não foi julgada - o processo, segundo Alain, está em fase de instrução, apesar de a queixa contra ela ter sido entregue em 2007. “Pode-se dizer que ela é a imigrante ilegal mais célebre da França”, afirma. “Tememos que nunca seja julgada.”
Outro processo que ficou famoso e que teve a atuação do casal foi o de Pascal Simbikangwa, ex-oficial da Guarda Presidencial de Juvénal Habyarimana e também um dos mentores da chacina no país - ele foi acusado de usar a Rádio Des Mille Collines para incitar os assassinatos, entre outros crimes, e condenado a 25 anos de prisão por uma Corte francesa. Sobre o Tribunal Penal Internacional para Ruanda (ICTR), Alain vê condenações importantes, mas aponta falhas. “O tribunal condenou 64 pessoas e absolveu outras tantas, às vezes de forma incompreensível. Esse foi o caso do irmão de Agathe Habyarimana, Protais Zigiranyirazo (ex-governador da Província de Ruhengeri, ele foi acusado de ordenar bloqueios nas estradas). O tribunal reduziu penas. O processo se arrastou muito. Ele custou muito caro e poderia ter sido provavelmente muito mais eficaz. E começou-se a libertar os prisioneiros de forma antecipada, o que chocou os sobreviventes e todos os que acreditam na Justiça.”
Apesar de não ter sido diretamente ameaçado, Alain conta que testemunhas e sobreviventes ainda hoje sofrem intimidações em Ruanda e soube de pessoas que “rondavam” sua casa. Mas o pior, diz, vem dos insultos sofridos por intelectuais - franceses ou não. “Eles nos acusam de sermos caçadores de hutus, pontas de lança do governo ruandês (de Paul Kagame, ex-militar da FPR, que chegou ao poder após o genocídio). Mas não temos medo”, diz.
Para ele, a Justiça é “uma passagem obrigatória” para a reconciliação de Ruanda, mas não deve ser suficiente. “Os ruandeses são condenados a viverem juntos. Será necessário tempo para que os corações vivam em paz.”
O que o levou à busca por justiça em Ruanda? Pode detalhar seu trabalho no Coletivo de Partes Civis para Ruanda (CPCR)?
Em 1997, nós começamos recolhendo depoimentos de sobreviventes da Igreja Sagrada Família, em Kigali. Uma das primas de minha mulher fazia parte desses sobreviventes. Mas foi sobretudo a partir de 2001, na sequência do primeiro processo em Bruxelas, na Bélgica, que nós criamos o CPCR (Coletivo de Partes Civis para Ruanda, uma espécie de assistente de acusação na Justiça), com o objetivo de levar à Justiça as pessoas que moravam na França acusadas de terem participado do genocídio dos tutsis. Quando descobrimos que uma pessoa suspeita está na França, nós vamos para Ruanda, aos locais dos crimes, em busca de testemunhas, familiares das vítimas, sobreviventes ou assassinos, todas as pessoas que possam nos fornecer informações sobre quem desejamos processar. De volta, nós muitas vezes temos de fazer o trabalho de tradução, feito por minha mulher. Enviamos esses testemunhos em seguida aos nossos advogados (quatro escritórios de advocacia trabalham conosco), que são encarregados de redigir as queixas-crime e de submetê-las à Justiça. Existe um centro de crimes contra a humanidade no Tribunal de Grande Instância (TGI, corte responsável por julgar crimes contra a humanidade, terrorismo, corrupção e fraude fiscal) desde 2012. Em seguida, nós esperamos a decisão do juiz de instrução, que quase sempre decide abrir um inquérito. Até agora, nós já entramos com três dezenas de queixas.
Até quando pretende continuar com esse trabalho?
Não colocamos um limite de tempo para nosso trabalho. Nós continuaremos enquanto tivermos forças para fazê-lo, ainda que seja muito envolvente e cansativo.
O senhor pode detalhar o processo contra a ex-primeira-dama Agathe Habyarimana? Considera que é o mais importante em que a CPCR atuou? Por quê?
O caso Agathe Habyarimana é certamente importante, mas ainda hoje esse processo está sendo instruído depois da queixa que nós entregamos, em 2007! E nós temos poucas informações. A França recusou-lhe o status de refugiada política, recusou-lhe uma autorização para moradia. Pode-se dizer, de tanto que seu caso ficou conhecido, que ela é a “sem documento” (imigrante ilegal) mais célebre da França. Ela apelou para a CEDH (A Corte Européia de Direitos Humanos), que sempre demora muito para se pronunciar. Nós tememos agora que ela não seja jamais julgada. Seu caso é mais político do que os outros. A França a acolheu alguns dias depois do genocídio, no começo de abril (de 1994), com flores e mimos! Quando digo a França, eu quero dizer o governo francês de 1994.
O Tribunal Penal Internacional para Ruanda (ICTR, na sigla em inglês) condenou 64 pessoas, algumas delas consideradas personagens importantes no genocídio. Como o senhor vê a atuação do ICTR? Poderia ter sido mais eficiente?
O ICTR condenou 64 pessoas e absolveu outras tantas, às vezes de forma incompreensível. Esse foi o caso do irmão de Agathe Habyarimana, Protaisa Zigiranyirazo. O tribunal reduziu penas. O processo se arrastou muito. Ele custou muito caro e poderia ter sido provavelmente muito mais eficaz. E começou-se a libertar os prisioneiros de forma antecipada, o que chocou os sobreviventes e todos os que acreditam na Justiça.
Analistas internacionais disseram que, na época dos julgamentos pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda (que durou de 1995 a 2015), pessoas importantes estavam ameaçando testemunhas, o que poderia prejudicar esses julgamentos e as evidências de crime. O senhor já foi ameaçado? Pensou em desistir?
A ameaça contra as testemunhas, isso aconteceu durante o ICTR, e existe ainda agora em Ruanda e provavelmente em todos os lugares onde estão os "trabalhadores" do genocídio dos tutsis. Pessoalmente, nós não podemos dizer que fomos realmente ameaçados, ainda que soubéssemos que pessoas rondavam nossa casa. Nós recebemos sobretudo insultos, facilitados pelas redes sociais. Alguns intelectuais, franceses ou não, querem nos fazer passar por "caçadores de hutus", pontas de lança do governo ruandês… Mas as críticas não nos afetam e nós não temos medo. O medo não tem lugar entre nós. Nós não fazemos nosso trabalho com espírito de vingança. Mesmo se acontece algo que nos desencoraja, nossa determinação permanece intacta. No momento em que respondo a você, nós estamos em Ruanda preparando novas denúncias.
Um porta-voz do Human Rights Watch disse, em 2015, que, apesar dos resultados positivos, o maior problemas do Tribunal Penal Internacional para Ruanda (ICTR) foi não investigar supostos crimes cometidos também pela Frente Patriótica de Ruanda (FPR, liderada pelo atual presidente do país, Paul Kagame). O senhor concorda?
O objetivo que nós fixamos para nosso trabalho é o de processar pessoas suspeitas de terem participado do genocídio, e se nós podemos processá-las na França é por causa da jurisdição universal para esses casos garantida pela lei. O primeiro objetivo do ICTR foi o de julgar os genocidas: ele já teve muita dificuldade para fazer isso. Não é possível pôr os crimes que podem ter sido cometidos pela FPR no mesmo plano que o das vítimas do genocídio. Houve um genocídio, o dos tutsis. Crimes de guerra podem evidentemente terem sido cometidos: eu não conheço guerra limpa. O Human Rights Watch faz o seu papel, mas eu creio que, nesse caso, ele esquece a hierarquia dos crimes e que sua objetividade seja duvidosa.
Acredita que os julgamentos podem contribuir para a reconciliação do país? De que maneira?
A Justiça é uma passagem obrigatória para permitir a reconciliação em Ruanda. Mas ela provavelmente não será suficiente. Outras formas devem entrar em campo. Os ruandeses são condenados a viverem juntos. Será necessário tempo para que os corações vivam em paz. Será preciso um longo trabalho de educação para que as gerações futuras vivam em paz, para que os traumas não se transmitam aos mais jovens, familiares de vítimas ou filhos dos matadores.
Como vê a atuação da França no genocídio?
Muito se disse sobre o papel, não da França, mas do governo francês de 1994 (de François Mitterrand). Nós não cessamos de denunciar a cumplicidade política, diplomática e militar com o governo do presidente Habyarimana, depois com o governo interino, que cometeu o genocídio. Existem livros sobre esse tema. Será que podemos esperar um pouco de verdade do presidente (Emmanuel) Macron na ocasião do 25º aniversário?
Era ainda 1989 quando a médica Odette Nyiramilimo viu seu nome entrar para uma lista de persona non grata no Hospital Central de Kigali, onde trabalhava. Profissional reconhecidamente competente, perdeu o emprego porque é tutsi. Antes, ainda nos anos 70, enfrentou a política de cotas imposta à pessoas de sua etnia nas escolas e no serviço público e conseguiu estudar. Em janeiro de 1994, de volta a Ruanda depois de morar no Burundi e em outros países da região como funcionária da ONU, e logo percebendo o clima de insegurança nas ruas, prometeu a parentes e amigos que sairia do país até 15 de abril. Não teve tempo.
Assim que soube do assassinato do presidente Juvénal Habyarimana, no dia 6 de abril, Odette e o marido, que é hutu, decidiram fugir da capital, Kigali, para Butare, província no sul de Ruanda, única governada por um tutsi na época. Ela levou junto a irmã, uma das poucas tutsis membro do Parlamento, que na fuga foi reconhecida e fuzilada no meio da rua. Odette, o marido e os filhos escaparam subornando os milicianos. Passaram 21 dias escondidos em casa, até que receberam um telefonema do amigo Paul Rusesabagina, que mandou um militar buscá-los e levá-los ao Hotel Des Mille Collines, para onde correram tutsis, hutus moderados e os poucos estrangeiros que ficaram no país - e que no cinema virou Hotel Ruanda.
“Cheguei ao Mille Collines no dia 27 de abril de 1994 com meu filho mais novo. Meus outros filhos e meu marido chegaram no dia seguinte”, conta Odette ao Estado por e-mail de Kigali, onde mora. Cerca de mil pessoas estavam ali, cercadas pelos interahamwe (milicianos hutus), que montaram guarda do lado de fora do portão - não era possível sair. “Na minha opinião, estava tudo bem, mesmo que fôssemos mortos, pois pelo menos seríamos mortos junto com outras pessoas.”
Odette, que virou personagem do filme Hotel Ruanda, conta que a presença dos militares da Força de Paz da ONU dava alguma segurança aos ali abrigados. Rusesabagina, ex-gerente do hotel, chamado para contornar a situação e que se tornou ele mesmo um refugiado, negociava constantemente com altos comandantes do exército e do governo ruandês, oferecendo todo tipo de suborno, especialmente bebidas do recheado bar do Mille Collines. Mesmo assim, passaram por maus momentos: a água do hotel foi cortada, e as pessoas tiveram de usar a da piscina, homens faziam buscas aleatórias no lugar, tiros eram eventualmente disparados na direção dos quartos.
“Vendo militares do Exército da ONU também hospedados no hotel, esperava que pudéssemos ser salvos. Sempre esperávamos por uma eventual evacuação para um país estrangeiro, o que o general Roméo Dallaire (comandante da Força de Paz da ONU) tentou em 3 de maio de 1994, mas fracassou quando fomos parados no meio da estrada pelos assassinos (após muitas negociações, eles tiveram de voltar para o hotel)”, lembra Odette. Ela e sua família só conseguiram sair do Mille Collines no dia 28 de maio. “Os militares da ONU conseguiram nos levar para uma zona segura do Exército Patriótico de Ruanda, a 25 km de Kigali.”
Em março de 2000, se tornou ministra de Assuntos Sociais do governo do ex-rebelde da Frente Patriótica de Ruanda (FPR) Paul Kagame, cargo que ocupou até 2003. Hoje, Odette engrossa a impressionante estatística de um dos Parlamentos mais femininos do mundo: ela é senadora, Casa ocupada por 40% de mulheres - na Câmara, elas são maioria: 64%. “Depois do que aconteceu em Ruanda, e do modo como as mulheres foram corajosas na luta contra o mal e pela reconstrução do país, os homens as veem como parceiras iguais”, diz, para explicar os números. “Há um sentimento de igualdade entre os gêneros, o que fortalece o desenvolvimento econômico e humano.”
Como está Ruanda hoje? A senhora acredita que as feridas foram fechadas, 25 anos depois?
Ruanda está indo muito bem. O processo de unificação e reconciliação continua. É claro que não podemos dizer que as feridas estão fechadas depois de 25 anos. Feridas sempre deixam cicatrizes, que podem doer pelo resto da vida.
Por que, na sua opinião, o mundo deu as costas para Ruanda em 1994?
Acredito que o mundo virou as costas para Ruanda porque naquela época, para os chamados "países desenvolvidos", Ruanda era um país pobre e não valia nenhuma intervenção deles. E o que aconteceu em Ruanda foi apoiado por alguns países poderosos, outros não conseguiram mexer um dedo!
A humanidade falhou em Ruanda?
É claro que, sim, a humanidade fracassou em Ruanda. Teria sido tão fácil impedir o genocídio, até mesmo preveni-lo... mas o mundo não tinha interesse em fazer nada.
A senhora poderia contar brevemente como foram os dias em que passou no Hotel des Mille Collines (que deu origem ao filme Hotel Ruanda), cercada por assassinos que esperavam, do outro lado do muro, para matar todos os que estavam ali refugiados?
Cheguei ao Hotel Mille Collines no dia 27 de abril de 1994 com meu filho mais novo. Meus outros filhos e meu marido chegaram no dia seguinte. Fiquei aliviada quando nos reunimos com muitos outros que já estavam lá antes de nós. Na minha opinião, estava tudo bem, mesmo que fôssemos mortos, pois pelo menos seríamos mortos junto com outras pessoas. E, por outro lado, vendo militares do Exército da ONU também hospedados no hotel, eu esperava que pudéssemos ser salvos. Sempre esperávamos por uma eventual evacuação para um país estrangeiro, o que o general Roméo Dallaire (comandante da Força de Paz da ONU, que permaneceu no país) tentou em 3 de maio de 1994, mas fracassou quando fomos parados no meio da estrada pelos assassinos (após muitas negociações, eles tiveram de voltar para o hotel). Nós finalmente conseguimos ser resgatados no dia 28 de maio de 1994, os militares da ONU nos levaram para uma zona segura do Exército Patriótico de Ruanda, a 25 km de Kigali.
A senhora é médica, ex-ministra e senadora eleita. Por que resolveu entrar para a política?
Aceitei entrar para a política porque sentia que o país precisava de alguém como eu, que o conhece bem, e tinha a sensação de que poderia trazer alguma mudança nas políticas e nos programas que estavam sendo implementados. Espero ter feito o meu pouco até agora!
Ruanda é atualmente conhecido por ter o Parlamento mais feminino do mundo, com quase 70% de deputadas e 40% de senadoras. Como isso aconteceu?
Acho que, depois do que aconteceu em Ruanda, e do modo como as mulheres foram corajosas na luta contra o mal e pela reconstrução, os homens as veem como parceiras iguais. O encontro de Pequim, em 1995 (quarta Conferência Mundial da ONU para Mulheres, realizada na China), também aconteceu em boa hora, quando Ruanda estava recomeçando das cinzas.
O que, na sua opinião, significa um Parlamento mais feminino, em termos de políticas públicas?
O Parlamento de Ruanda, composto por 64% de mulheres (e não 70%), significa muito para os ruandeses, especialmente para as mulheres e para as jovens. Elas sabem que sua voz pode ser ouvida e que também podem chegar lá. Há ainda esse sentimento de igualdade entre gêneros, o que fortalece o desenvolvimento humano e econômico.
O presidente Paul Kagame está em seu terceiro mandato e analistas internacionais avaliam que não há liberdade política em Ruanda. O que a senhora diz sobre isso?
O que eles dizem não é verdade e eles sabem bem disso! O presidente Kagame é o melhor presidente que Ruanda já teve! Eu posso dizer até mesmo que a África já teve! E eu não sou um membro de seu partido! Eu confirmo, há liberdade política em Ruanda.
Ela nasceu quase ao mesmo tempo em que 800 mil pessoas morriam em Ruanda. Vinte e cinco anos atrás, com poucos meses de vida, Axana Uwimana já era uma refugiada no Burundi e depois na França, onde sua família viveu até ela completar 3 anos. Desde 1997, a jovem mora no Brasil, para onde veio com pai, mãe e irmão pouco mais velho que ela. Fala português sem sotaque, fez amigos e faculdade de Serviço Social aqui, mas sente que um pedaço grande de sua vida está na África, se comunica em uma língua incompreensível para ela e vive de um modo completamente diferente do seu, analógico - ou “ancestral”, como prefere dizer.
“Minha primeira língua é o português. É uma forma de minha mãe dizer que é preciso seguir em frente”, conta por telefone de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, onde mora com a mãe e o irmão. Pelo mesmo motivo, o de seguir em frente, seus pais não passaram os costumes e tradições de seu país de origem. Axana, no entanto, pode dizer que, hoje, se sente mais africana do que brasileira. “É difícil levantar a bandeira de Ruanda, pois não vivi a cultura de lá. Mas hoje me sinto mais africana, essa identidade para mim é maior”, explica. “É muito complexo. Gosto da cultura brasileira, me adaptei muito bem, o brasileiro é caloroso, mas a cultura é muito diferente.”
Ela voltou para conhecer Ruanda - e os parentes que ficaram por lá - só em 2013. Uma viagem de reconhecimento e também despedida: sua avó morreria cinco anos depois. “Me senti em casa lá, acolhida por eles”, afirma. “Eles se interessaram por mim, pela minha história. E eu rompi com ideias pré-concebidas que tinha da África.” Foi também onde pôde ampliar o significado de família, até então restrito a três membros e um punhado de histórias de tios, primos e outros parentes distantes e desconhecidos. “Esse contato familiar foi muito rico para mim, que não cresci com esse vínculo familiar.” Tanto que ela até tentou ficar de vez, mas esbarrou na língua. “Teria de perder um ano aprendendo, então meus pais falaram para voltar ao Brasil. Mas tenho vontade de ir para Ruanda fazer um trabalho social, algum projeto com as famílias que sobreviveram.”
Uma prima já abriu caminho para isso. Sonia Rolland, que foi miss França em 2000, fundou, com o dinheiro do concurso, uma ONG em Ruanda que ajuda crianças órfãs. “Ela me inspirou a voltar e construir alguma coisa, deixar uma história.” Sobre o país onde nasceu e que só conheceu depois de adulta, viu um povo reconciliado com suas dores e histórias. “As pessoas simplesmente são o que são, hutus, tutsis, não tem diferença. Para o ruandês, ele é apenas isso: ruandês.”
Você veio para o Brasil com 3 anos, em 1997. Imagino que a adaptação tenha sido mais fácil para você do que para os seus pais. Como se vê hoje, mais brasileira ou mais ruandesa?
Essa é a pergunta que não quer calar. Chegar com 3 anos foi difícil para mim, mas a situação também foi difícil para os meus pais. Eles não conseguiram passar a cultura deles, modo de se vestir, de se portar, essas coisas, pra gente. Hoje, eles falam por que não ensinaram a língua materna quando éramos crianças, preferiram que a gente aprendesse português como primeira língua, para não ter esse conflito cultural muito forte. A minha infância foi boa no sentido de a gente ter condições de tocar a vida em frente. Mas acho que em nenhum momento eu me encaixei. Creio que é porque eu acredito nas minhas origens, mas não consegui vivê-las de fato. Acho que perdi muito. Ser brasileira é só no papel mesmo, mas é difícil também levantar a bandeira de Ruanda, pois não vivi a cultura de lá. Hoje, no entanto, me sinto mais africana, essa identidade é maior. É muito complexo. Gosto da cultura brasileira, me adaptei muito bem, o brasileiro é caloroso, mas a cultura é muito diferente.”
E como foi voltar para Ruanda?
Foi maravilhoso, no sentido de romper com tudo o que eu pensava aqui no Brasil, aquela coisa de: “Ah, a África não tem isso, a África não tem aquilo”. Quando fui, tive a oportunidade de conhecer minha avó, meus tios e primos e esse contato familiar foi muito rico. Eles estranharam um pouco, mas ao mesmo tempo me reconheceram de certa forma. Se você vai para o interior, eles ainda vivem das plantações de feijão, mandioca, você vive a comunidade, compartilha muitas coisas que aqui acaba deixando de vivenciar, aqui você tem certas regras que tem de seguir. Lá a liberdade de você poder ter a sua vida, eles resgataram isso, apesar da guerra, esse sentido de comunidade. Me senti em casa por isso. Poderia estar na casa do primo de um primo, não conhecendo ninguém, quem estava junto fazia questão de falar comigo.
Se sentiu acolhida?
Eles me acolheram, se interessaram por mim e tinham muita história para contar. A gente conversava muito por mímica, porque eu não falo o dialeto de lá, o kinyarwanda , mas eles me mostraram a história deles, como são felizes com mais ou com menos. Lá você até hoje constrói o seu briquedo com o que tem, independentemente da condição financeira ou dos bens materiais. Nesse sentido foi bom, me senti acolhida por eles. Foi muito bom também ver o quanto fui privilegiada por não estar lá (em 1994). Foi tudo tão tranquilo que tentei até transferir minha universidade para lá, acabou não acontecendo, porque eu teria de passar um ano aprendendo a língua, então meus pais falaram para eu voltar para o Brasil. Queria muito voltar para lá e trabalhar com algum projeto social, com as famílias que sobreviveram.
Foi a única vez que você foi?
A única. Minha mãe queria ir para ver a mãe dela, que acabou morrendo no ano passado. Então ela teve oportunidade de se despedir, de encontrá-la, foi bem legal. Eu nem sabia da dimensão de ir para a África. Chegando lá é que pude ter a dimensão do que é ter primos, estar com a avó do lado, tios querendo saber como a gente vive aqui no Brasil, se eu estava bem. Em nenhum momento me senti mal.
O que você sentiu indo para lá, há ainda algum tipo de conflito entre hutus e tutsis, apesar de a diferenciação étnica ser proibida?
Quando fui, essa questão de ter crescido no Brasil e ir para lá me abriu os olhos do quanto não há diferença. Entre eles acho que ficou muito afeto. Percebo que todos os que quebraram, romperam as diferenças entre eles, que lutaram por isso, têm muitas cicatrizes, corporal e mentalmente falando, mas com a vontade de acabar com essa diferença, de um povo se matar, uma coisa tão pesada e pensar que eles estavam se matando por “N” coisas, por outros motivos. E depois disso, eles olharem uns para os outros e verem que estão sobrevivendo, e compreenderem que o que passou foi uma catástrofe, uma coisa muito pesada. Como o próprio povo se mata entre si? Fiquei pensando isso lá, que nenhum país está livre de uma guerra civil, de os homens se matarem. Guerra não surge do nada, também é provocada. Eles compreenderam que a vida é muito mais importante do que guerrear, do que as questões de terra. Meus parentes que voltaram conseguiram seguir em frente da melhor forma possível, criando seus filhos, estudando, buscando algo fora do círculo de violência, e acho que é um passo muito grande para quem vivenciou a guerra sobreviver mais uma vez. Sobreviver a uma guerra é muito forte, não consigo nem pensar como é isso. Tem de ter muita coragem, tem de ser muito guerreiro.
Você pensa em voltar a Ruanda?
Me formei em Serviço Social e, chegando lá, vi que a necessidade não é de uma cesta básica, mas de nutrir uma cultura, não deixar aquela cultura morrer, apesar dos milhões de mortos, a cultura prevalece. Uma prima minha, Sonia Rolland, foi miss França 2000, ela também é fugitiva de guerra. Com isso, ela pegou boa parte do dinheiro que ganhou e fundou uma ONG em Ruanda, um tipo de orfanato com escola, que abriga crianças que não têm pais. Quando fiquei sabendo, me senti inspirada a voltar a Ruanda e construir algo, para deixar de história. Para mim seria legal poder voltar e resgatar isso, essa questão da arte, da cultura, da dança, isso é muito vivo lá, um projeto para não apagar a história deles, nessa perspectiva de construção, junto com eles, de um projeto comunitário.
Qual foi a maior diferença que você viu lá?
A coisa da família é uma questão ancestral, que vai muito além da árvore genealógica.
Os personagens desta reportagem indicaram filmes e livros que, para eles, ajudam a entender o que aconteceu em Ruanda antes, durante e depois do genocdio. Veja os principais:
LIVROS
FILMES