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49Do julgamento do caso do medicamento para combate a AIDS ao qual se opunha o município de Porto Alegre, para os dias de hoje, já se passou quase duas décadas. Em abril de 2010, mais uma ação civil pública era ajuizada. O caso era semelhante à grande maioria que há no Brasil.
50O cidadão que precisava do medicamento era beneficiário de auxílio-doença, no valor de R$ 851,70. Era o Ministério Público Federal quem ajuizava a Ação a fim de obrigar a União a importar o medicamento Isentress (Raltegravir) para atender ao senhor de quase cinqüenta anos de idade, paciente infectado por HIV e resistente aos demais medicamentos que possuíam prescrição médica na Subseção Judiciária de Blumenau, Estado de Santa Catarina.O paciente, há 10 anos, submetia-se à terapia antirretroviral. Diante de um quadro de regressão relativo à sua capacidade imunológica, o infectologista receitou os medicamentos Isentress (Raltegravir) e Darunavir, ressaltando a imprescindibilidade do novo esquema de tratamento, porque o paciente apresentara falha terapêutica e clínica com os antiretrovirais utilizados.O médico de referência em genotipagem em Santa Catarina indicou que, para situações semelhantes à do paciente, recomendava-se o uso de Enfuvirtida (Fuzeon) e Darunavir (Prezista).
51Todavia, asseverou que o paciente havia feito “uso de Enfuvirtida ao que parece, sem sucesso, uma vez que a carga viral encontra-se significativamente alta. O uso single de Darunavir não tem demonstrado até agora, em estudos, uma eficácia aceitável nesses casos”.Acerca da eficácia da prescrição do medicamento Intelence (etravirine), o médico ponderou que (i) havia adequação aos parâmetros médicos como “alternativa mais recente para pacientes multifalhados” e (ii) a sua associação ao medicamento raltegravir “poderia até, se utilizada de forma correta e contínua, impedir o aparecimento de outros códons tornando o tratamento duradouro e eficaz”.Havia, no processo, comprovação de que o remédio era imprescindível para o senhor e a sua não utilização importaria em risco à sua saúde de forma direta.
52A perícia médica dizia, ainda, que se o paciente interrompesse o uso da medicação ou esta medicação não mais fizesse efeito benéfico para o paciente, o mesmo poderia apresentar queda acentuada de sua imunidade, fazendo com que viesse a apresentar alguma infecção oportunista que o levasse ao óbito.O juiz atendeu ao pedido feito posteriormente e incluiu o medicamento Intelence, cujo princípio ativo é o etravirine, diante da revisão do esquema terapêutico prescrito ao paciente.De acordo com a decisão, a União deveria adquirir, por importação ou qualquer outro meio legal possível, os medicamentos ISENSTRESS (raltegravir) e Intelence (etravirine).
53Além disso, a União, Estado de Santa Catarina e Município de Blumenau deveriam fornecer, gratuitamente, ao paciente na quantidade inicial de 12 (doze) frascos de cada medicamento. A União se defendeu. Disse haver lesão à ordem, à saúde e à economia públicas. Também disse que a determinação de fornecimento dos medicamentos de alto custo inviabilizaria o adequado funcionamento do SUS, bem como prejudicaria o andamento dos serviços de saúde básica em relação ao restante da população.
54Para a União, “no momento em que se decide disponibilizar de forma ampla e gratuita os medicamentos destinados ao tratamento de HIV, com um custo final expressivo ao Poder Público, e sem a prévia elaboração de estudos técnicos indispensáveis à averiguação da sua real utilidade/necessidade, diminui-se a capacidade financeira do Estado de fornecer outros benefícios, também considerados relevantes, aos demais integrantes da sociedade”. Segundo a União, não havia comprovação da segurança e da eficácia do medicamento, que não possuiria registro na ANVISA, além da existência de outros esquemas terapêuticos oferecidos na rede pública para tratamento da AIDS. Disse que não haveria previsão orçamentária para a aquisição da medicação.
55Sustentou que as prestações de saúde devem ser executadas dentro da “reserva do possível e a possibilidade de ocorrência do efeito multiplicador da decisão”192. Havia, no processo, prova pericial demonstrando que o medicamento Etravirine (Intelence) era necessário e indispensável à manutenção da vida do paciente.
56Segundo o perito: “b) No momento a doença encontra-se estável, com relativa melhora clínica e laboratorial após o uso regular do esquema de medicações atual; c) se o paciente interromper o uso desta medicação ou esta medicação não mais fizer efeito benéfico para o paciente, o mesmo poderá apresentar queda acentuada de sua imunidade, fazendo com que venha a apresentar alguma infecção oportunista que o leve ao óbito; d) As medicações adequadas ao seu tratamento são as mesmas verificadas em seu exame de genotipagem, ou seja, são as medicações que ainda tem efeito inibitório na replicação do vírus. No caso, ritonavir, darunavir, raltegravir e etravirine; f) produzirá amenização da imunodeficiência, melhorando o quadro clínico, como já vem acontecendo. g) ambos com eficácia cientificamente comprovada e com registro na ANVISA.”
57O relator do caso, no STF, era o Ministro Gilmar Mendes.Para o Ministro, o direito à saúde é estabelecido pelo artigo 196 da Constituição Federal como (1) “direito de todos” e (2) “dever do Estado”, (3) garantido mediante “políticas sociais e econômicas (4) que visem à redução do risco de doença e de outros agravos”, (5) regido pelo princípio do “acesso universal e igualitário” (6) “às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.
58A despeito da afirmação da União de que o medicamento não possuía registro na ANVISA, em consulta ao sítio da agência reguladora, o Ministro Gilmar descobriu que o medicamento Intelence, cujo princípio ativo é a Etravirina, foi registrado sob o n.º 112363391, válido até 02/2014, o que atestaria sua segurança para o consumo. O Ministro registrou ainda que “não constar entre os medicamentos listados pelas Portarias do SUS não é motivo, por si só, para o seu não fornecimento, uma vez que a Política de Assistência Farmacêutica visa contemplar justamente a integralidade das políticas de saúde a todos os usuários do sistema”193.
59Percorrendo a legislação federal e a Constituição, o Ministro afirmou que “a Lei Federal nº 9.313/96 garante o acesso aos medicamentos antirretrovirais pelo SUS para todas as pessoas acometidas pela doença. A Constituição indica os valores a serem priorizados, corroborada pelo disposto nas Leis Federais 8.080/90 e 8.142/90.
60Tais determinações devem ser seriamente consideradas quando da formulação orçamentária, pois representam comandos vinculativos para o poder público”. Quanto à alegação da União de lesão à economia pública pelo fato de ter que fornecer um remédio ao paciente soropositivo, o Ministro registrou que “a União, apesar de alegar lesão à economia pública, não comprova a ocorrência de dano aos cofres federais, limitando-se a requerer a aplicação do princípio da reserva do possível. Por outro lado, inexistentes os pressupostos contidos no art. 4º da Lei no 8.437/1992, verifico que a ausência do fornecimento do medicamento solicitado poderá ocasionar graves e irreparáveis danos à saúde e à dignidade de vida do paciente”.
61Acerca do efeito multiplicador, o Ministro arrematou sua decisão dizendo: “A alegação de temor de que esta decisão sirva de precedente negativo ao Poder Público, com possibilidade de ensejar o denominado efeito multiplicador, também não procede, pois a análise de decisões dessa natureza deve ser feita caso a caso, considerando-se todos os elementos normativos e fáticos da questão jurídica debatida. Nesse sentido, ressalte-se que a Farmacêutica e Bioquímica Christiane Effting Kling Donini - funcionária do Ambulatório DST/AIDS Blumenau - informou que não havia notícia de requisições por parte de outros pacientes dos medicamentos Intelence (etravirine) e Isentress (Raltegravir)”.
62A presença do Judiciário é fundamental para a concretização do direito à saúde. Mirian Ventura, pesquisadora sobre Direitos Humanos e Saúde e estudiosa que desenvolve pesquisas sobre o tema judicialização da saúde parece ser uma fonte confiável para responder esta indagação. Para ela “O movimento de aids no Brasil conseguiu extrair do componente jurídico seu potencial transformador, impulsionando mudanças amplas e estruturais a partir do uso estratégico das leis nacionais, na perspectiva dos direitos humanos”.
63“As práticas de intervenção judicial desse movimento têm auxiliado outros movimentos a refletirem e redirecionarem suas linhas de ação. Na história brasileira recente nenhum outro movimento obteve um grau tão satisfatório de efetividade da legislação genérica nacional existente como o das pessoas vivendo com HIV/AIDS” – registra a Professora.
64Em 2005, o Ministério da Saúde divulgou o importante estudo denominado “O Remédio via Justiça: Um estudo sobre o acesso a novos medicamentos e exames em HIV/aids no Brasil por meio de ações judiciais Brasil. Segundo o Ministério “as vitórias na Justiça demonstram o reconhecimento do direito à saúde e do papel do movimento organizado na luta contra a aids e na defesa da cidadania”.
65O Ministério da Saúde conclui, no seu documento, que “ações e decisões judiciais são conseqüências do amadurecimento da organização da sociedade, de um lado, e, de outro, das deficiências da Administração Pública. São os mecanismos e o processo de incorporação de novos medicamentos na rede pública que devem ser melhor compreendidos, aperfeiçoados e agilizados”.
66O Executivo reconhece a importância do Judiciário como instrumento garantidor da participação da sociedade na reformulação das políticas públicas.