O gráfico abaixo mostra uma análise, baseada no trabalho do linguista João Bosco Bezerra Bonfim, que revela os temas que cada presidente enfatizou no discurso de posse ao Congresso. Os trechos da transcrição foram classificados em: cortesias, agradecimentos ou elogios; menções a problemas, perigos e inimigos; advertências; manifestações de regozijo ou apoio; proposições e conclamações; e exposições de crenças e valores.
Tradicionalmente, o pronunciamento do presidente eleito ao Congresso é um evento politicamente significativo – diante do parlamento, o novo chefe do executivo tem a oportunidade de apresentar as linhas gerais que seu governo deve seguir e quais são seus planos para a nação. Analisar o conteúdo do discurso permite entender quais são as ideias do mandatário para os próximos quatro anos.
Nesse contexto, como a fala de Bolsonaro se compara com as demais? No que ele se parece e como difere dos outros presidentes? Resposta: ela foi atipicamente curta e bastante focada em propostas e compromissos, ainda que genéricos. Enquanto os demais eleitos viam na pobreza, na desigualdade ou na inflação os principais problemas do país, o capitão preferiu falar da corrupção e de um suposto “viés ideológico” nas instituições nacionais.
Isso foi o que revelou um levantamento feito pelo Estado que, com base no trabalho de Bonfim, comparou a estrutura de todos os discursos de posse desde o restabelecimento das eleições diretas, em 1989.
O pesquisador, doutor em linguística pela UnB (Universidade Nacional de Brasília), escreveu o livro “Palavra de Presidente”, publicado em 2004 e disponível na biblioteca digital do Senado. A obra esmiúça todos os discursos de posse da história da República, de Deodoro da Fonseca (1889) até o primeiro mandato de Lula (2003): o autor avalia os pronunciamentos parágrafo por parágrafo e classifica cada trecho nas seis categorias citadas anteriormente.
Com base na metodologia desenvolvida por Bonfim, classificamos os discursos posteriores, do segundo mandato de Lula até o de Bolsonaro. No caso de Michel Temer, foi analisado seu primeiro pronunciamento como presidente em exercício depois do afastamento, de início temporário, de Dilma Rousseff durante o processo de impeachment. Mas o que exatamente procuramos nessas falas?
Elogios são os momentos em que o orador – ou seja, o presidente – reconhece e saúda a audiência, tanto a que está fisicamente presente quanto o público simbólico, distante ou imaginado. Podem ser referências a pessoas ou instituições, desde delegações estrangeiras que estão no prédio até o povo brasileiro.
Quando fala de problemas, o eleito está listando as ameaças e desafios que o País vai enfrentar em seu governo. Collor falou da inflação; Bolsonaro citou a corrupção e a criminalidade.
Nas advertências, quem discursa se dirige a supostos inimigos ou pessoas de quem deseja ver determinado comportamento. Pode ser um alerta de que o Brasil está diante de uma crise e de que o Congresso precisa ser ágil para enfrentá-la, por exemplo.
As manifestações de apoio servem para identificar quem são aqueles que se alegram com o eleito e quais são os motivos para celebração. Em 1990, Collor elogiou a possível abertura da Europa nas relações comerciais, por exemplo.
Crenças são trechos do discurso em que o presidente mostra sua visão de mundo. Tratam-se dos momentos em que o mandatário mostra sua identidade, as ideias em que acredita e os conceitos que rejeita. Lula, por exemplo, disse que sua posse marcava “o reencontro do Brasil consigo mesmo”. FHC citou intelectuais como Joaquim Nabuco e influências de sua família.
Por fim, proposições são as promessas e compromissos que o presidente assume. Podem ser genéricos, como o combate à inflação, ou específicos, como a expansão do programa Mais Médicos que Dilma sugeriu em 2015.
No gráfico interativo abaixo, toque ou passe o cursor sobre os trechos coloridos para ler o que foi dito pelo presidente
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O gráfico interativo acima permite explorar o que foi dito em cada trecho, além de mostrar quais momentos do discurso foram reservados para cada tema. Entretanto, como a duração dos discursos varia, é difícil comparar de forma precisa quais os assuntos dominantes de cada presidente eleito.
Esta é a função do consolidado abaixo. Para determinar os valores porcentuais, foi feita a contagem de caracteres do discurso dedicados a cada uma das seis categorias, entre todos trechos classificados na análise.
Ao assumir seu primeiro mandato, Fernando Henrique Cardoso foi o que mais falou sobre problemas. Em contraste, Dilma Rousseff evitou o assunto. Michel Temer se destacou pelos alertas: dedicou 27% do pronunciamento a advertências, praticamente o dobro do segundo colocado, Lula, com 14%. Jair Bolsonaro reservou quase 40% do discurso a propostas, só perdendo para Fernando Collor (53%) e para os dois discursos de Dilma Rousseff (45%).
Jair Bolsonaro
39% - Proposições
“Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um País livre de amarras ideológicas”
Jair Bolsonaro fez o discurso de posse mais curto desde Itamar Franco, com pouco mais de 1100 palavras. Dilma Rousseff, a última presidente eleita antes dele, falou quatro vezes mais. Além dos agradecimentos protocolares às autoridades presentes, o capitão saudou a Deus e a equipe médica que o atendeu após sofrer o atentado em Juiz de Fora.
O presidente passa pouco tempo construindo a própria identidade como orador: menciona de forma breve o slogan de sua campanha, o passado militar e afirma representar um governo sem “viés ideológico”. Esse último termo, aliás, figura com destaque no pronunciamento. “Amarras ideológicas” e “ideologia de gênero” são apresentados como ameaças graves ao País.
A maior parte da fala é dedicada a propostas e compromissos: ainda que não tenha apresentado nenhum programa de governo, Bolsonaro fala de valorizar as forças de segurança, facilitar o acesso de “meios” para autodefesa do “cidadão de bem” e relaxar a regulamentação ambiental em favor do agronegócio. Ele foi o primeiro presidente eleito da Nova República que não citou explicitamente o combate à pobreza, desigualdade ou fome.
Michel Temer
27% - Advertências
“Dizia aos senhores que a partir de agora nós não podemos mais falar em crise. Trabalharemos”
O primeiro discurso de Temer na Presidência, depois de Dilma Rousseff ter sido afastada no início do processo de impeachment, é cheio de advertências, principalmente em relação a necessidade de união nacional em torna da agenda do novo governo.
Na maioria das vezes, esses alertas são seguidos de propostas e promessas: manter os programas sociais implementados pelo PT, produzir condições para atrair investimentos internacionais e até mesmo espalhar milhões de outdoors com o slogan ‘não pense em crise, trabalhe‘ pelo país.
O emedebista invoca a Constituição onze vezes, construindo a imagem de si mesmo como um defensor do “livrinho”, capaz de restabelecer o diálogo e a tranquilidade.
Dilma Rousseff II
45% - Proposições
“A luta que vimos empreendendo contra a corrupção e, principalmente, contra a impunidade, ganhará ainda mais força com o pacote de medidas que me comprometi durante a campanha”
Em seu segundo discurso de posse, Dilma Rousseff diminui os elogios à Lula, seu padrinho político, e apresenta uma série de propostas, que incluíam reformas econômicas, investimentos em infraestrutura, dinheiro do pré-sal para a educação e combate à corrupção. A corrupção, aliás, é um dos temais mais distintivos do discurso.
A presidente se identifica com o combate a crimes de gestão e até elogia esforços tomados pelo governo para garantir lisura na administração. A cerimônia aconteceu em meio ao escândalo da Lava Jato, que revelava esquemas de desvio de dinheiro na gestão da Petrobras durante as administrações do PT.
Dilma Rousseff I
25% - Crenças
“Venho para consolidar a obra transformadora do Presidente Lula, com quem tive a mais vigorosa experiência política da minha vida”
Ao assumir a Presidência pela primeira vez, Dilma reservou muitas saudações a seu padrinho político, Lula. Ela passou boa parte da introdução da fala caracterizando-se como representante das mulheres brasileiras e concluiu identificando-se com a luta pela redemocratização do país.
O que mais se destaca, porém, é um grande bloco de propostas e compromissos, que incluem a expansão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do ‘Minha Casa, Minha Vida‘ e a criação de um legado público a partir das obras para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
Lula II
11% - Problemas
“O Brasil ainda é igual, infelizmente, na permanência de injustiças contra as camadas mais pobres. Porém é diferente, para melhor, na erradicação da fome, na diminuição da desigualdade e do desemprego.”
No início do segundo mandato de Lula, não faltaram manifestações de alegria e elogios aos feitos de seu primeiro mandato. Na estrutura do discurso, menções aos programas e objetivos alcançados na gestão anterior geralmente são seguidas por alertas e referências à problemas e perigos, especialmente no início da fala: o Brasil segue pobre, ainda é preciso fazer mais.
Essas ressalvas precedem o anúncio de um grande pacote de programas e promessas, desde a redução da taxa de juros e crédito mais fácil para pequenos empresários até a ampliação de mecanismos de democracia participativa, como fóruns de debate e conferências.
Lula I
39% - Crenças
“Enquanto houver um irmão brasileiro ou uma irmã brasileira passando fome,teremos motivo de sobra para nos cobrirmos de vergonha”
Ao alcançar a faixa presidencial pela primeira vez, Lula enfatizou suas crenças, ideologia e identidade mais do que qualquer outro tema. Seu discurso destaca a trajetória de vida do político e procura traçar paralelos entre ela e características da história e do povo brasileiros.
Ele também tece elogios ao povo brasileiro, no qual vê características como pluralidade e aceitação das diferenças. As propostas são centradas em combater fome e pobreza, mas incluem, ainda que ligeiramente, temas como reforma agrária e redirecionamento da política externa.
Fernando Henrique Cardoso II
41% - Crenças
“Srs. Congressistas, não fui eleito para ser o gerente da crise. Fui escolhido pelo povo para superá-la e para cumprir minhas promessas de campanha”
Em seu segundo discurso de posse, FHC constrói sua identidade como orador listando os resultados do seu mandato anterior. Ele lista os avanços que alcançou no governo: diz que o país mudou de fisionomia, com investimentos em infraestrutura e segurança econômica. Essa associação entre os resultados obtidos e sua personalidade ocupa a maior parte da fala.
A estratégia de fazer diversos elogios e comparar-se a figuras históricas, central no primeiro pronunciamento, é menos evidente. Suas promessas concentram-se em proteção de minorias, avanço da agenda de privatizações e busca por reformas políticas, previdenciárias e tributárias. As principais preocupações estão relacionadas ao déficit público, a uma possível crise internacional e ao crescimento do desemprego.
Fernando Henrique Cardoso I
14% - Crenças
“Ao escolher a mim para sucedê-lo, a maioria absoluta dos brasileiros fez uma opção pela continuidade do Plano Real”
Fernando Henrique Cardoso, em seu primeiro discurso, faz muitos elogios. Saúda o pai, o avô, os abolicionistas como Joaquim Nabuco, os jovens caras pintadas, funcionários públicos, Juscelino Kubitschek, trabalhadores… Ao mesmo tempo, traça paralelos entre si mesmo e essas figuras para construir a própria identidade – herdeiro de lutas democráticas e humanistas, atento às necessidades da população humilde.
Também procura se associar ao Plano Real e ao governo de Itamar Franco, de quem foi ministro. As propostas ficam em segundo plano e geralmente aparecem de maneira vaga, como um compromisso de combater problemas como a fome, a desigualdade e o analfabetismo.
Itamar Franco
6% - Advertências
“Não serão tempos felizes, mas de sacrifício. Não serão horas de regozijos, mas de penosas preocupações”
Em um discurso breve, feito após o afastamento de Fernando Collor devido ao processo de impeachment, Itamar Franco constrói sua identidade opondo-se a alguns dos valores que o antecessor encampava – rejeita a modernidade excludente, o enfraquecimento do Estado e até mesmo “neologismos importados”. Ainda que em frases curtas, enfatiza problemas e faz alertas graves sobre a situação do país – o pronunciamento termina falando de sacrifícios e preocupações.
Collor
53% - Proposições
“O propósito imediato de meu governo [...] não é conter a inflação: é liquidá-la”
Fernando Collor, o primeiro presidente eleito após a Ditadura, elogia o Congresso e a democracia em seu discurso de posse. Essas saudações são quase tão frequentes quanto as referências à inflação, o problema mais enfatizado em sua fala. Em suas propostas, o presidente afirma que a economia seria o enfoque de sua gestão. Na tentativa de ganhar empatia da audiência e marcar sua própria identidade, Collor relembra sua origem como deputado federal e a de seu pai, como senador.
No encerramento, ele relembra seu avô, Lindolfo Collor, primeiro titular do Ministério do Trabalho. O pronunciamento é o mais longo da história da República, e discorre longamente sobre temas que vão de abertura econômica até propostas específicas para as relações internacionais com diversos países.