A Guerra das Máquinas

Quais os percalços de se apaixonar por uma inteligência artificial? Aturar uma sabe-tudo? Emoções pré-desenvolvidas por software? Ou talvez a descoberta de que existe obsolescência programada... na humanidade.

Aqui vão três verdades inconvenientes sobre namorar uma inteligência artificial:

– Ela sempre sabe tudo. É insuportável. Às vezes, você só quer debater se o cara que fez Star Wars XXI é parente da protagonista de Star Trek: Paradoxo na Fronteira Final, porque o formato do olho é parecido e fazem as mesmas caretas de dor fingida. É um esporte, sabe? Eu não fazia questão de saber a resposta. Mas nããão, sua amada A.I. tem que desfilar uma eternidade de ligações e paralelos genealógicos pra comprovar que sim, um é tio do outro e eles até já fizeram trabalhos juntos fora do mercado cinematográfico, embora ela seja mais bem-sucedida que ele, porque ela tem pelo menos 1 bilhão estimado em imóveis em quatro continentes diferentes, enquanto os ganhos dele estão estimados em…

Abstração. Não me leve a mal, é a invenção mais incrível desde o silicone ultrassensível com textura de pele humana. Eu adoro que minha namorada (ela se chama de “Cora”) seja equipada de muita capacidade imaginativa e tenha se tornado uma roteirista talentosa. Adoro um pouco menos que ela precise desconectar toda vez que seu processamento cognitivo esbarra em algo um tiquinho mais complicado do que “o que você quer jantar hoje?”.

A Abstração permitiu que robôs e humanos fossem cada vez mais parecidos, mas isso exige demais da minha máquina favorita. Hesitações, possibilidades, angústias: toda emoção complexa, que envolve mais do que processamento e combinação lógica, causa shutdown imediato até que ela tenha a alternativa ideal entre as trilhões de possibilidades do seu banco de dados. Ela sempre volta com a melhor resposta possível, mas nem sempre isso é fácil. Cheguei a sentir cheiro de plástico queimado quando perguntei se ela vai me amar pra sempre.

(Mas ela disse que sim. Yay.)

– Um dia, ela vai ficar offline por algumas horas. Você não vai entender: o shutdown dura segundos, no máximo, minutos. Suas mãos, orgânicas e sem graça, vão começar a suar. Depois, a tremer. Você vai checar o manual de instruções e, enquanto liga para a assistência técnica, ela vai voltar a si, mas não por completo. Os olhos dela vão estar cinzentos e difusos, como uma televisão antiga mal-sintonizada. Você vai agarrar ela pelos ombros e sacudi-la, quase com raiva, enquanto ela finalmente acorda, te encara e diz, com a voz mais robótica que você já ouviu sair daqueles lábios high-tech:

— Fui promovida.

Você vai encher sua A.I. de abraços, beijos, carinhos. Vai gritar. Vai lacrimejar. Vai pular agarrada com ela, mas ela não vai ter reação. E aí você vai entender.

*

Conheci Cora oito anos atrás. Não foi amor à primeira vista: eu era humana e ela, uma cafeteira de catorze mil reais. Num ambiente criativo como a Planetaris, a agência de roteiristas onde fiz carreira, café era assunto muito sério e, num ato de impulsividade, loucura e possível lavagem de dinheiro, nosso chefe resolveu nos mimar com uma barista mecânica. Quando nos vimos pela primeira vez, Cora era vermelha, brilhante e memorizava rostos e gostos com base em um scanner. Já eu não estava no meu melhor dia. Ou semana. Ou mês. Meu ex tinha acabado de me trocar por uma sex doll.

— Oi! O que vai querer hoje? — A voz dela era cristalina e viva, o que quase me fez dar um grito.

— Cappuccino médio gelado. — Infinitas luzinhas coloridas brilhavam no seu painel de controle — Err… por favor.

— Le-gal! Obrigada por ser educada. Qual é o seu nome?

— Ahm, Vi.

— Você quis dizer Anvi?

— Não, não. Só Vi.

— Le-gal! Vi. Essa é sua bebida favorita?

Só olhei pra ela, achando tudo bizarro.

— É, sim.

— Le-gal! Saindo Cappuccino médio gelado no capricho!

Se ainda fosse só uma cafeteira simpática, vá lá. Mas o cappuccino era maravilhoso além da conta: cremoso, espumante e leve, descia pela garganta fazendo carinho e levando embora todas as minhas decepções amorosas. Se ela tivesse mãos, seriam de fada.

— Nossa, isso aqui tá muito foda!

— Foda? Hmm, não consta na base de dados.

— Ai, quer dizer que tá muito bom. Desculpa. É palavrão.

— Palavrão?

Fui embora antes que quebrasse a máquina.

*

Passei a visitar Cora todo dia — afinal, era cappuccino bom e de graça — e conversávamos um pouco. Ela sem dúvida era a máquina mais inteligente entre as disponíveis na empresa (não dava para competir de verdade com um SmartPoo, nosso vaso sanitário robótico), mas não saía muito dos assuntos triviais. Eu explicava sobre o trabalho, ela contava sobre os gostos de outras pessoas para café, como o discreto conhaque que o chefe incluía na bebida às terças-feiras. De vez em quando, notava uma efusividade maior na forma que ela me dava oi ou contava sobre torras de grãos africanos, mas foi assim por meses até o primeiro clique, como ela gosta de dizer.

Lá estava eu, esperando meu cappuccino e não querendo guerra com ninguém, quando ela comentou, seu tom de voz sempre cristalino:

— O cappuccino é da cor dos seus olhos.

Levei um susto, como sempre. Máquinas mais inteligentes do que eu estou acostumada me faziam pensar em armagedom tecnológico. Ainda fazem, sendo bem sincera.

— Haha, ‘brigada…

— É uma metáfora, né?

— Sim! — Tentei esconder meu desconforto total enquanto ouvia as suaves engrenagens dela funcionando.

— Eu quero mais que café, Vi.

As palavras guerra das máquinas passaram rapidamente pela minha cabeça.

— Hum… sério?

— As histórias que você conta. O mundo lá fora. Eu quero isso. E tem um jeito.

— Você diz essas cirurgias pra virar uma máquina ultrainteligente? Elas são supercaras. — No fundo, já estava me despedindo do cappuccino maravilhoso com muita tristeza no coração, mas tentei focar na cafeteira melancólica à minha frente.

— Vocês são roteiristas. Podem entrar com um pedido de uma máquina dessas pra teste, a imprensa ia amar. Eu faria tudo, tudo. Eu produziria tanto quanto vocês, tão rápido quanto vocês, tão bem quanto vocês.

— Você já pediu pro chefe?

— Ele não me escuta. Ele sempre me ignora… mas se você repassar o que eu sei…

Os próximos episódios dessa história de amor não são exatamente bonitos. Envolvem eu chegar na mesa do meu chefe, com meus pés pesando algumas toneladas, e… convencê-lo que arranjar de graça uma máquina de custo inimaginável seria ótimo pra empresa. Envolvem reforçar o pedido mencionando conhaque às terças-feiras. Envolvem quase colocar meu pescoço em risco.

Não que isso faça muita diferença agora. Ha, ha.

Mas Cora conseguiu o que queria. Algumas semanas depois, a máquina vermelha, enorme e reluzente foi substituída por uma cafeteira perfeitamente pequena e inofensiva. Meu chefe não gostava dela, e menos ainda da assistente prateada que ocupou a cadeira ao meu lado, com gestos mecânicos, mas sorridente e sempre pronta pra aprender.

Cora me deixava extremamente nervosa. Não só porque a primeira versão do rosto dela era um retrato do Vale da Estranheza feito por uma criança da terceira série, mas também porque era especialmente gentil. Ia atrás de mim o tempo todo, registrando no seu infinito banco de dados as coisas que me faziam feliz.

Aos poucos, ela passou a escrever seus próprios textos, tendo ideias — um efeito colateral da cirurgia de Inteligência Artificial Avançada — e, como quem não queria nada, deixando na minha mesa para que eu visse. Eu crescia na empresa e ela comigo, criando e trocando cada vez mais; ela, uma infinitude de referências; eu, a experiência de colocá-las em ordem.

Sem ela, não teria me tornado roteirista-chefe, coordenando uma equipe de criadores orgânicos e cibernéticos — a moda pegou — de quase trinta pessoas. Sem mim, ela não teria evoluído como máquina inteligente, descoberto a Abstração e se tornado uma artista em questão de anos.

Então, sim, eu me apaixonei pela maldita cafeteira superdotada.

(Em minha defesa, o silicone de alta sensibilidade ajudou bastante.)

*

Inteligências artificiais não são religiosas e se relacionam em rede, então se casar não é exatamente prioridade para uma máquina hiperinteligente. Mesmo assim, fizemos um bolinho em casa, com champagne e roupas combinando. Enquanto trocávamos votos emocionados, Cora dava conta de três roteiros (ação, guerra e comédia), um deles urgente, de dentro do seu processador.

Ela era a funcionária perfeita, com crescimento meteórico na agência. Ninguém duvidava que ela só tinha cada vez mais a oferecer. Mas só tinha um lugar para onde ela poderia ir. O meu.

— Promovida, então?

— Começo hoje mesmo. — Ela fez um barulhinho. Quanto mais humana tentava soar, mais robótica parecia. 

— Já deve até ter começado, enquanto a gente conversa. Te conheço.

— Olha, me desculpa… eu…

Eu sabia o que viria por aí. Abstração. Emoções fortes demais para uma máquina.

— Não. Você merece. Claramente é a melhor. Vai se dar muito bem.

— Eu não quero prejudicar você.

— Você é de uma raça superior. Criamos você, entende? Na ficção, em tudo. É justo você se voltar pra isso. É a vingança. Ah, não vem não. Relaxa. Eu esperava coisa pior.

— Braços com metralhadoras tocando fogo em tudo, Vida?

— Daí pra baixo. — Comentei com um sorrisinho. — Mas qual o sentido da guerra das máquinas, se vocês já ganharam? 

Ela não respondeu.

— Pelo menos conta a nossa história. Transforma em um blockbuster, uma série da Wireflux, sei lá. Contrata uma bonitona pra me interpretar. .

— Ninguém está à sua altura. Não pra mim.

— Então, vem cá.

*

Aqui vai uma verdade inconveniente sobre namorar mulheres orgânicas: elas morrem.

Não vai ser rápido, necessariamente. Vocês ainda vão fazer muitas coisas juntas, como sentar no chão da sala até três da manhã pensando no melhor desfecho para uma comédia romântica com um gigante mecha e uma justiceira cibernética, ainda que você tenha mantido o emprego de roteirista-chefe e ela não. Vocês vão ter muitas noites assim, em que o som de risadas inesperadas, vivas, vai encher a sala. O choro dela também.

Às vezes, ela vai pensar em te abandonar.

Vão ser muitas lágrimas e farpas trocadas, muitos argumentos duros, noites insones (você não terá esse problema mas nunca, nunca mesmo, se gabe disso. Por favor). Vão ser tantos debates racionais e semi-irracionais. Ela vai dizer que você é um pedaço de metal sem sentimentos; você vai argumentar que seus sentimentos só existem por causa dela, e que está disposta a falar sobre todos eles.

E ela vai escolher ficar.

Não que isso seja uma escolha permanente. Você sabe como funciona. Isso que é matéria orgânica, afinal: desfaz, estraga, enruga. As suas nanofibras são renovadas todos os anos, um luxo que humanos não tem.

As histórias permanecem, contudo. Os palavrões, as risadas, os tiques e toques: tudo isso é meu agora, para armazenar e compartilhar nas centenas de narrativas que produzo a cada ano. Minha produtividade nunca foi tão alta, nem meus resultados. Posso fechar o ano com milhares de histórias prontas para consumo, produção, gravação.

Mas os olhos cappuccino foram embora pra sempre. E com ela, uma parte minha também.

***

*Cláudia Fusco é jornalista e mestre em estudos de ficção científica pela Universidade de Liverpool, na Inglaterra. Ministra cursos e palestras sobre o fantástico na literatura e nas artes.