A única lembrança que ele guardava do pai era um porta retrato amarelado pelo tempo. Ele guardava aquele retrato na esperança de conservar a imagem do pai ainda menino e livre das desilusões pontuais da máquina de enganos.
Pelo menos era deste modo, que o filho se referia aos sonhos: os quais na infância são apenas tolos, porém capazes de manter a dignidade humana. Mas o filho temia, o filho desconfiava que quando ele mesmo crescesse, fosse impelido assim como o pai, a entrar na máquina perversa.
Por isso, todas as noites o menino amarrava em seu pulso esquerdo uma fita amarela – um presente da mãe – para lembrá-lo que ele nunca havia entrado sem querer ou de modo coagido na máquina de enganos.
Era deste modo que ele se protegia do final trágico do mundo dos adultos, o único modo que ele havia encontrado para distanciar-se da mais perversa máquina da criação humana.
Por vezes, o menino ao acordar apressado se esquecia de retirar a fita amarela do pulso. Ele se esquecia que deveria guardá-la como uma joia preciosa e trancá-la com uma chave na gaveta da cômoda envelhecida. Quando o menino se lembrava que ainda estava usando a fita, um péssimo pressentimento tomava-lhe a imaginação, como se ele fosse incapaz de controlar o próprio destino.
Por precaução, ele até mesmo se abstinha de brincadeiras abruptas com as outras crianças para preservar a fita amarela em seu pulso – e tinha medo – porque sabia que o dia de entrar na máquina de enganos se aproximava.
De qualquer modo, utilizar a fita durante o dia era uma péssima ideia e não havia sequer um adulto que não o olhava de modo discriminatório: uns fingiam não vê-la em seu pulso, outros apontavam para ela e lançavam sorrisos jocosos e traiçoeiros.
Era nesta hora, que o menino conservava em seu íntimo uma clareza peculiar de julgamento: ele tinha certeza que os adultos o olhavam de modo desprezível, somente porque ele ainda não havia entrado na máquina aterradora.
Contudo, a dúvida o assolava: será que essa era a única estratégia dos adultos para persuadi-lo à entrar na máquina de enganos? O menino pensou melhor e pressentiu que qualquer homem crescido tem um meio mais eficaz, inebriante, cruel e desonesto para fazer prevalecer o seu comando.
Foi por isso que uma semana antes do pai morrer, o menino tomou coragem suficiente e perguntou-lhe o que havia acontecido com a antiga fita amarela dele, a mesma que aparecia na fotografia no porta retrato amarelado.
O pai ouviu a pergunta com atenção e pensou na resposta, enquanto, mirava de modo curioso o retrato. Ele permaneceu calado todo o tempo como se tentasse se recordar do dia que ele mesmo havia pendurado em seu próprio pulso uma fita amarela.
Ante a reação inesperada do pai, o menino se convenceu da urgência de um plano único, aterrador e infalível. Afinal, o menino havia confirmado naquela falta de resposta a suspeita e o boato irrevogável sobre a máquina de enganos: a qual se alimentava das memórias roubadas de todas as crianças do mundo.
Essa invenção altamente tecnológica, milenar e a mais perversa estrutura criada pelo homem continha a sagaz promessa de acabar com a frustação entediante do cotidiano. Porém, os efeitos colaterais e jamais mencionados eram igualmente devastadores: a máquina de enganos era capaz de anular os sonhos e a memória dos sentimentos humanos.
Na semana seguinte, o menino partiu da casa do pai levando o antigo porta retrato e uma fita amarela em seu pulso. Ele havia se decidido a nunca entrar na máquina de enganos, ele jamais iria alimentá-la. Mesmo que ele tivesse que percorrer o mundo sozinho, tenho como única esperança conservar a sua própria humanidade.
*Ursulla Mackenzie é ficcionista e ensaísta, autora de Portal de Capricórnio. Já publicou inúmeros contos de Ficção Científica no Brasil, Espanha, Argentina e Alemanha. É co-apresentadora do Programa de TV Coletivo de Letras, focado em livros e literatura que estreia no dia 6 de julho na Rede Premium TV.