A Família da Astronauta

A família da astronauta Olympia recebe informações chocantes sobre sua localização uma década após ela ter desaparecido em um acidente

Louis, Camilla e as crianças estão à mesa de jantar em plena sobremesa quando o gerente doméstico anuncia:

“Chamada de alta prioridade do Comando da Força Espacial.”

Larissa cutuca o irmão.  Em vez de reagir, o menino assente em silêncio.

Camilla lança um olhar ao companheiro.  Repousa a taça sobre a mesa com a mão trêmula.  O restinho do Rioja de boa safra desce amargo garganta abaixo.  Alta prioridade do Comando da Força só pode significar uma coisa e os quatro sabem o que é.  O pessoal da segunda expedição finalmente entrou na Prometheus e encontrou os corpos daqueles coitados.  Ela e Louis enrijeceram os espíritos para o dia dessa confirmação.  Desde a partida da Asoka aguardam o desenlace inevitável.  Prepararam as crianças para lidar com a questão fúnebre.

Louis observa o casal de filhos adolescentes.  Percebe em suas fisionomias graves a resignação de quem aguarda a notícia trágica esperada.  Desconfiam do teor da chamada.  Estoico, suspira fundo e determina em tom quase inaudível:

— Liberar.

Enquanto o dístico da Federação Humana gira no holotanque que saltou da fenda recém-aberta na mesa de jantar, Camilla tenta acalmar o companheiro:

— Ânimo, querido.  É melhor resolver esse assunto de uma vez por todas.

— As crianças.

— É a mãe deles.  Eles têm o direito de saber.

— Isto mesmo. — Bruno procura o olhar do pai. — Não somos mais crianças.

Quando Larissa abre a boca para ensaiar a manifestação inédita de apoio ao irmão, o pai a cala com um gesto, pois o dístico deu lugar a uma humana trajada com o uniforme colante azul-marinho da Força Espacial da Federação, que aparece de pé sobre a mesa.

“— Saudações, Cidadão Avelar, Cidadã Lúthien, Bruno e Larissa.  Sou Debra Harriman, assistente da gerência de relações públicas do Comando da Força Espacial.” — Louis nota que os movimentos dos lábios da oficial não correspondem à fala.  Percebe que a mulher articula o inglês e o gedo executa a dublagem perfeita para o português. — “Trago notícias da Prometheus.”

A primeiro-tenente fala de frente para o casal de adultos sentado à mesa de jantar.  Curiosa, a menina se levanta da cadeira e contorna a mesa, colocando-se ao lado do pai a fim de fitar essa angla varapau cara a cara.  Já o rapazinho permanece sentado em seu lugar, com olhar fixo no traseiro da militar, bem delineado sob o uniforme inteiriço.  Não se importa muito com a gravidade da situação: desde que tinha cinco anos de idade, sabe que a mãe morreu no ataque dos Forasteiros.

— Já esperávamos uma ligação da Força. — Louis confessa. — A nave de resgate deve estar prestes a chegar a Plutão.

“— A Asoka encontra-se em órbita estacionária ao redor de Plutão.  Um comando ingressou na Prometheus há pouco mais de onze horas.”

— Tudo bem. — Louis comprime os lábios. — Vocês encontraram os restos mortais da Olympia.  Espero que não tenha sofrido muito no final.

“— Vejo que não aprecia rodeios.  Isto facilitará bastante o meu trabalho.” — O gerente reproduz o tom entrecortado da oficial na dublagem.  A angla esboça um sorriso irreverente ante as circunstâncias. — “Não existe maneira delicada de transmitir o que revelarei agora.  Portanto, em nome da Força Espacial, peço desculpas de antemão.” — A tenente alourada transpira seriedade. — “Pois bem.  Contrariando nossos prognósticos pessimistas, há sobreviventes na Prometheus.  Ou melhor, uma sobrevivente.  Sua esposa, a Capitã Olympia Rodriguez, foi resgatada com vida há cerca de vinte horas.  Recebemos a confirmação duas horas atrás.”

— Olympia, viva? — Louis exala um suspiro. — Como é possível?  O Comando da Força garantiu que todos os tripulantes da nave haviam morrido no ataque.

— A Prometheus foi atingida há mais de dez anos. — Camilla libera um gemido prolongado. — Não houve sobreviventes.  Vocês mesmos o afirmaram nove anos atrás.

“— Todos pensávamos que não houvesse sobreviventes.” — A tenente é toda sorrisos agora. — “Felizmente, estávamos enganados.  Os primeiros informes falam em milagre.”

— Minha… mãe… está viva? — Após um soluço curto, Bruno se levanta num salto e corre para o outro lado da mesa, postando-se atrás do assento do pai, enfim desperto para a enormidade da notícia.

— Podemos gravar um holo pra ela? — Aos doze anos, Larissa sente-se afoita ante a perspectiva de finalmente conhecer a mãe, julgada morta até minutos atrás. — Vocês transmitem pra nós?

“— Sempre que quiserem.  Gravem seus holos com calma.  Falem e perguntem à vontade.  Não se preocupem em ser breves, pois as despesas correrão por conta do Comando da Força.  Afinal, a mãe de vocês é uma heroína.  Quando divulgarmos a grande notícia nas próximas horas, ela se tornará a humana mais famosa do Sistema Solar.”

— Minha mãe, uma heroína. — A garota balbucia baixinho, morta de medo de acordar.

*

Semanas após a bomba do espaço desabar em seu colo, Camilla ainda está lutando para se aprumar.  Após o choque inicial e o assédio implacável da mídia, ela e Louis se debatem para retomar a vida normal.  Luta inglória.  Pois, ao que parece, no planeta inteiro não se fala doutro assunto que não a ressurreição milagrosa da Santa Astronauta Heroica.

Pelo Criador, por que essa humana teve que voltar dos mortos?  Não podia ter sido outro tripulante qualquer dentre os dezessete oficiais daquela nave maldita?

Seguindo a política de retorno à normalidade, ela e Louis acordaram cedo hoje de manhã e fizeram o desjejum juntos.  Ele partiu para a reunião de trabalho com o diretor do holodrama para o qual escreveu o roteiro.  O sujeito antiquado insiste nessas interações presenciais periódicas a fim de planejar todo e qualquer ajuste mínimo na narrativa.

A rotina profissional de Camilla é diferente.  Prefere trabalhar à tarde, três vezes por semana, invariavelmente no estúdio que mantém em casa.  Lida com seus chefes e assistentes via holotanque.  Dedica as manhãs às atividades físicas e ao lazer pessoal.

Nesta manhã em particular, resolve aliar o útil ao agradável.  Veste o biquíni minúsculo sob a saída de praia e se dirige ao clube, situado a dois quarteirões do prédio deles, para nadar e desfrutar de alguns minutos de luz e calor sob o sol desta manhã de outono carioca.

A água está deliciosa.  Após meia hora de braçadas enérgicas, resolve relaxar de topless numa espreguiçadeira à beira da piscina.  A manhã dos sonhos.  Até se transformar num pesadelo, quando, de olhos fechados sob os óculos escuros, ouve o sussurro vindo de uma mesa próxima.

— Olha ali, menina.  Não é a segunda esposa do marido da Capitã Rodriguez?

— Acho que é ela mesma.  O rosto é parecido.  Mas, os cabelos louros fora desse chapelão estão mais escuros e menos cacheados do que nos holos.

— Isto é porque estão molhados, bobinha.  Gepê, cruze os traços fisionômicos da cidadã nessa espreguiçadeira à nossa frente com os da segunda esposa do marido da astronauta perdida.

Camilla finge não ouvir.  Quem sabe, se elas pensarem que está cochilando, acabam mudando de assunto?

— É ela mesma.

— Caramba.  A Bela Adormecida não está nem aí para a Solar Holonews.

— Será que essazinha já conhecia o marido da capitã antes de ela ser dada como morta?

— Mandou informar que não conhecia.  Mas, você sabe como essa gente é, né?

Irritada, Camilla abre os olhos.  Ergue-se sobre os cotovelos e se senta ereta na espreguiçadeira para confrontar as duas humanas de meia-idade.  Levanta os óculos, apoiando-os na testa.

— Então, quer dizer que vocês sabem como eu sou?  De onde vocês me conhecem mesmo?

— Dos holonoticiários, minha cara. — A humana morena de rosto largo e cabelos curtos, que Camilla identifica como a primeira voz, arreganha um sorriso trocista. — Bem-vinda ao mundo das celebridades, queridinha.

— Isto mesmo. — A humana de cabelos castanhos e óculos antiquados confirma. — A rival da Capitã Rodriguez.

— Escutem aqui, suas enxeridas.  Não sou rival coisíssima alguma.  Meu humano era viúvo quando o conheci.  Há uma certidão de óbito emitida pelo Governo Mundial para comprovar que nós tínhamos todos os motivos do universo para pensar que Olympia Rodriguez estava morta.

— Pode até ser que você tenha entrado de gaiata nessa espaçonave, meu bem.  Não acredito muito, mas, vá lá. — A morena retruca. — Só que a capitã está vivinha da silva!  Portanto, pode deletar essa certidão, porque ela não vale os gigapixels que a exibem.

— Sabemos que ela está viva e estamos tomando providências legais a respeito.

— Providências? — A dona dos óculos esquisitos troca um olhar com a amiga.

— Meu humano homologará o divórcio do casamento anterior.

— Olha só. — A morena abana as mãos acima da cabeça. — Duvido um bocado que o maridão vá ter coragem de se separar de uma heroína solariana.

— Era só o que faltava. — A outra rebate de bate-pronto. — A capitã sofreu horrores naquela nave em frangalhos e agora você não quer devolver o marido dela?

— Louis não é marido dela.  É o meu humano, entendeu bem?

— Não adianta ficar surtada, lourinha. — A morena pontifica com o dedo em riste. — Quem vai decidir essa parada é o seu marido e a capitã.

Camilla cerra os punhos.  Respira fundo.  Sente-se prestes a explodir quando seu gerente pessoal lhe sussurra em tom persuasivo:

“Sugiro fortemente que encerre essa discussão agora.  Tudo o que está falando poderá ser usado contra você.  E vice-versa, é lógico.”

A portadora estaca num átimo.  Engole em seco.  Então, subvocaliza ao gepê com fúria contida:

— Registrou tudo?

“Lógico.  Se necessário, este registro poderá ser usado como prova em processos de assédio moral.”

— Excelente. — Camilla levanta da espreguiçadeira e começa a recolher suas coisas. — Senhoras, foi um prazer inenarrável trocar ideias com pessoas tão cultas e esclarecidas.  Porém, o fato é que tenho mais o que fazer do que ficar esculhambando a vida alheia.

— Tirando o time de campo, Mamilos Rosados? — A morena solta uma gargalhada escandalosa.

— Deixa para lá.  É sinal de que ficou sem argumento.  Perdeu a discussão.

— Em absoluto, queridas. — Camilla veste a saída de praia, calça as sandálias e começa a se afastar das duas barangas. — Vim ao Piraquê para relaxar e não para bater boca com gente sem noção.

— Assim falou a concubina. — A morena declara satisfeita ao dar a última palavra.

*

— Bruno, tem certeza de que é seguro? — Larissa dirige um olhar irrequieto ao irmão mais velho, quando os dois estacam na portaria do prédio. — Papai falou que a Quinta da Boa Vista é frequentada por um pessoal meio barra-pesada, para usar a expressão dele.

— Só se foi no tempo em que ele tinha a sua idade, uns sessenta anos atrás. — O garoto abre um sorriso confiante. — Pode perguntar ao seu gepê.  A Quinta é perfeitamente segura.

— Tudo bem. — A menina resmunga, mal-humorada. — Ele acabou de confirmar que não há perigo.  Falou que nós podemos até mergulhar num lago que existe lá dentro.

“Boa tarde, meninos.” — O porteiro eletrônico se manifesta. — “Gostariam que eu chamasse um autopilotado para vocês?”

— Sim, obrigada.

“Qual será o destino?”

— Quinta da Boa Vista. — Bruno brinda a irmã com uma piscadela bem-humorada.

“O veículo autopilotado 8.642 chegará em cerca de dois minutos.”

— Obrigado.

Um minuto e cinquenta segundos mais tarde, o cilindro achatado ingressa no recuo de acesso do prédio e o porteiro eletrônico comanda a abertura do portão de pedestres para as crianças.  Os dois saem e caminham em direção ao veículo que os aguarda.  Bruno, com um sorriso satisfeito de adolescente nos lábios.  Desconfiada, Larissa verifica se é realmente o 8.642 que acaba de erguer as portas quando os dois param defronte à carroceria arredondada azul e branca do veículo.

O gepê do garoto dialoga em silêncio com o autopiloto do veículo público, confirmando as identidades das duas crianças e de seus responsáveis legais, o destino da corrida, a tarifa acordada e miríades de outros detalhes irrelevantes para humanos orgânicos da segunda metade do século XXI.

Os irmãos se acomodam em duas das seis poltronas dispostas em círculo ao redor do painel central.

— Podemos partir. — Bruno observa o céu azul por entre os prédios da sua rua através da cúpula panorâmica do veículo automático.

“Entendido.” — O autopiloto confirma em português monocórdio.  Mal as portas se fecham, as malhas de segurança emergem dos assentos, enlaçando os troncos das crianças. — “A duração estimada da viagem é de dezesseis minutos.  Em que ponto da Quinta da Boa Vista desejam saltar?”

Os dois irmãos se entreolham.  Bruno dá de ombros e responde:

— Em frente ao antigo Museu Nacional.

“Sede histórica do Museu Nacional.” — O autopilotado manobra e ingressa na pista da Jardim Botânico, avançando no sentido Rebouças. — “Atual Museu de Ciências do Rio de Janeiro.”

Quinze minutos depois, o veículo abre as portas em frente ao palácio que abriga o museu.

— O gepê me deu um toque que este museu está bombando com exposições interativas estonteantes. — Larissa comenta com o irmão. — Divulgação científica do mais alto nível.

— Alto nível?  É bem do estilo do seu gepê afirmar essas besteiras.  Nada que não possamos vivenciar dos nossos apês.

— Ih, garoto.  Você está ficando igualzinho à Camilla.  Não quer sair de casa para nada.

— Não é verdade. — Bruno emerge do veículo e observa sua partida silenciosa. —Hoje, por exemplo, saí com minha irmãzinha pentelha.

— Registrei esse palavrão. — Larissa lança um olhar comprido à fachada do prédio imponente do museu. — De repente, posso mostrar ao Papai.

— Isto não é palavrão.  Se duvida, consulte o dicionário para conferir.

— Bem que podíamos visitar o museu.

— Nós combinamos passear na Quinta.  Dentro do museu, não poderemos fazer nosso piquenique.

— Podemos visitar o museu primeiro e depois passear na Quinta. — Larissa fita o rapaz com seu melhor olhar pidão de irmã caçula. — Vamos lá, Brunelo.

— Papai e Camilla recomendaram que evitássemos aglomerações em ambientes fechados.

— Sei, sei. — A menina cruza os braços sobre o peito chato. — Por questão de segurança.

— Exato.

— Não acha que os dois estão ficando meio paranoicos com esse papo de segurança?  Esse exagero todo só por causa da volta da Mamãe.

— Não sei se é só exagero e paranoia.  Você assistiu o assédio que a Camilla sofreu lá no clube, não foi?

— É.  Pode ser.  Mas, é diferente conosco.

— É mesmo?  Diferente, como?

— Nossos rostos não ficam pipocando na mídia a torto e a direito, como o do Papai e o da Camilla.

— Como é que você sabe?  O Papai falou que divulgaram nossas fotos.

— Só as personas 2D dos nossos perfis públicos, seu bobo.  Isto não tem nada de mais.

— Podemos ser reconhecidos por qualquer programinha mequetrefe de análise fisionômica.

— Desisto, Bruno. — Larissa se afasta a passos rápidos do antigo palácio imperial. — Vamos passear, então.

Bruno suspira, entre frustrado e satisfeito.

Humanas.

Acelera o passo até emparelhar com a irmã.  Caminham em silêncio pela calçada que os conduz às cercanias do lago.

— Podemos andar de pedalinho? — Larissa enfim se digna a dirigir a palavra ao irmão.

— Boa ideia. — Ele responde sem grande entusiasmo, no afã de agradar a menina. — Mas, vamos fazer nosso piquenique primeiro.

— Está bem. — A garota sorri.  Avança pelo gramado bem cuidado até a sombra de uma árvore frondosa.  Então, retira uma toalha da bolsa e a estende sobre a grama. — Aqui está bom?

— Tá. — Bruno gira a mochila para frente e retira o farnel que o gedo havia preparado. — Vejamos o que temos. — Senta-se na toalha e desembala o recipiente hermético. — Sanduíches de atum sintético em pão integral, peras para mim, bananas para você.  Dois tipos de suco: mate para mim, suco de laranja para você.

— É de tangerina, seu bobo.

Os dois começam a comer com os olhos fixos no lago artificial.

— Ei, vocês dois. — Ouvem uma voz masculina às suas costas. — Por acaso não são os filhos da astronauta resgatada?

Os irmãos giram para encarar o rapaz alourado de vinte e poucos anos.

— E agora? — Larissa sussurra ao irmão.

— Fica fresca.  Ele só fez uma pergunta.  Está curioso.  Só isto.

O jovem se aproxima a passos largos, até parar em frente à toalha de piquenique estendida no gramado.

— Eu sabia. — Ele levanta a mão direita num cumprimento. — São vocês mesmos.

— Oi. — Bruno acena ao rapaz. — Pois é.  Somos nós.

— Prazer. — O garoto mais velho abre um sorriso franco. — Sou Samir.  Samir Lodi.

— Bruno.  Muito prazer, Samir.

— Prazer.  Larissa.

— Puxa vida.  Ninguém acreditaria que encontrei vocês dois em plena Quinta se se eu só afirmasse isto.

Bruno decodifica a declaração pretensamente inocente do rapaz num átimo.  Em realidade, todos acreditarão piamente sem pestanejar, pois o gepê dele está registrando todo o evento em holodetalhes.  Se duvidar, já começou a postar online.  Suspira fundo e então dá de ombros.  Não há nada que possam fazer.

— Achamos que não seríamos reconhecidos. — Larissa lamenta, resignada.  Então, acena para que o rapaz se sente na outra ponta da toalha. — Está servido?

— Posso? — Samir se acomoda no outro lado.  Observa as frutas e sanduíches do farnel.  Almoçou em casa há menos de duas horas.  Portanto, não está com fome, mas não perderá por nada deste mundo a oportunidade de hologravar sua participação num piquenique vespertino com os filhos da heroína solariana.

— À vontade. — Bruno assente ao rapaz. — As peras estão deliciosas.

— Posso experimentar uma banana? — Samir replica. — Adoro banana d’água.

— Sirva-se do que quiser. — Larissa gesticula em direção à comida restante. — Tem sanduíche de atum, também.

— Devem estar se sentindo superfelizes com a volta da mãe de vocês. — Samir descasca a banana. — Se eu fosse vocês estaria explodindo de alegria.

— Estamos felizes, sim. — Bruno responde, cauteloso.  Tudo o que dissermos será postado nas redes.

— E apreensivos, também. — Larissa admite, tão prudente quanto o irmão.

— Também me sentiria assim se estivesse em seu lugar. — Samir mordisca a ponta da banana. — Vocês eram bem novos quando sua mãe partiu naquela missão.  Não devem nem se lembrar dela direito.

— Eu me lembro do rosto dela. — Bruno replica, embaraçado. — Um pouco.

— Só lembro dela pelos holos que assisti. — Larissa confessa, envergonhada. — Os holos que ela mandava lá da Prometheus e os outros, mais antigos, que ela gravou comigo quando eu era bebê.

— Sei como é. — Samir arremessa a casca da banana no saco de lixo dos irmãos. — Às vezes é difícil saber o que é lembrança real e o que é recordação de um holo que você já assistiu um monte de vezes, desde pequeno.

— É isto mesmo. — Bruno admite. — Mas eu me lembro do rosto dela em ângulos e cenas que eu nunca assisti nos holos.

Os três jovens permanecem calados por algum tempo, até Samir quebrar o silêncio:

— O importante é que agora a mãe de vocês está voltando para casa.

Bruno e Larissa trocam olhares, mas não reagem ao comentário.

O trio observa várias pessoas convergindo para a toalha de piquenique, vindas de direções diferentes.  Algumas conversam entre si, outras apontam para eles.  No início, não passam de uma dúzia.  Em menos de um minuto, tornam-se meia centena.  Cinco minutos mais tarde, constituem uma multidão de milhares de pessoas.

— Estamos cercados. — Larissa murmura ao irmão.

— Você nos publicou nas redes sociais. — Bruno encara o rapaz mais velho, com ar resignado.  Seu tom é antes de constatação do que acusativo. — Podia ter ao menos esperado que fôssemos embora.

— Desculpem. — Samir ergue as mãos diante do rosto. — Não achei que iria repercutir tanto e tão rápido assim.

— Você nos expôs.  O nome disso é invasão de privacidade. — Larissa acusa o rapaz.  Então, vira-se para o irmão com o olhar assustado. — O que faremos agora?

Bruno observa a multidão.  Ninguém ali demonstra o menor sinal de irritação ou hostilidade.  No entanto, a situação pode mudar de um instante para outro.  Seu pai costuma afirmar que multidões são “voláteis”.

— Por enquanto, vamos aguardar.

À medida que se aproximam, fechando o cerco, as pessoas começam a lançar perguntas e comentários em direção ao piquenique sitiado:

— E aí, garotos?

— A postagem desse tal de Samir é realnews.  São mesmo os filhos da astronauta.

— Os dois são umas gracinhas.

— Olhem só como o menino abraça a menina pelos ombros, com ar protetor.

— Ei!  Deem só um zoom no rosto do garoto.  É a cara do pai com os olhos da mãe.

— A Larissa é uma teteia.

— Olympia! — Uma voz feminina brada do meio da multidão.

De repente, todos se calam.  Quase como se a turba houvesse parado para tomar fôlego.  Então, outro grito.  Uma voz masculina, agora:

— Olympia!

E mais outro.  Muitos outros.  Os brados se fundem uns aos outros até formar um ronco cavo contínuo:

— Olympia!  Olympia!  Olympia!

Os irmãos e o jovem sentem como se estivessem no interior do Maracanã lotado durante a final da Liga Terrestre.

De um instante para outro, as pessoas param de gritar o nome da mãe deles e começam a aplaudir.

— Brunelo, estou com medo.

— Calma, Lalá.  Está tudo bem.

— Eu quero ir embora para casa.

— Certo.  Acho que já deu.  Gepê, chame um auto para nós.

“Solicitação efetuada.”

— Qual é a previsão de chegada. — Larissa se preocupa ao perceber que o gerente do irmão não forneceu a informação vital como sempre faz.

“Neste instante, todos os veículos autopilotados da vizinhança se encontram ocupados.”

— Com certeza. — Bruno abana a cabeça com expressão irritada. — Ocupados por pessoas tentando vir para cá, para gritar gracinhas para nós, como se fôssemos animais acuados num daqueles zoológicos fedorentos do século passado.

A multidão prossegue incansável em sua sessão de aplausos.

Samir ergue o braço, apontando para os três drones policiais flutuantes sobre a turba.  Com o alvoroço, Bruno e Larissa não haviam percebido a aproximação das máquinas.  Neste instante, a sirene estridente começa a soar.  A multidão ergue o olhar para o céu e constata a presença dos drones.  A maioria para de bater palmas.

“Atenção, cidadãos aglomerados à margem do lago da Quinta da Boa Vista.” — Uma voz feminina emana dos drones. — “Vocês estão violando o direito de ir e vir de dois menores.  O poder público municipal determina a dispersão imediata dessa aglomeração.”

A multidão vaia em coro.  Uns poucos integrantes bradam palavrões.  No entanto, em questão de segundos, as pessoas começam a se dispersar.  Afinal, ninguém ignora que os drones da polícia registraram as fisionomias de todos os presentes e que a desobediência civil a determinações do poder público constitui infração passível de multas e sanções.  Ademais, todos sabem que os drones policiais possuem métodos de dissuasão bastante efetivos.

Dois minutos mais tarde, a multidão se reduziu à uma dúzia de recalcitrantes.

— Meninos, foi mal mesmo. — Samir se levanta e acena aos irmãos. — Não quis provocar esse estresse todo.  Acho que vou nesta.  Foi um prazer conhecê-los.  Valeu a banana.  Tudo de bom.  Felicidades para vocês e bom regresso para a sua mãe.

— Tudo bem. — Bruno também se levanta e começa a recolher as sobras do piquenique.

“O veículo autopilotado 3.001 chegará dentro em cinco minutos.” — O gerente de Bruno informa os irmãos.

— Ufa! — Larissa troca um olhar aliviado com o irmão. — Que demora!

*Gerson Lodi-Ribeiro é escritor, antologista de ficção científica e história alternativa.