No Santuário

Duas pessoas muito diferentes, em termos políticos e sociais, se encontram em um espaço especial para descobrirem quais diferenças podem ser deixadas de lado num plano secreto para mudar o mundo e evitar o último estágio da automação

Nathaima Flavre deixou a plataforma do Metrô Alto do Ipiranga e subiu três monótonos lances de escada rolante até a saída. Vinha da periferia de São Paulo, não conhecia o bairro. Sabia apenas que tinha mais de um quilômetro a percorrer, até chegar ao local da entrevista de emprego. Consultou as opções de transporte autônomo no seu smartphone.

Desde que ganhara corpo, desistira do Uber como opção. Tinha as formas de uma deusa africana, como os amigos diziam, e cansara do assédio dos motoristas. Verificou que havia muitos carros elétricos rodando no bairro. Poucos do tipo rat, mas preferia esperar o veículo sem muito acabamento e de menor pegada ambiental, do que os modelos futuristas cheios de plástico e pinturas custosas. O app sócio-ambiental SociAmb também lhe dizia quais grupos demográficos eram mais atingidos pela sua escolha. Ao não escolher o transporte com motorista, espetava os homens brancos entre 28 e 50, justamente o grupo mais conservador e reacionário.

Nathaima guardou o smartphone na bolsa e sorriu, não sem culpa. Sentia que agir como se pertencesse a um grupo de pressão sem de fato fazer parte de uma entidade organizada parecia diluir a força política dos seus atos. Cheirava ao simples ventilar de ressentimentos. Mas agir como uma força individual de correção não era exatamente o que se exigia da pessoa consciente?

Mais tarde, o carro chegou. Com piados digitais, estacionou do outro lado da rua. Nathaima conferiu o número, pintado na lateral e semi-encoberto por pichações, e foi até ele. Havia isso. Quando pior fosse a aparência de novo e bem-cuidado, maiores as chances do veículo ser alvo de pichação. Mas este rat em particular tinha as células solares descobertas e limpas, e pneus em bom estado. Ela entrou. Já tinha o smartphone na mão com os dados do endereço de destino. Pressionou aparelho contra o painel receptor e pôs o dedo no ícone de confirmar na touchscreen. Não gostava de comandos vocais — sentia-se uma tonta que falava sozinha. Seus pais diziam que a tia Sophie costumava falar sozinha porque nunca se adaptara à vida no Brasil e ao português. Nathaima não queria ser esquisita como a tia Sophie… O carro partiu.

Elétricos autônomos costumavam rodar a 15 % da velocidade limite. Na capota havia um pequeno painel de LED que informava isso aos outros veículos. Os mais apressados contornavam o rat com a buzina raivosa dirigida à passageira. Para não pensar no buzinado constante, ela usou o bluetooth para linkar o seu phone com a tela de brilho superior no painel do carro. Conferiu as notícias. Sua atenção maior foi para a cobertura dos trabalhos da Comissão da Verdade do Ecocídio de 2019 a 2024. A corrupção ativa do lobby ruralista era o foco. Impressionante, mas o patriarcalismo descarado pulsava em declarações muito repetidas pelos oligarcas rurais de que “a terra era deles e faziam o que queriam com ela”. “É minha pra botar fogo, se eu quiser…” “O direito à propriedade está acima das regulações…”

Felizmente, tanta arrogância só os fazia enrolar ainda mais a corda no pescoço. Pelo menos junto aos observadores internacionais e às ONGs da área, que exigiam cabeças e reparações. O confisco das terras desses autoritários seria o ideal, na mente de Nathaima e na de muita gente. A melhor reparação seria converter boa parte das terras confiscadas em reservas para sequestro florestal de carbono. Alguns ruralistas até confessaram que a agressividade do lobby naquele período negro da história do Brasil havia trazido uma insegurança jurídica insustentável para o setor, depois que o ecocídio fora confirmado pela ONU.

Nathaima reclinou-se no banco rígido e suspirou, desejando que o rat tivesse ar-condicionado. A ausência fazia parte do pacote de simplificações ambientalmente corretas, e ela não reclamou. Olhando pelos vidros, viu uma São Paulo seca, suja e, mesmo com toda energia limpa em carros e casas, sofrendo um novo pico da sua perpétua crise hídrica.

O olhar de Nathaima foi atraído por um robô humanoide caminhando na calçada. Estava coberto de pichações tão recentes, que a tinta ainda escorria da superfície de plástico de suas costas. Além dos traços que forneciam a assinatura do grupo de pichadores, havia figuras pornô pintadas com estêncil. Robôs humanoides eram símbolos de status em situações sociais, e eram essas situações que os pichadores bombardeavam… O robô tinha ombreiras de alerta e as luzes giravam enquanto sua voz sintética bradava, num gemido dopler quando o rat passou por ele, que tinha sido atacado.

Nathaima olhou em volta. Uma viatura policial passou pelo robô sem diminuir a velocidade, na pista contrária. Sem dúvida, já tinham o relatório do próprio aparelho sobre o ataque sofrido e as imagens que ele gravara dos pichadores. Talvez fossem direto para as vizinhanças do ataque, talvez ignorassem descaradamente o alerta da máquina ambulante, por saberem que não sofrera danos estruturais. A seguradora cuidaria do robô. A polícia tinha mais o que fazer, em um cidade violenta como São Paulo. Nathaima tivera a sua aventura de cyberpichadora por um ano na adolescência, sabia que a justiça reservava somente penas alternativas para esse tipo de vandalismo. Mesmo para as gangues que visavam robôs de entrega. Alguém pedia uma pizza entrega por robôs e o que batia à sua porta era um veículo autônomo com rodas e uma carinha de smiley pintada na frente com o logo da pizzaria — mas coberto de cocô de cachorro. O charme desse tipo de entrega robotizada vinha caindo vertiginosamente. A ativista individual Nathaima Flavre, pertencente a uma minoria racial oprimida e moradora da periferia, aplaudia silenciosamente — pessoas confinadas pelo sistema a uma condição de baixa renda precisavam desses empregos. Por isso é que ela havia se juntado aos cyberpichadores.

Hoje, perguntava-se se os incidentes com a justiça, naquela fase da sua vida, tiveram algum impacto em sua situação profissional…

A segunda tela do rat, informou que ela se aproximava do destino. Nathaima tornou a empunhar o smartphone. Não gostava de usar a internet com reconhecimento de padrões. Há sete anos surgiram os recursos técnicos e a normatização legal que facultava o uso do serviço de rede sem reconhecimento — versão anticomercial do uso anônimo da internet.

Só o que sabia sobre o estabelecimento de destino, pelo e-mail recebido no dia anterior, era que tinha vencido por três anos consecutivos os concursos municipais de “melhor comida de boteco”. Depois de conferir as novas informações, olhou em volta. Seguia por uma avenida estreita, rumo a uma área arborizada. E de fato, drones de entrega e de vigilância evitavam o céu acima das árvores. Logo, via as placas de SANTUÁRIO-NET ADIANTE. O boteco ficava em uma zona sem conectividade. Enquanto isso ainda assentava na consciência de Nathaima, na tela do seu smartphone e
na do painel do carro apareceu no mesmo instante o aviso de SEM CONEXÃO.

Conformada, guardou o smartphone na bolsa. Já estivera em lugares como esse, é claro. Por lei, toda subprefeitura era obrigada a manter um santuário nas suas respectivas regiões. Muitas cidades do interior e do litoral também haviam adotado a medida. Apesar de tudo, ela sentiu um leve aperto no peito, de pensar na próxima hora sem conexão nenhuma. Se é que entrevista de emprego ia durar uma hora… Era com esse tipo de neura em mente, que os santuários foram criados. Para as pessoas saberem que podiam passar uma hora ou mais, sem a net.

*

O lugar se chamava, apropriadamente, Doce Santuário. Não parecia grande coisa. Igual a milhares de outros espalhados pela cidade. Assim que Nathaima saltou do carro autônomo, o rat guinchou um sinal sonoro e partiu. É claro, nos limites do santuário ele podia navegar via GPS direto, mas para ser acionado por outro cliente, precisava estar de volta ao ambiente saturado pelas retransmissoras de telefonia móvel.

Doce Santuário ficava diante de uma grande praça retangular. Havia muitas árvores, ciclistas e crianças jogando bola e adultos sentados nos bancos lendo livros. No centro, as antenas bloqueadores. O bar era vizinho de outros estabelecimentos que se nutriam do bloqueio do sinal: sorveterias, lanchonetes, restaurantes e até um salão de festas infantis. Deu-se conta de que mais tarde teria de perguntar a alguém onde pegar um trolley que a
levasse a uma estação de metrô ou onde pudesse usar o aplicativo para chamar um carro autônomo.

Nathaima respirou fundo e entrou. Seu entrevistador ainda não tinha chegado. Escolheu uma mesa junto a um janelão na frente e examinou. A capa do cardápio impresso retumbava as glórias do lugar, nos concursos de culinária de botequim. Poucos minutos depois, uma bicicleta elétrica parou diante do bar e o ciclista saltou. Era um cara alto e magro, de cabelo e barba curtos, e óculos escuros. Quando ele tirou os óculos, já na entrada do bar, Nathaima o reconheceu como sendo o sujeito que a procurara oferecendo emprego. Alcides de Mendonça Almeida.

Enquanto ele entrava, ela torcia o nariz. Já suspeitava que ele fosse um neo-coxinha — e agora ele entrava calçando tênis americano feito com mão de obra escrava no Vietnã, e jeans stone-washed que gastavam milhares de litros d’água pra serem produzidos (Nathaima usava um vestido de cânhamo estampado, que gastava um décimo da água
usada na fabricação do algodão). E o pior: camiseta de polyester com o símbolo do movimento libertariano brasileiro: um punho fechado, com o mindinho e o anelar abertos apontando para cima. Uma libertação em progresso…

Nathaima levantou-se para ir embora, mas ele achou que ela ficava em pé para cumprimentá-lo, agarrou sua mão e a puxou para beijá-la no rosto.
— Muito prazer, Nathaima — disse. — Por favor, sente-se.
Aturdida, ela obedeceu.
— Não estou atrasado, estou? — Alcides inquiriu, ainda em pé e consultando o caro relógio de pulso.
— Não…
— Que ótimo! Você já pediu alguma coisa?
— Não…
— Ah, que bom! Eu tenho as minhas recomendações.
— Antes, eu queria conferir o que você espera de mim pra este trabalho — ela cortou, gesticulando com as duas mãos.
— Claro — ele disse, e pela primeira vez ela notou que ele tinha uma pequena mochila nas costas. Rapidamente, retirou-a, abriu-a e puxou um maço de papéis. Colocou os papéis na mesa e a mochila em uma cadeira vizinha. Só então sentou-se.
— Não me diga que você tem outro compromisso e está com pressa.
— Eu só queria garantir, antes de mais nada, que não houve algum engano quanto às suas expectativas — ela disse, numa voz miúda.
— Oh… É claro. — Alcides sorriu. — Você fez uma busca sobre mim usando a net sem reconhecimento de padrões, é isso?
— É, mas…
— Quer dizer que não vamos falar sobre as minhas expectativas, mas sobre as suas.

Nathaima sentou-se bem reta na cadeira e tirou as mãos da mesa, deixando-as penduradas junto ao corpo. Atualmente, a internet com reconhecimento de padrões oferecia aplicativos que permitiam acesso ao perfil social e de consumo de alguém que você pesquisasse. Antes, os algoritmos serviam apenas a empresas e institutos de pesquisa.
— Mas você usou a net com reconhecimento pra me encontrar — disse para Alcides. Ele sorriu outra vez.
— Usei sim, mas só pra fins comparativos. Minhas fontes são mais profundas do que isso. — Ele então vasculhou o maço de folhas de papel. Separou duas. — Deixa eu te mostrar.
Nathaima apanhou as duas folhas. Eram prints do perfil dele e dela.
— Leia a conclusão no pé de cada página, por favor — ele pediu.
Ela o fez, começando pelo dele. Era exatamente o que esperava, depois de vê-lo em pessoa. Depois, leu o seu próprio perfil e teve de lutar para conter a raiva. Nunca tinha se dado ao trabalho de fazer uma busca sobre si mesma.
— Aí diz que eu sou de direita — Alcides de Mendonça Almeida disse — e que você é de esquerda. Pra isso, o algoritmo ou os analistas racionalizaram as minhas contribuições pra causas ambientais e sociais como truque pra agradar a amigos do meu círculo pessoal, universitários e pós-graduandos com mentalidade progressista, não é isso?
— Sim, mas também diz que você contribuiu pra dois institutos vinculados ao movimento libertariano e que é filiado ao partido.
— Claro. Mas não é isso o que importa. O importante é que a máquina presume saber qual é a minha tendência verdadeira, quais são os meus compromissos e que máscara eu visto. E o que diz de você? Está certo?
— De jeito nenhum!
— Praticamente diz aí que você é uma feminista de apartamento e uma ambientalista de consumo e ostentação, certo?
Ela respirou fundo.
— O que eu sou é primeira geração de filhos de imigrantes do Haiti nascida no Brasil — declarou, com firmeza e um traço salgado de raiva na voz. — Nasci num cortiço na Liberdade e moro hoje num puxado no Jaraguá, na periferia, e minhas preocupações com a condição da mulher e o meio ambiente não são superficiais.
— Eu sei.
— Sabe?…
— O que esses perfis dizem é que somos o oposto um do outro. Mulher negra e homem branco. Feminista e machista. Primeira geração de imigrantes no Brasil, vigésima geração de quatrocentões. Militantes da nova esquerda consciente, militante da nova direita libertária… Todos os nuances foram apagados, qualquer coisa que poderia aproximar a gente, apesar das diferenças.
Nathaima assentiu devagar com a cabeça.
— Está bem. Eu vou ouvi-lo.
— Obrigado — ele disse, com outro sorriso. — Você ficou nervosa… Vamos pedir algo pra beber?
Eles pediram e logo que a bebida chegou ele disse:
— O que não diz nos perfis é que minha família quatrocentona caiu na ruína faz tempo, e que meu berço foi rural e trabalhador, e que perdi meu primeiro emprego, de operador de colheitadeira de soja, pra um robô. Nem diz que isso me fez vir pra São Paulo pra estudar TI. Nem diz que perdi meu emprego de analista de sistemas pra um software de inteligência artificial.

“Também não diz que você perdeu o seu primeiro trabalho, de designer de unhas, pra uma impressora-manicure. Nem que a perda desse emprego te forçou a se dedicar aos estudos, assim como a perda do seu segundo, de recepcionista bilíngue em um hotel do Litoral Norte, pra uma recepcionista-robô. E que só por isso você entrou na equipe que ganhou a olimpíada de matemática em Paris, o que fez com que fosse contratada pelo IBGE pra desenvolver o algoritmo que fez você entrar no meu radar.”

Nathaima assentiu lentamente, admirada. Então eles tinham mesmo pontos em comum.
— Até hoje — disse —, não sei o que me fez ser exonerada do IBGE. A desculpa de remanejamento de funcionários, com a extinção de alguns programas, nunca me convenceu.
— Eu conheço a razão, mas o que eu quero destacar é que os caminhos que você e eu tomamos foram determinados pelo cerco das máquinas sobre nós.
— Nunca tinha pensado nisso dessa maneira. Mas você disse que meu algoritmo é que chamou sua atenção, e que conhece o motivo da minha dispensa.
Ele encolheu os ombros e voltou as mãos para o alto.
— Alguém não queria que você terminasse o algoritmo! — disse, quase elevando a voz. — E mais gente perdeu o emprego. Todo mundo que estava perto o bastante do trabalho que você fazia.
Nathaima inclinou-se sobre a mesa.
— Como é que você sabe de tudo isso? Disse que tem fontes, fontes profundas…
— Ah! Claro. Olha, veja estas pesquisas aqui. — Ele lhe estendeu mais duas folhas. — Estão em inglês, então não estranhe.
Em inglês e numa formatação bem diferente dos perfis usuais. A linguagem era mais técnica e as conclusões, tão diversas das anteriores, que Nathaima se forçou a ler duas vezes cada uma.
— Diz aqui que somos gente perigosa, capaz de desestabilizar a ordem das coisas — murmurou. — Parecem mais relatórios de suspeitos feitos por uma polícia política, e vazados…
— E é exatamente o que são — ele disse.

*

— Uma polícia política sem mandato — Alcides respondeu, depois que Nathaima perguntou que polícia era essa. — Difusa, como tudo o que diz respeito à internet, os algoritmos de reconhecimento de padrões e inteligência artificial. Nas mãos não do poder constituído, mas de grandes empresários e lobistas e institutos de fachada ideológica, e daí pra agências de inteligência de diversos governos.
— Eu não entendo — Nathaima disse. — Não sou uma subversiva. Meu algoritmo ia contribuir pra uma transparência maior nos dados de consumo e demografia…
— Ia trazer transparência a quem não a quer. Criminosos, piratas comerciais, e políticos, funcionários públicos e empresários corruptos.
Nathaima negou com a cabeça.
— A nossa premissa na construção do algoritmo era a anonimidade. Ia ser pra fins estritamente estatísticos.
— Mas tem o potencial, com poucas modificações, de identificar e localizar infratores.
— É isso que você quer que eu faça? — ela perguntou. O tempo todo, tinha achado que Alcides a queria para escrever o código de um website. — E pra quê?
— Não é bem isso. Seria uma modificação noutro sentido. O caminho inverso. Seu algoritmo permite enxergar o padrão individual difuso na torrente de dados de consumo, busca e postagem em redes sociais. Coloca a lupa no dado miúdo, mas a sua lógica interna também permite que se faço exatamente o inverso: faça o usuário miúdo enxergar quem o examina por trás da lupa, enquanto ele opera nas redes.

Fez uma pausa dramática, e Nathaima refletiu sobre o que ouvia. Quase fechando os olhos, puxou da memória a geometria do algoritmo inacabado, os elementos de simetria e arranjo. Para sua surpresa, a hipótese de Alcides fazia sentido. No instante seguinte, sentiu um calafrio e então um calor apavorante subir pelo seu peito e seu pescoço. O que aquilo não faria ao mundo, se ela terminasse o algoritmo por esse viés?
— Você chegou a essa ideia sozinho?
— Claro que não — ele respondeu. — Minha matemática não chega aos pés da sua. Foram as minhas fontes.
— E quem são elas?
— Gente como eu e você, Nathaima. Pessoas que buscam liberdade de um lado, e o avanço das causas sociais e ambientais, do outro.
— E essa combinação é possível? — ela inquiriu.
Agora ele gesticulou para ela e para si mesmo.
— Não é o que estamos tentando provar aqui?
Ela quase sorriu, e pela primeira vez desde que ele se sentara para desfiar o seu rol de absurdos.
— Talvez.
— O um por cento — ele soltou, num tom definitivo.
— Como é? As suas fontes são o um por cento dos mais ricos?…
— Não — ele negou, cortando o ar com a mão esquerda. Era canhoto? — Minhas fontes são os inimigos do um por cento.
— Mas eles não são o defensores do livre mercado, a maior expressão de liberdade do mundo moderno? — ela perguntou, com ironia.
— São as pessoas que querem colocar um cabresto no livre mercado, semear conflitos por interesse e impor a mesma mentalidade a uma diversidade de pessoas. Os algoritmos que permitem a manipulação das mídias sociais são só a ferramenta mais nova e insidiosa dessa gente.
— Você quer mesmo me convencer de que pensa fora da caixa, Alcides. Não discuto a sua avaliação do problema. Mas o mundo já não acordou pra isso? — Ela fez um gesto indicando o espaço restringido lá fora. — Santuários pras pessoas se sentirem livres da conectividade tóxica das redes sociais, e a disponibilização da rede sem algoritmos de reconhecimento de padrões…
— São passos importantes. Mas minhas fontes dizem que o inimigo prepara o contra-ataque. Ele nunca descansa. Todo o esforço global pra diminuir a concentração de renda denunciada pelo Grupo Piketty e promover o avanço das mulheres e das causas ambientais pode ser revertido por eles, com tecnologia de inteligência artificial chinesa e novos algoritmos de manipulação das redes sociais.
“Olhe o que aconteceu no Brasil em dois mil e dezenove. Tantos grupos com agendas diferentes foram convencidos pela boataria das redes sociais que um único candidato os representava a todos…”
— As coisas agora são diferentes — Nathaima disse. — Mas começo a entender como é a sua noção de liberdade. Acha que esses grupos foram enganados, no seu desejo de e verem livres da opressão econômica e da corrupção.
— É isso mesmo. Tudo bem que aquilo foi há quase trinta anos, mas se o público e as instituições ficaram mais alertas contra as fake news, também é verdade que os recursos do inimigo hoje são muito mais sofisticados.
— E nós vamos descarrilhar o trem deles a partir daqui, desta mesa de bar?
Alcides gostava de sorrir.
— Na pior das hipóteses, vamos ganhar tempo. Tempo pro mundo criar juízo e deixar de ser tão vulnerável à indústria das mentiras.
Nathaima também sorriu. Soube então que aceitaria a sua proposta de emprego.

*

Depois que eles comeram, ela, satisfeita, saiu para a frente da praça. Parecia tudo muito tranquilo. Ela então fez questão de perguntar a Alcides onde podia pegar o trolley para a estação de metrô mais próxima.
— Só mais uma coisa — ele lhe disse, depois das instruções e já montado na bicicleta. — Você deu a entender que o que me move é o respeito pelas liberdades individuais e o temor da sua nivelação por quem promove as fake news. Mas acima de tudo, o que me move é o medo da maior ameaça que pode haver à liberdade.

“Aquilo que aqueles clichês sobre nós representam. O último estágio da automação é transformar todos nós em robôs.”

*Um dos mais experientes escritores brasileiros de ficção científica em atividade, Roberto Causo tem contos publicados em 12 países e em antologias representativas da FC brasileira e latino-americana. Seu romance mais recente é a space opera Mestre das Marés (Devir Brasil, 2018).