Na boca do estômago
O estômago abre um olho de dor no meio dos músculos abdominais. Parou ali o “treino insano de deltoides” — elevações laterais com o cabo dependurado. Dentadas no estômago impedem o treino de continuar. Enxuga-se e aproveita para espiar as mensagens do trabalho. Um pedido de reunião em 45 min. “Será alguma emergência?” Um anúncio sobre clube de assinatura de quartos-cápsulas pula na sua cara. Abandona os pesos de vez.
Arranhadas no estômago. “Que reunião é essa?”. Apesar da descrição do cômodo garantir o padrão 222 — 2 metros de altura, 2 de largura e 2 de comprimento —, treinar musculação num quarto-cápsula é torturador. “É a última vez na semana que gasto com um quarto desses”, promete como na maioria dos dias.
Da mochila, Leia saca a regata com listras largas recomendada pela consultoria de estilo. Para o espelho ri sozinha, “pareço um sagui” — o listrado pelo dorso e o cabelo curto descolorido, repartido em tufos em dois elásticos. A máquina de expresso detecta novo padrão de movimentos e prepara uma xícara de café. Luzes aumentam vibrantes. Terminada a toalete, Leia descarta uma toalha umedecida.
São 21h14, batidas na porta e uma voz abafada recomenda:
— A senhora é Dona Leia? Olha, teu período esgotou faz 37 minutos. Você precisa desocupar a cápsula, senão vão te cobrar mais 2h. Não consigo segurar o sistema.
— Tá certo. Valeu.
A hóspede solicita o orçamento de renovação do mesmo quarto na taxa mínima de 30 minutos. Confirma a compra. “O que será essa reunião? Uma emergência de equipe logo à noite? Não dava para esperar até amanhã?”
No menu da máquina de expresso, procura opção de sanduíche com proteína vegetal otimizada. Há somente um: X-Burguer Supervegan. “Só se o X for de tóxico”, amarga Leia, vendo que não há opções orgânicas. O sanduíche sai pelando quente da cápsula, Leia morde o lanche e, de boca cheia, dirige-se ao próprio punho, onde se enrola o G-Wrist Strap:
— Ei, Dr. Watson! Você vai me autorizar a fazer uma endoscopia finalmente?
— Seja bem-vinda! — irrompe a voz máscula do aplicativo — Aguarde um instante, estou localizando sua ficha médica. Por favor, pronuncie seu nome completo.
— Leia Reis Galvão.
— Agradeço a confirmação. Boa noite, Lêia, qual a queixa? — o aplicativo Dr. Watson pronuncia o nome de Leia como se fosse declinação do verbo ler.
— A dor de estômago novamente. Você vai me deixar fazer a endoscopia?
— Sua ficha, Lêia, indica paciente de 32 anos, estatura de 1,72 m, peso 77 kg, índice de massa corpórea acima do recomendado, mas justificado pelo trabalho muscular na modalidade bodybuilding. Confirma?
— Sim — a mulher encolhe-se. Impossível esconder os ombros avantajados, talhados em exercícios obsessivos para deltoides.
— Nas três últimas consultas, consta a solicitação de fazer uma endoscopia. Desculpe. O exame não é compatível com perfil etário e comportamental da paciente. Indico alterações na alimentação. Foi detectada privação severa de sono nos últimos 8 dias e consumo de cafeína acima do padrão OMS.
É o de sempre. Leia faz uma careta, enquanto joga fora a cápsula do sanduíche:
— E se eu quiser fazer uma endoscopia?
— Uma endoscopia te consumirá 1.400 créditos do sistema Watson. No plano mensal contratado, pedidos fora do padrão de dados são custeados à parte — a voz assume um tom animado e veloz — Ei, você deseja fazer uma atualização de plano? Tenho uma oferta imperdível, incluindo uma cesta diária de refeições Supervegan no padrão orgânico sem conservantes. Somente hoje…
— Sair — corta Leia. O som do aplicativo médico emudece. “Avisa você no trabalho de que preciso dormir mais”. A jornalista admira o próprio antebraço talhado em feixes musculares. Leia amarra os cabelos descoloridos espigados em um rabo, hábito condenado pela consultoria de estilo, e agarra a mochila.
Quando o público rejeita textos escritos por pessoas
Nos passos duros, a jornalista debate consigo mesma sobre as vantagens de um clube de assinaturas de quartos. Não os genéricos, com aqueles sanduíches tóxicos, e sim os oficiais do Clube de Assinatura 222: “basta descer as escadas e estou pertinho do local da reunião, economizo no transporte”.
Leia passou meses sob consultoria financeira. Ao final, a recomendação: “alugue um quarto fixo, organize sua rotina, diminua gastos com refeições desplanejadas e pernoites em conglomerados”. Para escutar essas obviedades, Leia não precisava ter gasto aquela fortuna. Irritada com a lembrança, dá de ombros e pisa firme na direção indicada nas mensagens urgentes.
O endereço situa-se no mesmo conglomerado — um conjunto faraônico de andares, corredores e galerias, reunidos em uma construção única, oferecendo salas de trabalho, auditórios, lojas, bares de sanduíches, quartos-cápsulas para dormir. Uma colmeia limpa e vigiada 24 horas.
“Estranho”, repara ao chegar, “a gente nunca usou esse serviço do Clube 222. Será que o departamento comercial fez uma renovação no contrato de aluguel de salas?”. Aproxima o indicador na porta e a fechadura destranca-se.
A jornalista esmaga o carpete fofo com os pés. Na sala, a noite desmancha-se em luz muito branca, poltronas e uma máquina de cafés energéticos. Ao entrar, quase chuta um disco de limpeza. Desequilibra-se e dá de cara com Maria Figueiredo. A recém-chegada recupera-se:
— Oi, bo-boa noite, Mafi. Desculpe, não vi o robô.
— Pois é, quando cheguei ainda havia três desses. Os coitados ainda estavam trabalhando. Essas reuniões em cima da hora dão nisso. Quer um café?
— Aceito, sim. — Leia lembra da lista de recomendações do Dr. Watson sobre as dores de estômago e irrita-se. — Ah, deixa que eu mesma pego.
Vai até a máquina de café e, com ódio, aperta a opção do expresso duplo com Silver Bull. A outra mulher retira um chá de cidreira. Maria Figueiredo enverga uma roupa com modelagem ampla de fibras naturais, exibindo uma cabeleira trançada em lilases que lhe emolduram a pele negra, G-Glass nos olhos. Cheira a tabaco, vício vintage. Prende as tranças longas e beberica o chá, mascando a notícia da bomba com certo prazer:
— Foi um cavalo de troia.
— Um cavalo do quê? Isso não estava extinto, Mafi?
— Ah, Leia, nunca se extingue uma coisa dessas. Só sei que qualquer mecanismo de fact-checking está suspenso.
— O quê? Mas como a gente vai soltar notícias sem conferir fatos antes?
— Também não sei. Mas foi isso que o Fausto me disse.
A cabeça de Leia roda em mil planos. A redação do Notícia Central é formada, ao todo, por sete pessoas — dois do comercial e cinco da moderação de conteúdo. Leia e Maria Figueiredo pertencem ao último grupo. Reuniões físicas são obrigatórias para não perderem o espírito de equipe e todos as detestam em unanimidade. Não há chefia estabelecida, mas há investidores, assinantes e, se aquela gente não se entendesse e não produzisse um fluxo contínuo lucrativo de textos para vender anúncios, há desligamentos programados.
A reunião emergencial contará somente com três integrantes. O resto talvez queira mesmo se candidatar a um desligamento. Leia rumina, “só eu que sou trouxa de não ter ainda uns sete contratos simultâneos. Preciso parar de ser idiota e acabar com isso de ficar me dedicando a uma redação só”.
A porta abre-se novamente. Fausto surge com sua cara redonda e pálida. O excesso de cosméticos ou medicamentos deixava-o com a expressão plácida. Com um gesto, dispensa café ou água. Leia estremece ao pensar que nenhum de seus gadgets são visíveis, “vai saber o que tem implantado sob o colarinho”.
O recém-chegado pertence ao departamento comercial. Veste uma camisa cáqui de alfaiataria e colarinho rígido. No bolso direito, uma figura bordada, semelhante a uma gravura antiga. Leia perturba-se com o emblema, mas não comenta nada. Qualquer comentário a respeito de roupas dirigido ao colega termina numa espécie de palestra humilhante para a outra parte.
Estando as três figuras reunidas, Fausto pigarreia e apresenta o problema:
— Então, oi, gente, boa noite. Estava falando com a Maria Figueiredo, houve uma avaria de grande porte no mecanismo de checagem de fatos da OpenAI. Não vamos conseguir manter o fluxo de publicação de textos nas próximas horas. Nosso estoque dura até 0h17 com textos conferidos. Depois, bem, minha recomendação, hum, estudei cuidadosamente, é publicar textos desprezando essa etapa.
Leia treme com a sugestão e a voz falha:
— Qual etapa? A de checagem de fatos? Credo, Fausto, impossível. Vai contra qualquer protocolo ético.
— Estou ciente desse pormenor, Leia. Mas raciocinei que os investidores ficarão mais irritados com a falta de engajamento do que com deslizes. Veja, podíamos manter umas 12h de publicações. Depois, reavaliamos.
As duas fitam o interlocutor. Fausto é impactista. Sua ocupação, no jornal, é prever justamente o impacto de notícias e engajamento de pessoas, garantindo a lucratividade de anúncios e a felicidade das microassinaturas. Desligar o mecanismo de checagem de dados é o sonho dourado de gente assim.
Vermelha, Leia morde o lábio, engolindo a indignação pela sugestão que afeta a moderação de conteúdo. Garantir cumprimento de diretrizes éticas está sob sua responsabilidade na equipe. O ataque é frontal.
Maria Figueiredo pigarreia e sugere vagarosa:
— A gente pode escrever as matérias. Eu fiz isso já. Vamos dispensar a OpenAI, aquele gerador de lero-lero.
Leia dá sinais de derrota:
— Impossível, Mafi. Ninguém vai engolir textos escritos por gente.
O adversário com rosto de lua explica a situação como se falasse com duas crianças:
— Leia tem razão, Maria. Está mais do que comprovado que, depois que a OpenAI GPT8 virou o padrão de texto escrito, o público rejeita textos produzidos por pessoas. Olha, eu lembro de quando usavam inteligência artificial só para escrever manuais e textos técnicos. Mas a graça da OpenAI é justamente impactar as pessoas com textos fabulosos, impecáveis, notícias na hora certa. Por exemplo, nunca vou receber as receitas de exercícios de hipertrofia que a Leia adora.
A halterofilista ignora a provocação e propõe:
— E, sei lá, e se a gente contar a verdade? Produzimos uma matéria no muque mesmo, isso que a Mafi disse, escrevemos um texto curto e anunciamos a falha técnica. Seria a verdade ao público. Um gesto humano.
A mais velha retruca:
— É arriscado, Leia, o sistema pode cortar alguém depois, você sabe.
No rosto de Fausto, não há expressão significativa, mas sua voz julga:
— Não precisa ser nenhum especialista em impacto para saber que esse plano é ridículo.
“Ridículo é ficarmos os três aqui com a bomba na mão”, queria rosnar Leia, mas permanece calada de rosto vermelho.
Os três colegas mastigam juntos um naco de animosidade em silêncio.
O mecanismo de fact-checking é essencial ao funcionamento da OpenAI. Capaz de produzir trilhões de texto por segundo, a inteligência artificial necessita conferir, a cada linha de texto que produz, se a base empírica é condizente com a realidade histórica e factual. Então, cada notícia de jornal é distribuída ao gosto do freguês, graças ao uso de algoritmos a partir da análise de dados que entregam a notícia correspondente ao estilo de cada pessoa.
As maiores batalhas, no início do uso de AIs na produção de texto, foram estas: se trilhões de textos por segundo serão produzidos, é fundamental que sejam fidedignos dentro dos protocolos de redação do Acordo de Reykjavík, que instituiu o grupo de trabalho Wikimedia em São Francisco, onde se fixa a edição anual definitiva da Wikipédia.
Um bip soa nos ares: fim do tempo de aluguel da sala de reunião. Fausto, sem mover um músculo facial, despede-se:
— Seguimos nas redes.
Antes que Fausto se vá, discretamente, Leia faz uma fotografia da camisa cáqui do colega. Queria ver, depois com calma, a estranha figura bordada no bolso.
Maria Figueiredo levanta-se no cansaço de carregar experiência demais e acena:
— É um cavalo de troia, sim, minha filha. Tchau.
A porta cerra-se.
Jogo de ponta-cabeça
Leia pede ao G-Wrist Strap uma sala alugada para trabalhar. O sistema pergunta se ela quer ficar mais 30 minutos na mesma sala. A jornalista confirma. Robôs da limpeza retornam zunindo e soltando produtos químicos no ar. O preço baixo é justificado por aquele ser um período de limpeza.
Soca o ar com cheiro de amoníaco. Abre a estação de trabalho. Começa a conferir a edição da madrugada. Pede a versão atual da Wikipédia e decide avaliar blocos de texto com base na própria experiência pessoal. “É um troço arriscado, mas não posso jogar a toalha para o plano do Fausto.” Animada, percebe que conseguiria, pelo menos, rever a edição da madrugada. Leia não se dedica à toa somente para um único veículo: é jornalista das que gosta do que faz.
Meia-noite. O bolo de farpas no estômago não melhorou. Logo mais, entrariam no ar algumas das notícias revisadas manualmente.
Espreguiçando-se, Leia solicita ao G-Wrist Strap recuperar a foto da camisa cáqui de Fausto. As luzes da sala aterrissam numa penumbra. Nos tons acastanhados da parede, projeta-se a estampa:
— Amplia.
Então, a jornalista fita o emblema horrorizada com a própria semelhança: o bordado exibe uma pessoa também branca de cabelos claros e braços fortes. De cabeça para baixo, a figura é presa só por uma das pernas. A outra perna balança, desenhando um quatro no ar.
— Localize semelhante — demanda rouca.
Uma voz de timbre unissex invade a sala:
— Detectada. Imagem específica do Tarot de Marseille de Camoin, Jodorowsky. Baralho de cartas para entretenimento divinatório de 2016. Dimensão de 2.8 x 1.2 x 5 polegadas.
— Interpretação, análise.
— Carta: a Enforcada. O castigo à traição. Segundo Sallie Nichols, a cabeça da figura, na verdade, está abaixo da superfície da terra, enterrada, por assim dizer, sob a terra, como as raízes das duas árvores. O alto da cabeça da figura, com os cabelos pendentes, sugere uma terceira bola debaixo da terra, talvez um nabo, com as raízes peludas características desse vegetal. Com essas características, a figura enforcada se acha tão indefesa quanto um nabo.
— Sair — pede entre tossidas.
A sala banha-se de luz esbranquiçada. O estômago de Leia morde-a uma vez mais. Aquela carta parecia algo terrível. “Aposto que Fausto fez de propósito”, alucina, “aquele ali estuda cada peça de roupa antes de se vestir. Bom, não é impactista à toa”. Em súbita decisão, pede:
— Ei, Dr. Watson? Gostaria de examinar as opções de refeições diárias. Aquela cesta da Supervegan… — em seu pulso, o G-Wrist Strap vibra.
Após alguns minutos, Leia recebe uma série de comerciais. Depois estudaria aquilo para ver se algum pacote vale à pena. Nisso, descobre novas mensagens de Fausto. Simulações de taxas de impacto do jornal sem a checagem de fatos. Se entrassem notícias sem passarem pelo filtro do fact-checking, claro que os índices aumentariam e Fausto ganharia um bom bônus por isso.
“Quem ele quer enganar?”, murmura Leia a um disco da limpeza que lambe seus pés.
São 0h12. Cansada com o trabalho de revisão, Leia decide por 45 minutos de soneca. Programa a trilha “sons da floresta” para adormecer. Reclina-se na poltrona. Ouve cachoeiras, pássaros. Pega no sono. Logo, escuta berros de macacos. Saguis em fuga. Dependuram-se pelas caudas em galhos e trepadeiras, avançando em ondas. O maior sagui ataca Leia, acoplando-se em seu rosto, formando um vácuo e a impedindo de respirar.
Leia desperta do pesadelo debatendo-se.
São 2h45. Não há mais limpeza e um novo débito foi feito na sua conta.
Por costume, abre o Notícia Central. O estômago manifesta-se, como se Leia tivesse engolido um animalzinho raivoso.
Então, lê o impensável:
Todas as matérias da edição da madrugada que havia corrigido à mão entraram no ar sem as suas alterações!
A princípio, eram detalhes. Um parágrafo enfático sobre benefícios dos clubes de assinatura para quartos-cápsula em conglomerados. Depois, um parágrafo que Leia excluíra a respeito da atuação de gangues de ruas — ela não encontrara nenhum fato que comprovasse o boato sobre tais gangues, assim, decidira cortar o trecho. Agora, no Notícia Central, o trecho, antes excluído, destila todo o seu sensacionalismo.
“Será que não salvei as modificações?”
Revê logs. A madrugada desperta em suas veias. Acessa, novamente, a área de administração dos textos. Somente Fausto havia entrado, provavelmente para os cálculos das simulações. Seria mais cuidadosa.
Decide, então, repassar os textos da edição matutina, que entrariam no ar nas próximas horas. Um a um. Observa que, nos textos, há uma tendência em citar gangues de rua e mais parágrafos sobre a comodidade dos serviços de assinatura de quartos-cápsulas. Há, inclusive, uma resenha elogiosa sobre o Clube de Assinatura 222, alertando contra os perigos de quartos-cápsulas sem certificação.
“Isso aqui é demais”. Em comandos de voz, reescreve e corta texto. A edição matutina é extensa, mas o trabalho lhe dá prazer. Após horas, com olhos injetados e rouca, termina.
Ao final, soa um alarme. 6h45. Horário do treino matinal.
Revisa a agenda, manhã de parkour! Faz o aquecimento, alonga-se. Com a mochila nas costas, Leia dispara pelos corredores do conglomerado, pula vasos e lixeiras. Ultrapassa as pessoas na esteira rolante. Imbuída do espírito de animais da floresta, empunha corrimãos como se fossem trepadeiras, agarra barras de contenção, voa.
Ofegante, termina o treino suada.
Dirige-se ao vestiário do conglomerado. Está lotado. O porte de Leia afasta algumas pessoas. Peso, estatura e IMC são conferidos, ela recebe uma toalha quente e a confirmação do débito pelo pagamento do banho.
Envolta em vapor, Leia agora está em outros domínios. Onde não há mais gangues ou cápsulas. Imagina-se dependurada pelos pés e balança suavemente. Balança e sorri. Há grama pelos céus, árvores de ponta-cabeça e um vasto azul pelo chão. De súbito, um calombo na barriga aparece. O calombo aumenta e a pele rasga-se: um sagui irrompe de seu ventre berrando até pular correndo em direção às árvores invertidas.
Atarantada, Leia pisca no box do chuveiro, “sonhei acordada”.
Veste-se. Por hábito, abre o Notícia Central.
Lenta, percebe que as matérias da edição matutina, as que havia corrigido durante horas madrugada adentro, estavam publicadas sem alterações. Todo o seu trabalho foi inútil. Ali estavam as gangues de rua. Ali estavam as comodidades sobre clube de assinaturas de quartos-cápsulas. Ali a resenha desavergonhada elogiando o Clube de Assinaturas 222.
Pede acessos.
Além dela, somente outra pessoa trabalhou na edição.
Fausto. Será que Fausto é o cavalo de troia? O impactista? Apagando edições de Leia, alimentando mentiras calculadas por algoritmos, ganhando bônus por impacto de notícias sobre a violência nas ruas? Ganhando grana por fora para inserir propaganda de clubes de assinatura? Leia expira. Não há evidências. Ela não vai ser nenhum Sherlock e se precipitar em concluir coisas. Precisaria investigar.
São 8h21. A jornalista pede rouca:
— Gravação. — inspira e dispara — Olá, eu sou Leia Galvão e falo diretamente da redação no Notícia Central. Hoje nosso fact-checking, mecanismo de conferência de dados, esteve fora de funcionamento. Acreditando que o melhor jornalista é o que honra o seu público, achei melhor noticiar. Até recuperarmos todo nosso potencial de trazer para a tela as histórias que você merece, o aviso permanecerá em nossa tela de boas-vindas. Agradecemos a compreensão. Fim. Compile.
Leia relê várias vezes a mensagem em voz alta pronunciando cada sílaba, era isso que Mafi recomendava para pegar erros em textos. “Ok”, sussurra.
Autentica. Envia. No ar.
O texto agora está em todas as telas e leitores do Notícia Central. Mesmo sendo um veículo modesto, são alguns milhares. “Sem a verdade, a gente não fala nada.”
No pulso da jornalista, Fausto pede contato. Leia impede, inserindo a resposta automática de compromisso médico. Então, Fausto deixa mensagem de voz no timbre monocórdio, “Colega, estudos de impacto não autorizam essa tomada de decisão. No aguardo.”
Na sequência, recebe uma notificação de “conta suspensa”. Provavelmente pela denúncia de Fausto aos demais membros da equipe. Leia dá de ombros. Já ocorreu antes. Logo teria seu acesso normalizado. Ou não.
Algumas pessoas no conglomerado a apontam. Devem reconhecê-la da foto na notícia agora cedo. Parece que sua nota teve, enfim, algum impacto. Mais pessoas a saúdam. Logo, em seu pulso, brilha uma mensagem:
— Parabéns! Você foi selecionada para ser nossa convidada, durante três meses, do Clube de Assinaturas 222. O convite inclui refeições diárias Supervegan no padrão orgânico. Aproveite todo conforto que só o verdadeiro quarto-cápsula oferece para mulheres de atitude.
Biscoito grátis? Leia fica sem ar. Será que agora é influente a esse ponto? Sua ação foi tão impactante nas redes que ganhou convites de marcas? Sem pestanejar, aceita a oferta, economizaria uma boa grana. Afinal de contas, textos escritos por pessoas não eram tão ruins assim. Caminha altiva com as escápulas pressionadas para trás.
Aos poucos, a dor de estômago retorna em cócegas. Leia rumina: “Pode ser também tudo um plano do Fausto. Me dar presentes, me amolecer. Me impactar. Assim, vou analisar resenhas fazendo propaganda de quartos-cápsulas. Impactar o jornal, outras pessoas. Pilantra. Nada disso. Vou aumentar a carga do meu treino amanhã mesmo”.
Cambaleando de fome, a jornalista decide sair do conglomerado. Após descer escadas rolantes, no átrio, um vento suave a recebe em céus altos. Quem sabe, nas ruas, na padaria da esquina, saberiam de alguma gangue?
Dá passadas firmes, solta os cabelos secos ao vento mostrando deltoides insanos. Talvez fosse uma boa hora apreciar uma refeição de verdade.
*Ana Rüsche é escritora. Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) com tese sobre Margaret Atwood e Ursula Le Guin, pesquisa ficção científica. Seu livro novo é A telepatia são os outros (Monomito, 2019).