Estadao
Estadao
Da redação do Estadão
12/09/2022 | 05h00

O Brasil nunca gastou tanto e atendeu tantas famílias com transferência de renda direta do governo para os mais pobres. Mas enfrenta o obstáculo de fazer mais e melhor com o dinheiro para combater a pobreza e a fome no País, que subiram no rastro dos efeitos da pandemia da covid-19 na economia e da disparada dos preços.

A depender das promessas dos quatro candidatos à Presidência da República que estão na frente nas pesquisas nas eleições deste ano, o Brasil entra em 2023 com o maior programa social de transferência de renda da história e um orçamento cinco vezes maior do que existia antes da covid-19.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Jair Bolsonaro (PL), Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB) acenaram que vão manter o valor de R$ 600 do Auxílio Brasil, caso sejam eleitos.

Nesta reportagem de Adriana Fernandes, o Estadão mostra que, se a promessa for cumprida, os recursos para o programa social terão dado um salto gigantesco num período de três anos, saindo do patamar de R$ 32 bilhões, pago em 2019 no extinto Bolsa Família, para R$ 157,7 bilhões no ano que vem.

Esse é o dinheiro necessário para manter em R$ 600 o valor do piso do benefício do Auxílio Brasil, programa que substituiu o Bolsa Família, e atender 21,6 milhões de famílias.

Programas de transferência de renda direta  precisam aumentar o foco nas camadas mais pobres da sociedade
Programas de transferência de renda direta  precisam aumentar o foco nas camadas mais pobres da sociedade. Marcos Santos/USP Imagens

Um salto no orçamento do programa de 0,4% para 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB), valores inimagináveis até pouco tempo atrás pelos pesquisadores e gestores da área social, que sempre cobraram mais investimentos para tirar a população brasileira da extrema pobreza e reduzir as desigualdades históricas do País.

Os gastos do Bolsa Família, antecessor do Auxílio Brasil, oscilavam entre 0,3% e 0,5% do PIB. No seu pico, atendeu 14,6 milhões famílias, e o maior valor do benefício médio pago foi de R$ 191,86.

Agora, a pergunta que paira no ar é se a expansão do orçamento do programa social será sustentável nos próximos anos num cenário de contas públicas ainda muito frágeis, ambiente político de captura do Orçamento para gastos não prioritários e uma economia que cresce pouco há anos.

O valor do benefício foi elevado de R$ 400 para R$ 600 até o final do ano, numa ação do governo e do Congresso Nacional considerada eleitoreira e que levou à quebra das regras fiscais e eleitorais para ser implementada neste segundo semestre.

Se cientistas políticos e economistas não veem espaço para o retorno do valor do benefício para R$ 400 em 2023, após a pandemia ter colocado o combate da fome no centro do debate de política econômica, a incógnita é se o programa social turbinado não passará de um soluço de curto prazo. Na campanha eleitoral, o valor do Auxílio Brasil se transformou numa corrida de quem promete mais na busca de votos do eleitor mais pobre.

É unânime entre os especialistas na área social que o programa criado pelo governo Bolsonaro vai precisar de um redesenho para aumentar a sua mira, o foco, nos mais pobres. Eles avaliam que o benefício mínimo por família acaba incentivando a fraude, com famílias se “dividindo” artificialmente para receber mais dinheiro.

“É muito óbvio que dá para fazer muito mais com o mesmo e também fazer mais com menos”, diz Daniel Duque, pesquisador na área de desigualdade social, que critica duramente o desenho do Auxilio Brasil, que permite que uma família com uma ou duas pessoas receba o mesmo valor do benefício de uma família mais numerosa e com crianças em idade escolar.

Para Duque, o primeiro passo do presidente eleito em outubro deveria ser refazer o desenho do programa para evitar desperdício de dinheiro na tarefa de combater a pobreza.

Duque é cético, porém, em relação à continuidade do programa nesse tamanho depois das eleições, apesar das promessas. “Dificilmente será mantido do jeito que está, é algo temporário. Promessa eleitoral é palavra ao vento”, afirma ele, que está fazendo simulações para identificar qual seria o alcance do programa com os recursos atuais se houvesse o mesmo foco do Bolsa Família.

Uma das medidas mais urgentes apontadas pelos pesquisadores é a recuperação do cadastro único, instrumento que serve de base para o benefício ser acessado, e o fortalecimento do Cras, os centros de referência de assistência social nos municípios.

Esse é um dos pontos estudados pela socióloga Letícia Bartholo, especialista em políticas públicas e gestão governamental. Ex-secretária Nacional Adjunta de Renda de Cidadania, ela foi uma das primeiras especialistas a apontar os erros do desenho do Auxílio Brasil antes mesmo dele ser aprovado pelo Congresso Nacional. Letícia defende o fortalecimento e a recuperação do cadastro urgente.

A decisão do presidente Jair Bolsonaro de fazer um piso de R$ 400 por família, que depois subiu para R$ 600 até o fim deste ano, agravou o problema da deterioração dos dados do cadastro via estímulo à “divisão das famílias”.

Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Rafael Osorio destaca que o cadastro único já estava sofrendo antes da pandemia o problema de piora da qualidade. No período da pandemia, o problema aumentou porque as famílias foram liberadas de atualizar os dados pelas dificuldades diante do avanço da covid-19.

Segundo Osorio, a expansão do Auxílio Brasil, a partir de janeiro de 2022, está fortemente concentrada em famílias de uma e duas pessoas. Ele lembra que na faixa de renda mais baixa as famílias são mais numerosas.

“Uma dificuldade que sempre teve no cadastro é das famílias que escondem maridos. Já existia uma suspeita que isso acontecia antes e parece que está acontecendo com mais intensidade”, avalia.

Como a focalização piorou, parte das transferências pode estar sendo direcionada para famílias que não são tão pobres. Ou seja, pessoas muito pobres podem não estar recebendo.

A consequência do quadro atual, no qual se expandiu muito o orçamento, mas piorou a focalização, é que a redução da pobreza pode não ser tão grande quanto poderia.

MAPA DA FOME

No mapa da fome traçado pelos economistas Marcelo Neri e Marcos Hecksher, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social), a fotografia anual da pobreza apontou que 10,8% da população estava abaixo da linha da pobreza de R$ 210 de renda per capita em 2021, cerca de 23 milhões de pessoas. A proporção de pobres subiu 42,11% entre 2020 e 2021. Um contingente de 7,2 milhões de novos pobres em relação a 2020 e 3,6 milhões de novos pobres em relação ao período da pré-pandemia.

O contingente de pessoas com renda domiciliar per capita até R$ 427 mensais (US$ 5,50 por dia – parâmetro internacional) atingiu 62,9 milhões em 2021 – 30% da população brasileira. Um aumento de 9,2 milhões de pessoas de 2019 a 2021. Em 14 Estados, a proporção de pobres é superior a 40% da população.

Para a diretora institucional da Rede Brasileira de Renda Básica, Paola Carvalho, o empobrecimento do Brasil não é culpa só da pandemia. “A pandemia agravou. Quando ela chegou ao Brasil, encontrou um terreno muito fértil”, diz ela que destaca a piora do mercado de trabalho e aumento da informalidade. “Antes da pandemia, o Bolsa Família já tinha uma lista de espera de duas milhões de famílias”, diz ela, que tem alertado para o problema da “fila da fila” de acesso ao Auxílio Brasil.

Coordenador do Comitê da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida no Distrito Federal e em Goiás, José Ivan de Aquino destaca o retrocesso na redução da pobreza no País. Ele lembra que quando o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, fundou a ação em 1993, os números apontavam que 32 milhões de brasileiros passavam fome. Hoje, 33,1 milhões têm fome e vivem numa situação de insegurança alimentar grave, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan). “Acompanhamos a evolução dos números da fome com muita preocupação”, diz. “O Brasil precisa ouvir o chamado de Betinho de 30 anos atrás”, diz. •