Estadao
Estadao
Da redação do Estadão
04/08/2022 | 05h00

Nos rankings dos países com os ambientes de negócios mais amigáveis, o Brasil costuma ter desempenho pífio. Pode até subir duas ou três posições na classificação geral em um ano, mas volta ao ponto anterior ou até pior no seguinte. Veja alguns exemplos do fiasco do País neste campo:

• Na edição 2021/2022 do Global Entrepreneurship Monitor (GEM), o mais abrangente estudo sobre as condições oferecidas aos empreendedores pelo mundo afora, o Brasil aparece em 47.º lugar, entre 50 países, ao lado de Belarus e à frente apenas do Irã e do Sudão;

• Na lista de 2022 da Heritage Foundation, dos Estados Unidos, que aponta o grau de liberdade econômica em 184 países, o Brasil ocupa a 133.ª colocação, atrás do Camboja, de Uganda e da Nicarágua;

• No Doing Business de 2020, produzido pelo Banco Mundial, que apura a facilidade para fazer negócios em 190 países, o Brasil está na 124.ª posição, abaixo da Faixa de Gaza, da Albânia e do Vietnã;

• No Global Competitiveness Report de 2019, elaborado pelo Fórum Econômico Mundial, que classifica os países pela competitividade na arena global, o Brasil figura em 71.º lugar entre 141 economias, abaixo da Rússia, Índia, China e África do Sul, seus parceiros no Brics, grupo que reúne os principais mercados emergentes.

Os números são implacáveis e falam por si. Produzidos a partir de uma série de indicadores e de milhares de entrevistas realizadas com autoridades, pesquisadores e representantes de organizações de apoio ao empreendedorismo, eles mostram de forma cristalina o tamanho da tarefa que o País tem pela frente para se tornar mais acolhedor para a iniciativa privada.

Burocracia excessiva ainda é um dos grandes entraves para o desenvolvimento dos empreendedores
Burocracia excessiva ainda é um dos grandes entraves para o desenvolvimento dos empreendedores. Adobe Stock

Nesta reportagem do jornalista José Fucs, a quarta da série Agenda Estadão, dedicada à discussão dos grandes desafios que se apresentam para o próximo presidente da República, o jornal aborda a importância do estímulo ao empreendedorismo e da melhoria do ambiente de negócios para alavancar o crescimento econômico, a inovação, o aumento de produtividade e o emprego.

Quem já tentou abrir o próprio empreendimento ou já toca a sua empresa sabe bem o que isso significa. Ter um negócio no Brasil é uma corrida de obstáculos que deixa muitos empreendedores pelo caminho, sufocados pela burocracia, pela alta carga tributária, pela complexidade fiscal, pelas obrigações trabalhistas, pela regulação excessiva, pela dificuldade de acesso ao crédito e pela infraestrutura deficiente. Mesmo quem consegue superar a tormenta e se consolidar no mercado acaba sofrendo mais do que deveria para ganhar musculatura.

“O nosso ambiente de negócios continua a ser um dos piores do mundo”, afirma Camilla Junqueira, diretora-geral da Endeavor Brasil, uma organização de apoio ao empreendedorismo de alto impacto, que tem como pilares a tecnologia e a inovação. “No Brasil, o empreendedor – do pipoqueiro de rua ao dono da indústria que fornece o milho para a pipoca – é penalizado, em vez de ser estimulado”, diz o cientista político Bruno Garschagen, autor do livro Pare de Acreditar no governo (Ed. Record), entre outras obras.

Novos tempos

Com a transformação digital, que já estava em curso e foi acelerada pela pandemia, e as mudanças ocorridas nas relações de trabalho, impulsionadas pela flexibilização da legislação trabalhista, milhões de trabalhadores estão se reinventando para se adaptar aos novos tempos e garantir o próprio sustento e o de suas famílias.

Na nova era, o empreendedorismo deverá ter um papel ainda mais relevante para o desenvolvimento e para geração de renda. Diz Carlos Melles, presidente nacional do Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas): “Entendo que o futuro do trabalho está na liberdade do cidadão empreender, ser independente, patrão de si mesmo”.

O futuro, na verdade, está se tornando presente em ritmo acelerado. Apesar do ambiente hostil, a criação de novas empresas no País está batendo recorde atrás de recorde. Só no ano passado, foram mais de 4 milhões de novos empreendimentos, segundo dados da Secretaria da Receita Federal, dos quais 3,1 milhões (78%) se constituíram como microempreendedores individuais (MEIs), com faturamento de até R$ 81 mil por ano, e 682,7 mil se registraram como microempresas, com receita anual de até R$ 360 mil. Hoje, os negócios de pequeno porte já respondem por 30% do PIB (Produto Interno Bruto) e por mais da metade de todos empregos com carteira assinada.

O problema é que muitos dos novos negócios desaparecem do mapa ainda na infância. Segundo levantamento realizado pelo Sebrae, 29% dos MEIs, 21,6% das microempresas e 17% das empresas de pequeno porte morrem até o quinto ano de vida. “A gente está muito aquém do nosso potencial”, diz Camilla.

Formalização

Nos últimos 15 anos, o Brasil até implementou medidas importantes para melhorar o cenário e permitir que os novos negócios floresçam, ainda que isso não tenha alterado a percepção dos empreendedores nem provocado um grande salto na posição do País nos rankings internacionais.

O Simples, criado em 1996 e aperfeiçoado em 2007, promoveu a redução e a simplificação dos tributos para os negócios de menor porte. A Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas, aprovada em 2006, reforçou o tratamento diferenciado, garantindo, entre outras coisas, uma reserva de mercado nas compras governamentais.

Em 2009, a criação da categoria de microempreendedor individual favoreceu a formalização de milhões de pessoas que trabalhavam por conta própria sem registro, ao desburocratizar a criação e a gestão dos novos negócios. Hoje, conforme dados da Receita Federal, são 14 milhões de empreendedores registrados como MEIs, que representam 71% do total de 19,6 milhões de empresas em atividade no País.

Pendências

No governo Temer, o Congresso aprovou também a possibilidade de um empreendimento receber recursos de um “investidor anjo” – uma pessoa física que injeta capital próprio em negócios de terceiros – sem que tenha de deixar o Simples. Outra medida positiva foi a isenção dos investidores de responsabilidade por eventuais pendências legais das empresas, como dívidas tributárias e trabalhistas. Agora, o risco dos investidores é só o de as empresas não darem certo, o que ampliou a segurança jurídica para quem quer apostar no sucesso de um novo negócio.

Mais recentemente, em 2019, houve a aprovação da Lei da Liberdade Econômica, que dispensou as atividades de baixo risco de qualquer tipo de licença, autorização e alvará. A nova lei também determinou que todos os órgãos públicos fixem prazos máximos para atender os empreendedores e, em caso de não cumprimento dos mesmos, a autorização agora é automática. Além disso, com a chamada Lei dos Cartórios, que prevê a digitalização dos sistemas de registros públicos, o empreendedor poderá resolver muitos problemas sem sair de seu estabelecimento.

Por fim, houve uma acentuada digitalização dos serviços governamentais. O Brasil é, hoje, o líder em governo digital nas Américas e o 7.º colocado no mundo, entre 198 países, de acordo com o Govtech Maturity Index, do Banco Mundial, à frente dos Estados Unidos, do Canadá e da Noruega.

Com o avanço da digitalização, o tempo médio para abertura de empresas diminuiu de forma significativa, para um dia e 16 horas, segundo o Ministério da Economia. “É papel do governo fazer com que as regras sejam mais simples e acessíveis para todos”, afirma Paulo Uebel, ex-secretário Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital e ex-secretário municipal de Gestão de São Paulo.

Complexidade

Na avaliação de Uebel, tudo isso deverá melhorar a posição do País nos rankings globais e a percepção de empreendedores em relação às condições para o desenvolvimento de seus negócios. “O Brasil tem avançado em algumas reformas microeconômicas importantes, que tornam o ambiente de negócios menos oneroso, menos árido”, diz. “Mas entre as reformas serem aprovadas, começarem a surtir efeito e serem percebidas pelos empreendedores e capturadas pelos rankings leva dois ou três anos.”

Falta, de qualquer forma, aprovar as grandes reformas para que a situação melhore para valer. A mais impactante, segundo dez entre dez analistas, é a reforma tributária, não apenas pela carga excessiva que incide sobre as empresas, mas também pela complexidade do sistema atual.

De acordo com o Doing Business, o Brasil é o país em que as empresas mais perdem tempo para fazer a gestão de tributos. Considerando a organização dos documentos, o preenchimento das declarações e os pagamentos, são perdidas de 1.483 a 1.501 horas por ano só para isso.

“Não existe nenhum empreendedor que não reclame da complexidade que é navegar pelo sistema tributário brasileiro”, afirma Camilla, da Endeavor. “Talvez, isso não esteja barrando os empreendedores de começar um negócio, mas com certeza está impedindo que eles consigam crescer mais rapidamente e com um custo muito menor.”

Parentes

Embora Melles, do Sebrae, diga que “a reforma tributária na micro e na pequena empresa já foi feita”, com a criação do Simples e do MEI, o sistema ainda penaliza duramente os negócios que amadureceram e ganharam corpo.

“O MEI e as micro e pequenas empresas têm um regime mais acessível, mas, quando se tornam negócios de médio e grande portes, a burocracia e o custo crescem de forma desproporcional”, afirma Uebel. “Para os empreendedores quererem crescer, sem ter de recorrer a vários CNPJs nem ter de colocar as empresas em nome de parentes, a gente precisa simplificar a transição do Simples para o modelo mais complexo. A mudança de fase não pode ser algo tão desproporcional, a ponto de as pessoas não quererem crescer.”

É preciso, ainda, em sua visão, reduzir o custo da folha de pagamento, que representa, com os encargos sociais, um gasto equivalente a quase duas vezes os salários dos trabalhadores. Outro ponto fundamental é a ampliação do acesso ao crédito e do sistema de garantias. Mesmo que também tenham ocorrido melhoras nesta área, os empreendedores, em especial os de menor porte, ainda enfrentam muitas dificuldades para conseguir financiamento por um custo que não sufoque o crescimento de seus negócios. “Nunca tivemos o volume de empréstimos para micro e pequenas empresas que temos hoje, em torno de R$ 350 bilhões, mas precisamos dobrar isso”, diz Melles.

Para que os efeitos da Lei de Liberdade Econômica sejam sentidos em toda a sua extensão, todos os Estados e municípios têm de aprovar leis específicas, que regulamentem a sua aplicação, e liberar os empreendedores do pagamento de taxas que limitam o acesso à formalização.

Mesmo com a criação do MEI, ainda há cerca de 20 milhões de trabalhadores por conta própria sem CNPJ, segundo o Ibre (Instituto Brasileiro de Economia), ligado à FGV (Fundação Getulio Vargas). “A informalidade é a maior evidência de que o Estado falhou, ao não fazer regras que atingissem toda a população”, afirma Uebel.

Como se pode observar, o próximo governo, eleito em outubro, terá de fazer uma lição de casa pesada para garantir condições mais favoráveis aos empreendedores. Sem acelerar a agenda de simplificação e desburocratização, o País estará condenado a se manter como um dos lugares mais inóspitos do planeta para os negócios. •