Quarto maior exportador de produtos agropecuários do planeta, atrás apenas da União Europeia, dos Estados Unidos e da China, o Brasil tem uma questão a enfrentar: fazer do setor, fonte de quase 30% de seu Produto Interno Bruto (PIB), também um vetor da preservação de seus biomas, como a Amazônia e o Cerrado. Transformar em ações concretas a consciência de que em pé a floresta vale mais do que a madeira derrubada e o solo transformado em pasto é o desafio para a agricultura brasileira manter e ganhar novos mercados, cada vez mais pressionados a barrar commodities que não tenham suas origens comprovadamente rastreáveis e ambientalmente responsáveis. O tamanho das dificuldades do País nesse caminho varia de acordo com para qual agro se olha. Eles são muitos e heterogêneos.
A distribuição das mais de 5 milhões de propriedades agrícolas brasileiras vai desde as mais mecanizadas empresas rurais a áreas de baixíssima produtividade sem acesso a auxílio tecnológico. Nesta reportagem do jornalista Emilio Sant’Anna, o Estadão mostra que, enquanto em algumas regiões a consolidação de um modelo de produção ambientalmente responsável resulta de quase meio século de desenvolvimento impulsionado pela modernização do campo – que emprega um em cada três trabalhadores brasileiros –, em outras ainda impera o primarismo e a falta de respeito às leis ambientais, como o Código Florestal.
As saídas, de acordo com especialistas ouvidos pelo Estadão, estão na ampliação do acesso a auxílio tecnológico, implantação de técnicas sustentáveis de produção por uma ampla gama de agricultores, políticas públicas que destravem mecanismos de remuneração por serviços ambientais e o desenvolvimento das cadeias sociobioeconômicas com alto potencial de agregar valor aos produtos agrícolas. Um caminho que parece longo, dizem os técnicos, mas que poucos países têm tanto potencial para realizar como o Brasil.
Para o biólogo Roberto Waack, presidente do conselho do Instituto Arapyaú, membro e um dos idealizadores do grupo Uma Concertação pela Amazônia – que reúne mais de 400 empresários, economistas, pesquisadores e sociedade civil –, há um processo de “contaminação” da imagem do agro consciente pela cadeia da ilegalidade que se instalou no campo. “Dentro dessa heterogeneidade, há dois polos: o que está na fronteira tecnológica e uma parte que está associada ao crime, e nem vou chamar de agro, mas não dá para fechar os olhos para isso”, afirma. “O que me parece mais crítico é que a voz desse agro moderno fica aquém do que poderia ser.”
É nesse cenário que as fronteiras agrícolas se expandem e avançam sobre a floresta. Entre agosto do ano passado e julho deste ano, por exemplo, 8.590 km² de devastação da Amazônia foram registrados pelo Deter, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que mede o impacto em tempo real. Este é o terceiro índice mais alto da série histórica iniciada em 2015.
“O que a gente chama de agro precisa ter uma separação, há uma diferença brutal de acesso à tecnologia. Algumas universidades americanas têm para a pesquisa na área duas, três vezes o orçamento total da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária)”, diz Marcello Britto, coordenador da Academia Global do Agronegócio da Fundação Dom Cabral e membro da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. “Dentro da porteira está 7% da geração direta do PIB, mas são cerca de 25 mil propriedades responsáveis por 50% da produção e 5 milhões responsáveis pelos outros 50%.”
É como um espelho da própria sociedade brasileira e suas contradições. Algumas delas se traduzem em números que dão a dimensão do nó da ilegalidade. O País tem mais de 29 milhões de hectares registrados no Cadastro Ambiental Rural (CAR) em sobreposição a áreas protegidas, de acordo com levantamento da Climate Policy Initiative (CPI) e PUC-RJ. Dados do Serviço Florestal Brasileiro mostram que são 6.775 cadastros sobrepostos a Terras Indígenas homologadas pela União, e estimam de 8 mil a 10 mil cadastros sobrepostos às que aguardam homologação.
“Somos frontalmente contrários a essa ilegalidade. Temos que combater e compreender como essa ilegalidade chegou até ali”, diz Nélson Ananias, coordenador de Sustentabilidade da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), órgão que reúne associações e lideranças políticas e rurais em todo o País. “Precisamos entender como fazer para que esses produtores venham para a legalidade. Muitas vezes, ele está ali por falta de acesso à regularização fundiária, de financiamento e de assistência técnica.”
Em outras palavras: políticas públicas. “São populações abandonadas, uma situação que precisa da ampla disseminação de programas de assistência técnica”, afirma Waack.
VETO
Cresce a pressão em mercados internacionais para banir a compra de commodities ambiental e socialmente com sua origem não rastreável. O mais recente aceno a esse futuro próximo veio neste mês do Parlamento Europeu com a aprovação por ampla maioria de projeto que veta a importação de produtos agrícolas que resultem do desmatamento e da violação dos direitos de povos indígenas. Fazem parte dessa lista: carne bovina, soja, café, cacau, madeira e óleo de palma. No entanto, ainda devem ser adicionados: produtos de papel, milho, carne suína, caprinos, ovinos, borracha e carvão. A aprovação da lei precisa agora ser ratificada pelos 27 países-membros do bloco.
A medida deve se somar à trava que emperra o acordo Mercosul-União Europeia. Liderado pela França, o bloco barrou a implementação com críticas à política ambiental brasileira nos últimos anos. Para os franceses, o tratado não deve andar sem garantias de que o Brasil cumprirá o Acordo de Paris, que tenta frear o aquecimento global em 1,5º acima do nível anterior à Revolução Industrial. O País se comprometeu durante a última COP, em Glasgow, no Reino Unido, a cortar 50% de suas emissões de dióxido de carbono (CO2), principal gás gerador do efeito estufa, até 2030. O dado mais recente mostra que mesmo no primeiro ano da pandemia, 2020, o Brasil foi na contramão do mundo e aumentou suas emissões em 9,5%.
Mais uma vez, o papel do agro aqui é fundamental. Sem ter a mesma geração de gases poluidores dos grandes centros urbanos, são as mudanças nas características e uso do solo e a agropecuária os dois principais fatores de emissões do País. Estão na Amazônia oito das dez cidades com os maiores níveis de despejo na atmosfera de CO2 do Brasil.
“Vamos ser pressionados a empregar cada vez mais tecnologias (no setor agropecuário) porque somos um player internacional e não há como atingir 1,5º com o nível de desmatamento que o Brasil entrega ao mundo”, afirma Waack.
A adoção de políticas públicas, como regularização da remuneração por serviços ambientais que ajudem a preservar a florestas anda no Brasil a passos lentos. A regulamentação da compra e venda de créditos de carbono, por exemplo, deu seu primeiro passo apenas neste ano, mesmo sendo medida prevista desde o Acordo de Paris, em 2015.
Mas e como fica o agricultor em meio ao avanço das cobranças do mercado? Em primeiro lugar, explica Britto, não se trata de criminalizar o produtor que está à margem desse processo e sim de compreender o caminho que foi construído até aqui e como ele deve mudar. “Quem vem produzindo nos últimos 30, 40 anos vem fazendo isso tendo em mente que está fazendo o melhor”, diz. “Estamos vendo uma transição das lideranças de produção com pessoas de menos de 40 anos.”
Com essa transição vem também uma mudança no perfil do negócio. “Quando falamos em tecnologia no agro, as pessoas olham como se fosse o emprego de grandes máquinas na agricultura, as colheitadeiras enormes e modernas, o agro 4.0”, afirma o coordenador de Sustentabilidade da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). “É isso também, mas não só. Muitas vezes, são tecnologias mais simples como ensinar a não usar o fogo, o plantio direto, as curvas de nível (para a manutenção do solo), o calcário (que evita que o pasto seja exaurido e o avanço do gado para novas áreas). São tecnologias mais simples e acessíveis.”
Mais do que uma questão a enfrentar, a aproximação das agendas do agronegócio e da sustentabilidade no Brasil parece ser, na verdade, uma oportunidade a aproveitar. Oportunidade que poucos países no mundo têm com tamanho potencial de ganhos econômicos e preservação ambiental. “Estamos diante de mais um ciclo de alta mundial nas commodities”, afirma Britto. “Espero que quando voltar ao normal, já tenhamos feito essa transição.” •