O paraninfo da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco escreveu em sua Oração aos Moços: “Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade”. Um século depois o texto de Ruy Barbosa continua atual.
No Brasil, uma sentença de primeira instância leva 1.606 dias para sair. Na Itália, 564 dias. No Reino Unido, 350 dias, e 160 dias na Noruega. E o País tem, em proporção da população, um Judiciário quatro vezes maior do que o da Alemanha e oito vezes maior do que o do Reino Unido. É o que mostram os dados da Comissão Europeia para a Eficiência na Justiça (CEPEJ), do Banco Mundial e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Todo ano o CNJ publica seu relatório, Justiça em Números. Ali é possível ver onde está o gargalo principal da morosidade processual no País. É nas execuções fiscais, os casos que envolvem o Erário, onde a Justiça não é Justiça. Ali a magistratura demora em média 5 anos e 1 mês para uma decisão de primeira instância. “O maior beneficiário da morosidade judicial é o Estado, que é o maior litigante e o maior réu nas ações”, afirma a presidente da Seção São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, Patrícia Vanzolini.
Nas ações coletivas, então, a demora se transforma em menosprezo à cidadania, como nos processos envolvendo os correntistas de bancos lesados em planos econômicos, que levaram 27 anos para serem decididos. “De cada dez pessoas que ficaram esperando quase 30 anos pela decisão, oito morreram antes disso ocorrer”, diz o advogado Walter Moura, que representava no caso o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec).
Em comparação com a Justiça criminal em São Paulo, o tempo de um processo de execução fiscal parece uma eternidade. Recentemente, contou à reportagem o desembargador Guilherme de Souza Nucci, da Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, julgou-se o caso de um criminoso preso havia três meses. Ou seja, do flagrante à conclusão do processo em 2.ª instância, a Justiça se manifestou a tempo de ser percebida como Justiça. Mesmo ali é possível encontrar processos, como o do massacre da Casa de Detenção, ocorrido há 30 anos. Desde então, o caso espera pela palavra final do Poder Judiciário.
O que deve, então, ser feito pelos legisladores e pelos operadores do Direito para que o exemplo citado por Nucci, especialista em Direito Processual Penal e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), se tornasse regra e não exceção no Brasil, onde uma sentença na Justiça comum, em primeira instância, costuma demorar 2 anos e 1 mês? Nesta reportagem do jornalista Marcelo Godoy, a oitava da série Agenda Estadão, dedicada à discussão dos grandes desafios que se apresentam ao presidente que vencer a eleição em outubro, o jornal aborda a importância de uma Justiça eficiente e confiável para o desenvolvimento da Nação e o bem comum da República.
MEDIDAS
Para o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Sarrubbo, três medidas são fundamentais para recuperar a credibilidade da Justiça diante dos cidadãos: apostar na Justiça consensual, criar um sistema de precedentes e o trânsito em julgado na 2.ª instância. A primeira delas, a Justiça consensual.
“A pessoa só deve ir para o Judiciário em última instância. O promotor deve poder propor para você, se tiver inquérito e processo, uma pena de 5 anos e 4 meses, porque você é primário. Vamos ficar com 4 anos, 3 anos e meio e você cumpre um ano e sai julgado e começa a cumprir a pena.” Para ele, isso seria melhor do que fazer audiência, um custo para a Justiça e à sociedade. “A Justiça passa a ser rápida e vai discutir o que é duvidoso.”
Para ele, o ganho seria ainda maior com a criação de um sistema de precedentes. Atualmente, as Justiças estaduais e os Ministério Públicos podem recorrer aos tribunais superiores mesmo quando há matérias pacificadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou pelo Supremo Tribunal Federal (STF). “Em todos os Estados do Brasil a gente continua recorrendo. Eles disseram A e a gente continua dizendo B. A gente recorre mesmo sabendo que vai perder.” De acordo com Sarrubbo, isso vai travando o sistema de justiça, criando a sensação de injustiça.
“Precisamos de uma reforma processual que dissesse: o processo acabará na segunda instância e qualquer recurso que vá para tribunais superiores será considerado recurso rescisório. Ao mesmo tempo, é importante e obrigatório que se crie o sistema de precedentes para que o Tribunal de Justiça não possa decidir contrariamente ao entendimento do STJ e do STF. Se a gente tiver esses dois mecanismos, a prestação jurisdicional será muito mais rápida e eficiente.”
Atualmente, o Judiciário gasta no Brasil mais de R$ 100 bilhões por ano, dos quais R$ 92,7 bilhões são direcionados para cobrir despesas com pessoal. Ao todo, existem 17.988 magistrados no País (um juiz para cada 8,5 habitantes), número que poderia ser maior, pois existem 4.707 cargos de juízes vagos no Brasil. E, assim, cada um dos magistrados teve de cuidar em 2021, em média, de 6.321 processos. A taxa de conciliação no Judiciário brasileiro é de apenas 15,8% e isso mesmo após alterações recentes feitas no Código de Processo Civil que deviam aumentar as soluções consensuais.
RAPIDEZ
Parte das mudanças defendidas por Sarrubbo está nos planos do procurador Roberto Livianu, do Instituto Não Aceito Corrupção. Para ele, a prisão após a condenação em segundo grau é “um dado relevante”. “Todo mundo ocidental democrático prende após condenação em primeiro ou em segundo grau.”
Livianu pensa ser uma das formas de tornar o processo célere a fim de desafogar o Judiciário. O outro caminho passa por reduzir a quantidade de processos que chegam à Justiça. Nesse ponto, a criminalista Vanzolini, presidente da Seção paulista da OAB, concorda com o procurador Sarrubbo.
Para ela, o sistema penal não dá conta de tudo. Ao tentar julgar o furto de margarina, deixa de apreciar casos graves, como os de lavagem de dinheiro. “Isso deixa uma sensação de impunidade. A Justiça não pode cuidar de bagatelas.”
Ou seja, esses casos deveriam ter uma solução extrajudicial. Ela também acredita que as hipóteses de acordos penais devem aumentar – hoje elas envolvem delitos de médio potencial ofensivo. Enquanto isso não ocorre, é preciso usar os mecanismos já existentes.
O desembargador Nucci lembra que isso só poderia acontecer se os acordos avançassem sobre os crimes mais graves. “Hoje 50% dos casos julgados no tribunal são de tráfico de drogas.”
Ele lembra as principais causas de congestionamento na área criminal dos tribunais superiores. “Há duas avalanches: HC (habeas corpus) ganha disparado e em segundo grau é agravo em execução penal. Esses são os gargalos que estrangulam a Justiça criminal. Não tem o que fazer, pois o HC é matéria constitucional e os tribunais recebem o HC”.
REFORMA
Alguns dos especialistas vão além da reforma dos códigos de processos e enxergam na alteração da composição das cortes outro caminho para aumentar a eficiência do sistema. Livianu é um deles. Para ele, seria necessário obrigar que metade das 11 vagas do STF fosse reservada a magistrados de carreira – hoje apenas dois ocupam cadeiras no Supremo. Além disso, ele acredita que a adoção do modelo alemão, que prevê mandato fixo de dez anos para os ministros, garantiria o arejamento da Corte Constitucional.
Professor emérito da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP, o ex-chanceler Celso Lafer também advoga pela reforma do Judiciário. Para ele, uma Justiça eficiente que atenda a população é uma aspiração natural de quem defende o estado democrático de direito. O jurista mencionou as preocupações que envolvem a quantidade de recursos existentes e a facilidade da judicialização, ligados ao baixo custo da sucumbência – a obrigação de quem perde em pagar as custas processuais.
Lafer listou temas importantes para serem tratados pelos legisladores. “Audiências de conciliação na área penal têm papel significativo, assim como toda temática de direitos humanos e o custo de conformidade que é exigido para o cumprimento da legislação tributária, que é uma das dimensões da reforma tributária que está ligada ao judiciário.”
Aí entram as execuções fiscais. O relatório do CNJ reconhece que elas têm sido apontadas como o principal fator de morosidade do Judiciário. Segundo o documento, o processo de execução fiscal chega à Justiça após as tentativas de recuperação do crédito tributário se frustrarem na via administrativa, provocando sua inscrição na dívida ativa. Dessa forma, a Justiça repete etapas e providências de localização do devedor ou patrimônio já adotadas, sem sucesso, pela administração fazendária ou pelo conselho de fiscalização.
As execuções representam, incluindo as de cunho tributário, 36% do total de casos pendentes na Justiça e um congestionamento de 87% (dados de 2020 publicados em 2021).
Parte desses processos, segundo o relatório, fica suspensa pela falta de localização de patrimônio do devedor capaz de garantir as dívidas. Para a OAB, a situação de descompasso entre a necessidade de arrecadação e a morosidade do Judiciário tem criado no meio jurídico a discussão de métodos alternativos de solução de conflitos entre Fisco e contribuinte.
Institutos como a transação tributária têm ganhado força especialmente em proposições da Procuradoria da Fazenda Nacional com três modalidades de transação: a individual ou por adesão do contencioso tributário ou de pequeno valor. Outra alternativa de acordo entre o Estado e contribuinte fora do Judiciário é a possibilidade de ser instituída a Arbitragem Tributária. Mas a situação é pior no pagamento de precatórios. Para a OAB, o quadro é trágico, pois “as pessoas morrem sem receber seu crédito e precisando de dinheiro”.
Outro ponto importante, segundo os especialistas, seria aumentar o poder de agências reguladoras do governo. O desembargador Nucci é dos que consideram ser relevante agilizar ações coletivas. “Ninguém aguenta mais falar na Justiça ou dizer ‘vou na Justiça’. Você não vai conseguir nada. E vai mofar na Justiça, infelizmente essa é a realidade brasileira.” •