Estadao
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Da redação do Estadão
23/09/2022 | 05h00

É crucial a busca por uma reforma administrativa que reduza a fatia do Produto Interno Bruto gasta com a manutenção do funcionalismo no Brasil. Essa necessidade assume contornos ainda mais urgentes diante do atual quadro social, com piora dramática acentuada pela prolongada epidemia de covid-19.

A manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600 ao longo de 2023 custará aos cofres públicos estimados R$ 157,7 bilhões, valor quatro vezes maior que o investido em 2019 com o extinto Bolsa Família. Ao mesmo tempo, o aumento de 18% nos salários dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e de todos os demais juízes terá um impacto imediato estimado de ao menos R$ 4,6 bilhões aos cofres da União até 2024.

Segundo o STF, somente no próximo ano o reajuste vai custar R$ 1,9 bilhão, somando as despesas geradas pela correção salarial de magistrados e também de servidores do Judiciário no período de nove meses, uma vez que o aumento só será pago a partir de abril de 2023. Já aprovada pela Corte, essa alta puxa para cima o teto do funcionalismo em todo o País, o que torna a função de enxugar o Estado ainda mais desafiadora.

Atualmente, cerca de 40 mil funcionários públicos trabalham nos prédios da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer
Atualmente, cerca de 40 mil funcionários públicos trabalham nos prédios da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer. WILTON JUNIOR/ESTADÃO

O Estadão destacou os jornalistas Adriana Ferraz e João Scheller para produzir esta reportagem que tem como intuito situar o leitor sobre a importância de se enfrentar o corporativismo público para promover um corte de despesas que, acima de tudo, não prejudique ainda mais a qualidade e a quantidade dos serviços ofertados ao cidadão.

É quase que unânime entre especialistas em finanças públicas que a raiz do problema não está necessariamente na quantidade de servidores, mas na remuneração inicial oferecida a eles e na forma como se conduz a máquina, repleta de burocracia e entraves para sua modernização e avaliação constantes.

O funcionalismo federal terá ao final de 2022 o menor patamar de gasto com pessoal em 26 anos: 3,4% do Produto Interno Bruto, segundo dados do Ministério da Economia. Entre 2017 e 2020, essa proporção foi de 4,2%. Em junho, havia cerca de 570 mil funcionários públicos federais na ativa, contra 630 mil em 2019.

Quando a conta inclui Estados e municípios, no entanto, a régua sobe novamente, alcançando 13,4% do PIB e a sétima posição entre os países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Nesse quesito, o Brasil está à frente de países com ampla participação do Estado no dia a dia dos cidadãos, como Suécia (12,7%), França (12,1%), Itália (9,5%), Reino Unido (9%) e Alemanha (7,5%). A média de gastos é de 9,9% do PIB.

Esses dados são indícios claros de uma distorção, mas, segundo alguns estudiosos, não podem ser tomados com uma condenação definitiva do inchaço da máquina estatal brasileira. José Luiz Portella, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), sugere uma comparação que leve em conta as características de cada país: “Os Estados Unidos não têm um Sistema Único de Saúde (SUS). Então, é claro que vai ter menos funcionários e gasto menor”. Portella foca na quantidade e na qualidade dos serviços ofertados à população: “Hoje, o maior problema do funcionalismo são os super salários e a qualidade do serviço entregue”. Portella defende a implementação de metas de produtividade na administração pública como forma de aumentar a qualidade e quantidade dos serviços.

Seu colega João Rogério Sanson, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), especialista em Economia do setor público, prefere uma análise do problema que não despreze o efeito da diferença de renda per capita, pois esse fosso se revela também na qualidade do serviço público: “Com os mesmos 5% do PIB (em gasto com serviços públicos) você consegue muito mais dinheiro por pessoa nos países ricos”.

EFICIÊNCIA

No artigo A reforma do RH do Governo Federal, assinado pelos economistas Ana Carla Abrão e Arminio Fraga e pelo doutor em Direito Público Carlos Ari Sundfeld, a necessidade de se aumentar a produtividade no Brasil – nas esferas público e privada – se soma a outros dois fatores que justificam uma reforma administrativa: a busca pela melhora dos serviços públicos e a racionalização dos gastos obrigatórios, como os de pessoal.

“Serviços públicos, como educação, saúde e segurança, são atividades intensivas em mão de obra. Essa mão de obra precisa estar motivada, capacitada, adequadamente remunerada e com condições de trabalho que lhes permitam prestar um bom serviço. O foco é o resultado. Mas são os instrumentos e o modelo de incentivos que geram um resultado melhor ou pior. Mais, são eles que determinam também se os resultados serão atingidos com maior ou menor eficiência”, afirmam em publicação da consultoria Oliver Wyman.

O economista Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), inclui nessa receita uma revisão dos altos salários pagos, especialmente, na esfera federal. “O Brasil gasta um pouco menos com servidores do que a média dos países desenvolvidos, por exemplo, mas alguns setores se sobressaem desse padrão. É o caso do Judiciário, que paga, em média, três vezes mais com esse setor em comparação com o restante do mundo”, afirma.

Se o aumento proposto para os salários dos ministros do STF for aprovado pelo Congresso Nacional, o valor pago aos 11 juízes da Corte passará dos atuais R$ 39 mil para R$ 46,3 mil – um acréscimo de R$ 910 mil aos cofres da União somente no ano que vem.

Por sua vez, o mesmo Supremo suspendeu a lei que criou o piso salarial dos profissionais de enfermagem até que sejam analisados os impactos da medida na qualidade dos serviços de saúde e no orçamento de municípios e Estados. O piso fixado para os profissionais pelo Congresso foi de R$ 4,7 mil – ou cerca de 10% do salário corrigido de um ministro do STF.

De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a média salarial no Poder Judiciário, que inclui magistrados e servidores, é a maior dos Três Poderes. Na esfera estadual, os integrantes do Judiciário ganham, na média, R$ 10,2 mil, mais do que o dobro do observado no Poder Executivo (R$ 4,8 mil). Já no âmbito federal, a diferença é menor, ainda com juízes e servidores em vantagem, com ganhos médios de R$ 15,3 mil, ante R$ 9,4 mil no Executivo.

ESTABILIDADE

Além das discrepâncias salariais pagas aos servidores brasileiros de acordo com sua posição na pirâmide de hierarquia, o grau de estabilidade assegurado a eles também é citado por especialistas como um fator que merece ser revisado em uma possível reforma administrativa.

“Você tem um trade-off (troca) entre estabilidade e salários no resto do mundo. Ou seja, você pode ir para o setor privado e ganhar mais, mas aí você tem que suar mais a camisa. Enquanto isso, no setor público você tem uma maior estabilidade, uma maior tranquilidade e, com isso, salários menores com relação ao setor privado. No Brasil, essa relação não acontece, pelo contrário”, explica Duque.

A estabilidade do servidor é assegurada no artigo 39 da Constituição Federal e parte do princípio, difundido em todo mundo, de que o funcionário público deve ter a necessária autonomia para exercer o seu trabalho sem que pressões políticas possam afastá-lo dessa função.

Em outras democracias, no entanto, a extensão dessa estabilidade tem limites. No Reino Unido, por exemplo, há flexibilidade maior para dispensas por falta grave ou baixo desempenho. A cobrança por resultado, aliás, é uma característica presente também no serviço público da Holanda, onde pode-se demitir em casos de baixa performance, afastamentos constantes, falta grave e incapacidade de realizar as tarefas esperadas.

Além de não prever as mesmas possibilidades de desligamento, a legislação brasileira ainda acabou por incorporar ao longo dos anos um conjunto de normas e processos que geraram incentivos errados, distorções e desvios. Características que fazem com que, ao final, a máquina atue em seu próprio benefício e não em favor do cidadão, mencionam Ana Carla Abrão, Arminio Fraga e Carlos Ari Sundfeld. Nessa categoria se encontram adicionais salariais, progressões automáticas, avaliações de performance que não diferenciam os bons dos maus servidores e, finalmente, benefícios injustificáveis, tais como salário-esposa, promoção post mortem e pagamento de bônus de performance para inativos.

No início do mês, os ministros do STF, por unanimidade, negaram férias de 60 dias a advogados da União, com o pagamento do respectivo adicional de um terço da remuneração e valores correspondentes aos períodos não gozados. Antes, a Corte já havia estabelecido que procuradores federais e procuradores da Fazenda Nacional tinham direito a 30 dias de férias. Assim, “não haveria fundamento lógico e jurídico” para dar 60 dias de férias aos advogados da União, já que todos integram as carreiras da AGU.

À luz do melhor interesse público, o Estadão, inclusive, alertou que o STF pode ir além. “Como guardião da Constituição, o STF fará ainda melhor no dia que estender esse entendimento a todas as categorias profissionais do serviço público, nos Três Poderes, sem distinções. Afinal, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, viga mestra do regime republicano, não se coaduna em hipótese alguma com a existência de castas nem privilégios de qualquer natureza, seja para indivíduos, seja para grupos”, dizia trecho do editorial “Privilégios são a antítese da República” do jornal.

LOBBY

José Luiz Portella, da USP, atribui ao lobby de diferentes setores do funcionalismo a dificuldade em se debater e aprovar uma reforma administrativa que possa de fato proporcionar resultados, como a redução de salários ou ao menos uma distribuição mais equilibrada. “Quanto mais detalhada for a reforma, mais resistência ela vai sofrer”, diz.

No início do governo Bolsonaro diversos modelos de reforma foram aventados e descartados até que, em setembro de 2020, um projeto fosse encaminhado ao Congresso. O texto previa, por exemplo, o fim da aposentadoria compulsória de servidores como modalidade de punição, a proibição de férias anuais com mais de 30 dias e a vedação de promoções ou progressões na carreira por tempo de serviço. Mas isso apenas para futuros servidores, desde que não sejam magistrados ou deputados – ambas as categorias foram poupadas.

Nem assim o texto avançou. Depois de passar pela comissão especial, segue parado na pauta. “O Brasil é muito bom em ter reformas que não significam nada basicamente”, afirma Duque. Para ele, uma reforma administrativa deveria principalmente rever o teto para os servidores, considerando os adicionais que são garantidos para alguns setores, e também a implementação de indicadores de produtividade. O professor Sanson, da UFSC, destaca a necessidade de modernização do setor público e de sua adequação com as novas realidades trazidas pela tecnologia. Afirma ele: “A crise da pandemia mostrou que podemos avançar muito na digitalização”. •