Estadao
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Da redação do Estadão
28/08/2022 | 05h00

O próximo presidente da República eleito receberá no primeiro dia do seu governo um Orçamento com pelo menos 93% das despesas carimbadas. Para cada R$ 100 de gastos previstos, R$ 93 já terão destino certo: o pagamento de despesas obrigatórias, como aposentadorias e salários de funcionários públicos.

Nesta reportagem de Adriana Fernandes, o Estadão mostra que o candidato que sair vitorioso nas eleições de outubro assume o cargo com uma “camisa de força” para fazer as políticas públicas e os investimentos prometidos durante a campanha eleitoral. Esse quadro, conhecido na linguagem dos economistas como “engessamento” orçamentário, faz com que, na prática, uma parcela muito pequena (7%) do orçamento anual do governo federal seja de fato votada pelos senadores e deputados.

Sobretudo em ano de eleição, Congresso Nacional aprova aumento de gastos
Sobretudo em ano de eleição, Congresso Nacional aprova aumento de gastos. Dida Sampaio/Estadão

A disputa entre Executivo e parlamentares sobre quem decide o destino das verbas acontece de fato nesse pequeno espaço, chamado tecnicamente de despesas discricionárias, destinadas ao custeio do funcionamento dos órgãos do governo e aos investimentos. Como as despesas obrigatórias aumentam automaticamente a cada ano, o espaço para essas despesas livres é a cada ano menor.

O quadro se agravou com a mudança de correlação de forças entre o Executivo e o Congresso na esteira da expansão das emendas parlamentares, o instrumento que senadores e deputados têm para participar da elaboração do orçamento anual. Boa parte delas passou a ter execução “impositiva”. Ou seja, têm que ser obrigatoriamente pagas pelo governo.

A criação e expansão das emendas de relator, que sustentam o orçamento secreto revelado pelo Estadão e que têm servido de moeda de troca para os interesses dos caciques do Congresso, também pioram o engessamento do Orçamento. Esse tipo de emenda, sem transparência das informações sobre a sua aplicação, acaba retirando dinheiro de outras áreas.

É o caso dos recursos de saúde, cujo piso constitucional passa a ser composto em 2023 com parte do orçamento secreto. Com as emendas parlamentares, os gastos ficam pulverizados sem que seja feito um planejamento geral.

Em 2022, o peso das despesas fora da “camisa de força” em relação aos gastos totais do Orçamento é de 6,3% (incluindo demais Poderes), de acordo com cálculos da economista Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado. Em 2021, foi de 7,7%. A pedido do Estadão, Vilma traçou a evolução recente, de 2008 a 2021, desses gastos que o governo tem mais liberdade para investir. Em 2010, eles bateram o pico com uma fatia de 18,3% das despesas totais do Orçamento.

De lá para cá, o cenário é de queda com a restrição imposta depois do teto de gastos, a âncora fiscal criada em 2016 que trava o crescimento das despesas à inflação. O objetivo do teto de forçar escolhas prioritárias do gasto não tem funcionado com os seguidos furos na regra aprovados pelo Congresso para aumentar as despesas.

“Quando olhamos a perspectiva histórica, tivemos uma piora nos últimos anos. É muito complicado conseguir trabalhar com um Orçamento tão engessado”, avalia a diretora da IFI. “O baixo peso das discricionárias tira um pouco de flexibilidade na hora de alocar recursos e definir o que será priorizado no processo orçamentário”, ressalta ela, que defende um olhar para a gestão do Orçamento com base no médio prazo, nos quatro anos do Plano Plurianual que foi deixado de lado.

AUTOMATISMO

A maior parte do engessamento do orçamento está relacionada ao pagamento das aposentadorias, pensões e benefícios sociais, como o BPC (para idosos e pessoas com deficiência) com correção atrelada ao salário mínimo. Logo depois vem o custo da folha de salários dos servidores públicos.

O pagamento dos benefícios da Previdência Social consumirá 45% do orçamento de R$ 1,7 trilhão de despesas. A reforma da Previdência conteve o ritmo veloz de expansão dos benefícios, mas não segura o seu crescimento com o envelhecimento da população brasileira.

Já a folha de pessoal e encargos representa 20% e será fonte de pressão no ano que vem com a demanda reprimida por reajuste salarial dos servidores depois do congelamento dos salários desde o início da pandemia da covid-19. Os números incluem as despesas de todos os Poderes, mas não consideram as transferências a Estados e municípios.

“É o automatismo do gasto”, destaca Fábio Pifano Pontes, subsecretário de Assuntos Fiscais do Ministério da Economia, que lida com as dificuldades da gestão do Orçamento com todas essas amarras. É uma referência ao caráter autônomo do crescimento dessas despesas obrigatórias, principalmente as previdenciárias.

O subsecretário alerta que a situação a cada ano piora e se pode chegar no limite com as despesas obrigatórias consumindo todo o espaço livre. “Não demora”, prevê. Em 2022, o gasto efetivamente de livre escolha do governo, sem as emendas, gira em torno de R$ 110 bilhões.

Segundo Pontes, esse automatismo vale tanto para a obrigação da despesa quanto para a vinculação de receitas a despesas. A fotografia mais recente (do terceiro bimestre deste ano) aponta que a vinculação alcançou 87%. Para Pontes, esse quadro gera muita ineficiência, já que garante recursos a políticas públicas, independentemente da avaliação quanto aos resultados. O maior problema é quando faltam recursos para uma área e o governo não pode usar receitas que estão carimbadas para fazer o remanejamento.

O resultado é que o governo tem que vender títulos para bancar as despesas com aumento da dívida pública e custo mais alto para o Tesouro Nacional. Um caso recente foi a falta de recursos para o programa Farmácia Popular.

ARTICULAÇÃO POLÍTICA

Se a saída para diminuir as amarras do orçamento é a articulação política no Congresso para aprovar mudanças, a estratégia não tem funcionado. O Congresso é refratário às alterações que são em geral percebidas como retiradas de direitos. É o caso da concessão do abono salarial, benefício de até um salário mínimo dado a quem ganha até dois pisos, política considerada ineficiente e dispendiosa até mesmo por setores da esquerda, mas cuja proposta de alteração não vai para frente para abrir espaço a outras despesas mais necessárias.

No Congresso, também não há espaço para avaliar a eficiência de gastos e corte de benefícios fiscais que poderiam ajudar no orçamento. Ao contrário, os parlamentares têm aprovado aumento de despesas.

O próprio presidente Jair Bolsonaro sintetizou essa situação ao falar a frase que ficou famosa de que “não iria tirar dos pobres para dar aos paupérrimos” para descartar o projeto do seu ministro da Economia, Paulo Guedes, de buscar o DDD orçamentário – desindexar, desvincular e desobrigar – com a aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para bancar a extensão do auxílio emergencial durante a pandemia da covid-19. Entre os “D”, a desindexação do Orçamento, como retirar a obrigatoriedade de corrigir benefícios pela regra do salário mínimo, por exemplo, é mais difícil de acontecer.

A ideia de Guedes não avançou e a PEC aprovada fixou um regra de difícil acionamento, que estabelece que quando a relação entre as despesas obrigatórias e as receitas da União atingirem o limite de 95% poderá entrar em cena uma série de restrições para controlar os gastos com funcionalismo público, como a proibição de reajustar salários e promoção de novos concursos. Essas restrições são conhecidas como “gatilhos”. Medida que se mostrou inócua para segurar os aumentos de gastos aprovados pelo Congresso que aconteceram, sobretudo, neste ano de eleições.

NA PONTA DO LÁPIS

Pesquisador do Insper especialista em contas públicas, Marcos Mendes fez a conta para mostrar na ponta do lápis que a rigidez orçamentária estaria muito pior se não tivesse havido desde 2017 contenção das despesas. Ele calcula que as despesas obrigatórias com o pagamento de benefícios previdenciários, BPC e folha de pessoal estariam R$ 157 bilhões maiores, caso tivessem crescido entre 2017-2022 à mesma taxa real que cresceram de 2010-2016.

Segundo Mendes, os fatores que determinaram o crescimento mais lento da despesa em relação à tendência de crescimento anterior foram o reajuste do salário mínimo apenas pela inflação a partir de 2017, a aprovação da reforma da Previdência em 2019 e o não reajuste dos salários do funcionalismo desde 2019.

Para Mendes, o governo Bolsonaro não fez as reformas necessárias num cenário de acirramento no Brasil que diminui o espaço para as mudanças. “Todas as reformas precisam de discussão, de maturação, conscientização. É bastante difícil (fazer), quando se entra numa polarização política”.

O pesquisador do Insper alerta para o agravamento do engessamento com as decisões do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF), que não têm responsabilidade pelo impacto dessas medidas para as finanças públicas. Numa pesquisa que fez há pouco, Mendes encontrou tramitando no Congresso 88 projetos que propõem fixação de piso de salários ligados a trabalhadores do setor público.

AUXÍLIO BRASIL

Um aumento forte das despesas obrigatórias já está contratado para o primeiro ano do próximo governo com a extensão do adicional de R$ 200 do benefício do Auxílio Brasil. O valor de R$ 600, que seria concedido até final de dezembro, vai ficar permanente, a depender dos dois candidatos à Presidência que lideram as pesquisas. O custo do programa sofrerá um aumento também com a inclusão de um número maior de famílias atendidas.

Ricardo Volpe, consultor da área de orçamento na Câmara, destaca ainda o crescimento das despesas via o reajuste salarial dos servidores. Se mantida uma correção de 18% para todo o funcionalismo federal, porcentual aprovado pelos ministros do STF para eles mesmos, o custo alcança mais de R$ 60 bilhões. “Tudo está sendo feito de uma forma dessincronizada”, critica. Na sua avaliação, a mudança no teto tem que ser feita de uma forma planejada. •