O Brasil chega à sua nona eleição presidencial direta desde a redemocratização com o desafio de aperfeiçoar as relações entre o Executivo e o Legislativo. Alianças em nome da governabilidade ganharam contornos pouco republicanos e em diversos exemplos conflitantes com a Constituição e os deveres dos Poderes. Nesta reportagem do jornalista Gustavo Queiroz, o Estadão mostra como, por muitas vezes, o poder de decisão acaba transferido da Presidência da República para os parlamentares e especialistas apontam caminhos que necessariamente precisarão ser debatidos com profundidade durante as eleições para uma efetiva reformulação deste arranjo institucional.
O consagrado presidencialismo de coalizão transfigurou-se no Brasil em presidencialismo ora de “colisão”, ora de “cooptação”. Isso ocorre em boa parte porque no Brasil há mais partidos registrados do que unidades federativas. São 32 legendas - 23 com representação no Congresso -, a maior parte sem contorno ideológico claro ou diretriz programática definida. Entidades que sobrevivem muitas vezes dos recursos do Estado e das relações fisiológicas em Brasília.
Entre a colisão e a cooptação, neste contexto de uma fragmentação partidária cada vez maior, o orçamento público acabou virando, ao longo dos anos, um instrumento de barganha política e não são raros os casos em que a distribuição de verbas corre na contramão da ordenação de prioridades previstas na carta constitucional, independentemente do governo.
Neste exemplo cristalino e atual da captura do Orçamento público pelo Legislativo, a estimativa é que as emendas do orçamento secreto, criado pelos parlamentares para repassar dinheiro a redutos eleitorais e revelado pelo Estadão, alcancem R$ 53 bilhões ao final deste ano. Somadas, as verbas totais empenhadas de 2021 para cá devem compor 24% do Orçamento federal.
O cenário atual reflete um histórico de pedágios pagos pelos presidentes para governar. Especialistas apontam que acordos são comuns em qualquer sistema de governo, mas que a dominância do Legislativo e a “sensação de ingovernabilidade” observada em Brasília nos últimos anos rompem com a tradição de poder do Executivo e levam a um “insulamento burocrático” – quando o Estado fica isolado e atende a interesses individuais em prejuízo das demandas da sociedade.
“A heterogeneidade de interesses num país continental, combinada com fragmentação partidária, federalismo e certas regras eleitorais, faz as decisões orçamentárias do Legislativo tenderem à satisfação de demandas locais. Nesse contexto, a falta de liderança do Executivo no decorrer do processo orçamentário traz riscos não desprezíveis. Prioridades mais amplas e projetos de caráter estratégico podem ser negligenciados”, atesta o senador José Serra (PSDB-SP).
Com a experiência de ter sido deputado federal constituinte em 1987 e acumulado ao longo da sua trajetória política os cargos de governador e prefeito de São Paulo, além de ministro do Planejamento, da Saúde e das Relações Exteriores nos governos de Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer, ele reforça a necessidade de o Brasil ter um Poder Executivo mais forte. “Quando digo isso, evidentemente, não estou falando num Executivo repressor dos direitos individuais ou sociais, ou que tenha força para oprimir o Legislativo. Penso exclusivamente em um governo com capacidade para definir e implementar políticas públicas de forma mais coerente, persistente, que tenham como resultado concreto o crescimento e o desenvolvimento do Brasil.”
Para o próximo governo que tomará posse em 2023, está precificado o alto custo do resgate das suas próprias responsabilidades e do restabelecimento de uma agenda republicana com o Congresso - com foco na execução de políticas públicas. Diz Carlos Melo, cientista político do Insper, ao tratar da escolha fundamental que molda os princípios da convivência entre Legislativo e Executivo. “Se a relação não for de alto nível, baseada em projetos do interesse público, o que resta é esse tipo de situação onde o Executivo acaba absolutamente refém da sua própria incompetência”.
Sistema multipartidário
Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e responsável pela atualização dos estudos sobre a relação entre Executivo e Legislativo nas últimas décadas, a cientista política Argelina Cheibub Figueiredo lembra que, no sistema chamado presidencialismo de coalizão, o poder Executivo deve ter a capacidade de determinar sua agenda e influenciar sobre os resultados em uma perspectiva de liderança. “Mas, por outro lado, o apoio no Congresso é um imperativo político. Se os governos como os nossos, em um sistema multipartidário, os presidentes eleitos não têm maioria no Congresso, o imperativo político é de que ele procure formar essa maioria, e, para formar essa maioria, ele precisa dividir o poder.”
Não é preciso ir muito longe para entender o caráter fisiológico que moldou as condições de governabilidade ao longo do tempo no Brasil. Em 2005, o primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi marcado pelo escândalo do mensalão, prática de pagamento a deputados para votarem a favor de projetos de interesse do Executivo. Entre as causas do impeachment da sua sucessora, Dilma Rousseff, em 2016, estava justamente o relacionamento conflituoso com o Congresso. Em abril daquele ano, o Estadão mostrou que somente as mudanças no segundo escalão do governo Dilma, em busca de votos para brecar o impeachment, envolveram a negociação de cargos com poder sobre R$ 38 bilhões em recursos do Orçamento.
Eleito sob o discurso de rompimento com a “velha política”, o presidente Jair Bolsonaro (PL), na prática, não mudou muito o cenário. Quando, em agosto de 2020, por exemplo, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR), disse que era “absolutamente justo” que os partidos que apoiam o governo tenham em troca disso acesso a cargos na administração, o Estadão alertou que esse tipo de relação em nada contribui para o desenvolvimento do Brasil. “Um governo e um governante com esse perfil e esses objetivos dificilmente atrairão para sua base as forças políticas genuinamente interessadas no futuro do País. Restam os oportunistas de sempre, numa aliança destinada a assegurar a continuidade do atraso e, consequentemente, a manutenção de seus privilégios”, dizia trecho de editorial do jornal.
Com o embarque do Centrão no governo, consumado com as eleições de Arthur Lira (PP-AL) na Câmara e Rodrigo Pacheco (PSD-MG) no Senado, alguns partidos, como PP, PL e Republicanos, se tornaram mais governistas. Estudo do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) aponta que as três legendas, juntas, controlam cerca de R$ 150 bilhões do orçamento de 2022 e ocupam posições de destaque no governo.
A nova adesão contribuiu para parlamentares aprovarem os próprios projetos, enquanto temas da agenda presidencial tiveram menos força, como a pauta de costumes. O diagnóstico é de que o Congresso elevou seu poder discricionário não apenas para travar ou passar projetos, mas também para tirar ou manter na gaveta pedidos de impeachment. Presidentes já foram alvo de ao menos 336 pedidos de afastamento desde 1990. A decisão de pautar ou não estas representações recai exclusivamente sobre o presidente da Câmara e a boa relação com o Congresso é um fator crucial para o chefe do Executivo.
Pressionado a pautar impeachments contra Bolsonaro, o presidente da Câmara, Arthur Lira, iniciou uma discussão para debater uma mudança no modelo de representação brasileiro ao semipresidencialismo. Na proposta, o presidente continua sendo eleito por voto popular, mas a chefia de governo é exercida pelo primeiro-ministro - escolhido pelo Congresso Nacional - e o poder dos parlamentares aumenta. O ex-presidente Michel Temer (MDB) é um dos maiores defensores e entusiastas da adoção do sistema semipresidencialista no Brasil como solução para acabar com a instabilidade política do País.
Parlamentarismo orçamentário
A cientista política Nara Pavão sustenta que, no cenário atual, o custo da governabilidade do Brasil é muito alto. “Um governo que é mantido através de uma coalizão muito heterogênea é ruim para o eleitor, porque aumenta a carga cognitiva para entender a política”, argumenta.
Não à toa, as candidaturas legislativas ganham peso a cada eleição. Com a proposta de diminuir a fragmentação partidária, a cláusula de barreira obriga os partidos a ter mais deputados eleitos como forma de receber maiores fatias dos fundos partidário e eleitoral.
“Os parlamentares criaram essa estratégia de dominar o orçamento como se vivêssemos em um parlamentarismo orçamentário. A alocação da forma das emendas de relator, e mesmo as emendas individuais impositivas via PIX orçamentário, indicam que os parlamentares também só pensam na sua própria reeleição”, diz a procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo e professora da FGV Élida Graziane.
A Lei Orgânica do SUS, por exemplo, prevê que os gastos na Saúde devem corresponder ao planejamento. Ou seja, ficam vedadas transferências que não estejam previstas, salvo em situações de calamidade. Parlamentares, no entanto, acabam fazendo emendas individuais, como se pudesse escolher até mesmo a pessoa jurídica beneficiária.
Como mostrou o Estadão, a disputa pelo controle do orçamento fez com que o presidente da Câmara, Arthur Lira, articulasse uma manobra para manter o controle do orçamento secreto em 2023, independentemente do resultado da eleição para o Palácio do Planalto. A Comissão Mista de Orçamento (CMO) do Senado também já agiu para tornar as emendas de relator impositivas, como forma de obrigar o próximo presidente a assinar todos os repasses do orçamento secreto indicados pelo Congresso. •
‘Não existe relação intrínseca entre governo de coalizão e corrupção’
Três perguntas para…
Argelina Maria Cheibub Figueiredo
Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Gustavo Queiroz
São Paulo
O modelo de presidencialismo de coalizão não pressupõe a corrupção. É o que aponta a cientista política Argelina Figueiredo, uma das principais responsáveis por atualizar os estudos sobre o modelo e a governabilidade no Brasil nas últimas décadas. Segundo a professora, as relações entre os Poderes deve ser horizontal, e não vertical, como se acredita, e os acordos precisam estar pautados em relações democráticas, com foco em um programa de governo.
1. Qual a relação entre governabilidade e representação? A governabilidade é uma relação entre poderes. Representação é uma relação entre eleitor e político. Desse ponto de vista, ter propostas é fundamental para que exista alguma relação que garanta que esses dois poderes poderão produzir políticas que reforcem a relação que vem do eleitorado por seus representantes.
2. Coalizão leva à corrupção? Não existe nenhuma relação intrínseca entre o modelo de governo de coalizão e corrupção. Encontramos tanto no presidencialismo quanto no parlamentarismo governos corruptos, governos não corruptos, ou governos com níveis diferentes de corrupção. A corrupção é extrínseca.
3. Como obter governabilidade sem entregar a gestão? A relação de governabilidade é horizontal entre Poderes. Relações democráticas entre os Poderes são aquelas que se apoiam em um programa. •