O primeiro dia do ano em que o brasileiro trabalhou para pagar suas contas e poupar foi 30 de maio. Até a véspera, ele vinha – teoricamente – pagando apenas impostos. Apesar de não funcionar exatamente assim na prática, essa seria a realidade se o pagamento de todos os tributos fosse feito no início do ano. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), em média, o brasileiro trabalha 149 dias do ano para quitar as suas obrigações com o Fisco.
O cálculo do IBPT indica que 40,8% dos rendimentos do brasileiro serão destinados ao pagamento de impostos em 2022. Este ano também deverá registrar um recorde de carga tributária no País. Em 2021, ela representou 33,9% do PIB e, agora, deve estar ultrapassando 34%, segundo especialistas.
Nesta reportagem da jornalista Luciana Dyniewicz, o Estadão mostra que a carga tributária brasileira está bem acima da de seus países vizinhos. Dados do Tesouro Nacional mostram que, em 2019, a carga média dos países da América Latina foi de 22,95%. Naquele mesmo ano, a brasileira ficou em 33,17%, e a média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 33,4%.
Ainda que os números do Brasil não se repitam nos próximos anos, a realidade é que eles não devem recuar de forma significativa. Apesar de o brasileiro sentir que paga muito imposto, talvez não seja nem desejável que esse número caia agora. “Como o Brasil já tem uma situação fiscal bem complicada, não só do ponto de vista macroeconômico, mas da dinâmica da dívida, não acho realista nem desejável pensar em reduzir a carga agora”, diz o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga.
Um dos motivos para que carga tributária brasileira seja mais alta do que a de países da região é porque, com exceção da Argentina e do Uruguai, os demais não têm um sistema de seguridade social como o nosso. “Os países da América Latina possuem apenas fundos de pensão dos trabalhadores formais com baixa contrapartida dos empregadores. Como consequência, a carga brasileira é mais alta que a dos demais países”, explica o economista Pedro Humberto Carvalho Junior, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Braulio Borges, economista da LCA Consultores, destaca que entre os efeitos de uma carga muito elevada está o desencorajamento ao empreendedorismo. Segundo Borges, estudos indicam que o porcentual ótimo – isto é, aquele em que o governo arrecada mais, dado que não há desestímulo ao investimento – estaria perto de 25%.
Os números recordes de 2021 e 2022 são temporários, dizem os economistas. Eles ocorrem sobretudo por causa do perfil da recuperação pós-pandemia, em que bens industriais (cuja tributação é mais elevada) foram mais demandados, e também devido à alta no preço das commodities verificada no início deste ano. Esse aumento na cotação levou a um incremento no lucro de empresas como a Petrobras e, portanto, no pagamento de impostos.
A avaliação, em geral, é de que, com a dívida bruta brasileira próxima dos 80% do PIB, o País não pode se dar ao luxo de abrir mão de receitas, pois precisa ter dinheiro para pagar suas contas. “Não adianta reduzir carga tributária e ter problemas de custeio. A narrativa do governo é que temos uma recuperação estrutural da arrecadação. Ainda não podemos dizer isso. Muitos fatores cíclicos estão em cena”, diz a economista Juliana Damasceno, da Tendências Consultoria.
Seria possível pensar em diminuir os impostos, porém, se os gastos também fossem reduzidos. Mas não é o que vem ocorrendo no País. Apenas com a mudança do Bolsa Família para o Auxílio Brasil, os gastos públicos devem crescer 1,1% do PIB. Enquanto o Bolsa Família equivalia a 0,4% do PIB em 2019, o Auxílio Brasil vai alcançar 1,5% em 2023. Apesar de o aumento no benefício para R$ 600 valer, por enquanto, até dezembro, economistas não acreditam que esse valor vá recuar, independentemente do eleito em outubro.
“Nenhum político vai arcar com esse ônus. Até há razões técnicas para o auxílio estar mais perto de R$ 500 do que de R$ 400, considerando a linha de pobreza e a inflação de alimentos. O problema é que o aumento foi dado sem se pensar na sustentabilidade fiscal”, diz Borges, da LCA.
Ele, porém, sustenta que uma reforma que torne o sistema tributário mais eficiente poderia impulsionar o crescimento da economia. Com um PIB maior, a arrecadação também aumentaria e, consequentemente, seria possível diminuir a carga ao longo do tempo. Isso, no entanto, não deve ser possível a curto prazo, acrescenta o economista.
REFORMA TRIBUTÁRIA
Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia (FGV/Ibre), alerta que uma reforma eficiente precisa, necessariamente, alterar a tributação sobre o consumo, sobre a folha de pagamentos e sobre a renda e o patrimônio.
A mudança nos impostos sobre consumo tem a discussão mais avançada e há pouca divergência entre os especialistas: é preciso unificar ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), PIS (Programa de Integração Social), Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e ISS (Imposto sobre Serviços) em um único tributo, abandonando um sistema com várias regras e muitas alíquotas. O atual sistema, por vezes, cria benefícios para setores de baixa produtividade.
Em relação aos tributos sobre a folha de pagamentos, seria necessário reduzi-los, diz Pires. A ideia é que, com impostos mais baixos, haveria maior formalização do emprego e até salários mais altos.
Por último, a tributação de renda e patrimônio precisaria ser mais progressiva, isto é, a população mais rica pagaria alíquotas mais elevadas. Hoje, a alíquota mínima brasileira é de 7,5% e a máxima de 27,5%. Nos países da OCDE, elas são, em média, de 17,4% e 44,6%, respectivamente.
Para o economista Carvalho Junior, aumentar a progressividade do imposto de renda seria a principal medida para tornar o sistema tributário mais similar ao da OCDE. Tanto a organização quanto o Fundo Monetário Internacional (FMI) têm defendido reformas nos sistemas tributários que elevem a progressividade, inclusive, em alguns casos, com a adoção de impostos sobre fortunas.
Os países que fazem parte da OCDE arrecadam, em média, 9% do PIB com imposto de renda da pessoa física (IRPF), enquanto o Brasil, 3%. “O aumento da receita gerado pelo fortalecimento do IRPF poderia ser compensado pela simplificação e redução dos impostos indiretos (ICMS e ISS, por exemplo). Os impostos indiretos poderiam ser reduzidos sem diminuir a arrecadação”, aponta Carvalho Junior. •
‘Seria positivo corrigir distorções e reduzir a contribuição sobre folha’
Entrevista
Bernard Appy
Fundador do CCiF
Luciana Dyniewicz
Fundador do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) e um dos autores do texto que serviu de base para a PEC da reforma tributária, Bernard Appy não vê espaço para que o próximo governo reduza a carga tributária. Ao contrário, diz haver risco de que um aumento seja necessário para bancar a elevação dos gastos públicos feita nos últimos meses. Appy, no entanto, destaca que uma reforma tributária pode tornar a economia mais eficiente, ainda que a carga continue elevada.
A carga tributária chegou a um patamar recorde em 2021, de 33,9% do PIB. É possível reduzi-la? A carga foi alta em 2021 e está alta em 2022, mas isso se deve a razões conjunturais. Provavelmente não se manterá assim. As razões têm a ver com o perfil da retomada pós-pandemia, concentrada em bens industriais, além da alta do preço de commodities, principalmente do petróleo. A tributação do consumo de produtos industriais é maior do que a de serviços ou produtos agropecuários. Isso aumenta a carga. Segundo, o lucro das empresas está alto, em parte por causa da alta do preço das commodities, como no caso da Petrobras. Entre 2022 e a média histórica, é mais de 1% do PIB de aumento da tributação sobre o lucro das empresas. Isso dificilmente se manterá, e temos uma pressão grande para ampliação de despesas. O governo, com a PEC que chamam de Kamikaze, aumentou as despesas públicas em quase 1% do PIB. Ou seja, você tem um aumento na arrecadação que deve ser revertido nos próximos anos. E tem uma pressão para aumentar a despesa. Isso significa que o espaço para reduzir carga nos próximos anos é muito pequeno.
Se houver intenção para reduzi-la, o que precisa ser feito? Acho pouco provável que haja intenção no próximo governo. Este governo está fazendo reduções de tributos. Do ponto de vista dos tributos federais, está reduzindo o IPI. Reduziu também o PIS/Cofins sobre combustíveis, mas é uma medida que termina no fim do ano. Do ponto de vista estrutural, houve a redução do ICMS sobre combustíveis, energia elétrica e telecomunicações. Ou seja, o que o governo fez foi, na verdade, reduzir a carga tributária dos outros, que é a dos Estados e municípios. Acho difícil o próximo governo ter espaço para reduzir tributação. O que vejo é espaço para redistribuir a arrecadação. Tem espaço para aumentar a tributação da renda. Aí eu usaria esse aumento de arrecadação para reduzir a tributação sobre folha de salários e eventualmente alguma coisa sobre consumo. Agora, reduzir tributo de forma linear, acho muito pouco provável no próximo governo.
A carga tributária alta trava o aumento de produtividade? A carga tributária é definida pelas despesas. Se você tem despesas elevadas, e o Brasil tem despesas elevadas para um país com o nosso grau de desenvolvimento, ele tem de ter uma arrecadação mais elevada. A outra questão é a qualidade dos tributos. Essa tem a ver com crescimento. Temos problemas seríssimos de qualidade dos tributos, que têm impacto sobre o crescimento. A complexidade aumenta o custo burocrático para pagar o imposto e gera litígio. Uma estimativa do Insper aponta que o estoque de litígio tributário no Brasil chega a 75% do PIB brasileiro. É provavelmente o mais alto do mundo, e isso gera custo para os setores público e privado. Gera insegurança jurídica, que prejudica o crescimento. Essas distorções nos tributos sobre bens e serviços aumentam o custo do investimento e reduzem a competitividade da produção nacional.
O que precisa ser feito para redistribuir a arrecadação? Uma parcela relevante das pessoas de alta renda no Brasil paga pouco imposto de renda. Isso acontece porque os dividendos, o lucro distribuído, é isento na pessoa física. Por exemplo, o sócio de uma empresa de lucro presumido, que é basicamente um profissional liberal, o faturamento da empresa dele é quase todo a remuneração do seu trabalho. Se a remuneração do trabalho dele é 80% do faturamento da empresa, ele hoje paga um imposto de renda só sobre 32% do faturamento. Ou seja, ele paga imposto de renda sobre menos da metade da renda efetiva e depois não paga na pessoa física porque a distribuição de lucros é isenta. Isso precisa ser corrigido numa agenda tributária a partir de 2023. Do ponto de vista do crescimento, seria positivo corrigir essas distorções e usar a arrecadação para reduzir a contribuição sobre folha. Ao fazer isso, você cria um forte estímulo para formalização dos trabalhadores, o que tem um efeito positivo sobre o crescimento de longo prazo.
A tributação dos dividendos gera ainda mais divergência do que a unificação de impostos sobre consumo. Como vê politicamente uma mudança dessas? Óbvio que vai ter oposição. Mas é preciso mostrar que isso é justo porque um profissional liberal hoje está pagando menos imposto do que um empregado. Se você mostrar que esse aumento da arrecadação vai ser utilizado para uma medida que tem um grande apelo político, que é a desoneração da tributação da folha para os trabalhadores de baixa renda, acho que tem chance de avançar.