Estadao
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Da redação do Estadão
31/07/2022 | 05h00

P  or suas ramificações no mundo dos negócios, o Estado brasileiro tem sido frequentemente comparado a um polvo. Mas mesmo o animal, com seus oito braços que se movem de forma independente, parece acanhado para simbolizar a presença estatal na economia do País.

Os tentáculos do Estado se espalham por inúmeros ramos de atividade, da extração de petróleo às comunicações e às finanças, da administração de portos e aeroportos ao abastecimento alimentar e ao processamento de dados.

Segundo os levantamentos mais recentes das secretarias do Tesouro Nacional e de Coordenação e Governança das Empresas Estatais, atualizados pelo Estadão até junho de 2022, a União detém, de formas direta e indireta, o controle acionário de 131 empresas e participações minoritárias em outras 298.

Várias estatais, como a Petrobras, cuja privatização sofre resistência de grupos de diferentes linhas ideológicas, entraram no radar do PPI, mas não devem ser vendidas no atual governo
Várias estatais, como a Petrobras, cuja privatização sofre resistência de grupos de diferentes linhas ideológicas, entraram no radar do PPI, mas não devem ser vendidas no atual governo. Reuters

Entre as 46 empresas controladas diretamente, cuja fatia no PIB (Produto Interno Bruto) alcança 7,6%, de acordo com os números oficiais, 19 são deficitárias. Só no ano passado, elas consumiram R$ 24,5 bilhões em recursos dos pagadores de impostos, cinco vezes mais do que em 2010. No total, de 2012 a 2021, a injeção da União para cobrir “rombos” de estatais atingiu R$ 160 bilhões, o equivalente a todo o gasto federal com saúde previsto para este ano.

“O Estado brasileiro é extremamente intervencionista”, diz José Márcio Camargo, economista-chefe da Genial Investimentos e colunista do Estadão. “Com tantas prioridades no Brasil, como segurança, relações exteriores e defesa, além de educação e saúde, não faz sentido o Estado competir com a iniciativa privada na arena empresarial”, afirma Salim Mattar, ex-secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados.

Na campanha eleitoral, a privatização deve ser, mais uma vez, um dos temas centrais do debate entre os candidatos à Presidência. Nesta reportagem de José Fucs, a terceira da série Agenda Estadão, dedicada à discussão dos principais desafios que o próximo presidente terá pela frente, o jornal aborda a importância da desestatização para o aumento da produtividade e o desenvolvimento econômico.

“A privatização tem uma função super importante: aumentar a eficiência da economia, a taxa de investimento e o crescimento, contribuindo para diminuir a pobreza e a desigualdade”, diz Camargo. "As estatais têm muitas amarras para fazer negócios, muita morosidade para tomar decisões. Para realizar qualquer investimento ou gasto, têm de fazer editais que estão sujeitos a regras rígidas”, afirma Rafaela Vitoria, economista-chefe do Banco Inter, que fez sua tese de doutorado sobre as privatizações e as empresas públicas no País.

Problemas crônicos

Usadas ao longo do tempo para irrigar propinodutos de partidos políticos, beneficiar fornecedores influentes em Brasília e engordar o patrimônio de corruptos de todos os tipos, as estatais representam um exemplo emblemático dos problemas crônicos enfrentados pelo setor público brasileiro. Com um quadro inchado de pessoal, salários generosos e privilégios ilimitados para seus funcionários, elas se tornaram uma trincheira de defesa do estatismo e do corporativismo que travam a modernização da economia.

“A gente passou muitos anos em que a privatização era mal vista, mal falada. Ainda hoje, existe uma narrativa de que as estatais são bens públicos e estratégicos”, diz Rafaela. “Mas as estatais só são ‘estratégicas’ para os políticos, que usam as empresas para outros fins, visando benefícios eleitorais, e para seus funcionários, que ganham muito mais do que a média do setor privado e têm privilégios injustificáveis.”

Nos últimos anos, é certo, o Estado-empresário, “bombado” nos governos Lula e Dilma, em linha com as ideias desenvolvimentistas que marcaram o regime militar, perdeu força. Após permanecer em hibernação entre 2003 e 2015, o programa de desestatização impulsionado nas gestões de Collor e FHC voltou a ganhar tração.

No governo Temer, apesar de as privatizações de estatais controladas diretamente pela União não terem decolado, aconteceram 124 concessões, que renderam R$ 46,4 bilhões em outorga à União.

No atual governo, ainda que a privatização tenha se limitado à Eletrobras e à Codesa (Companhia Docas do Espírito Santo) e ficado distante das pretensões do ministro da Economia, Paulo Guedes, as vendas de subsidiárias e participações minoritárias de estatais, que não exigem autorização do Congresso, alcançaram o maior volume de todos os tempos.

“Desalavancagem”

De acordo com o Ministério da Economia, as vendas de ativos de estatais somaram R$ 230,7 bilhões entre o início de 2019 e abril deste ano, tendo como estrelas a BR Distribuidora, a TAG (Transportadora Associada de Gás), a refinaria Landulpho Alves e fatias relevantes no Banco Pan e no IRB (Instituto de Resseguros do Brasil). Só o BNDES arrecadou cerca de R$ 75 bilhões no período com a venda de participações na Petrobras, Vale, JBS, Marfrig, Suzano e em outras grandes empresas.

Mais R$ 170,6 bilhões foram arrecadados pelo governo federal, conforme os dados do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), com concessões e com as privatizações da Eletrobras e da Codesa. Houve, também, uma “desalavancagem” master dos bancos públicos, que permitiu o aumento da fatia das instituições privadas no crédito, e a aprovação de novos marcos regulatórios para as áreas de saneamento, ferrovias, gás e cabotagem, que vão facilitar bastante o investimento privado.

No fim, apesar dos percalços, as privatizações e as concessões renderam um total de R$ 401,3 bilhões (US$ 77,2 bilhões ao câmbio atual) à União, com a vantagem de que, desta vez, os fundos de pensão das estatais não figuraram entre os principais investidores, como acontecia no passado. É um resultado que não chega à metade do R$ 1 trilhão almejado por Guedes, mas supera em 15% os US$ 67,5 bilhões obtidos com a desestatização desde os anos 1980 até 2018 – US$ 54,5 bilhões até 2015, segundo o BNDES, e cerca de US$ 13 bilhões no governo Temer.

Sabotador

Agora, é certo, também, que novas estatais surgiram no meio do caminho. Fazem parte da lista a ENBPar, que reuniu Itaipu Binacional e Eletronuclear, a NAV Brasil, que assumiu ativos e passivos da Infraero ligados aos serviços de navegação aérea, e a VDMG Investimentos, que herdou as ações da União na CBTU-MG, do metrô de Belo Horizonte.

É certo, ainda, que o próprio presidente Jair Bolsonaro (PL), apesar de vociferar pela privatização da Petrobras, muitas vezes foi o principal sabotador do processo de desestatização, como ocorreu quando ele forçou a retirada da Casa da Moeda e do Ceasa de São Paulo do PPI e desestimulou a inclusão do Banco do Brasil e da Caixa no programa.

O saldo, porém, ainda é positivo neste campo. “Em relação ao prometido na campanha e ao que o governo anunciou no início do mandato, o resultado ficou a desejar”, diz Rafaela. “Mas a gente precisa analisar o que foi feito não só em termos de grandes privatizações, com o governo vendendo o controle direto de empresas, mas de vendas de subsidiárias e de participações acionárias de estatais.”

Historicamente, o balanço é igualmente favorável, mesmo considerando que a privatização parou e as concessões andaram em marcha lenta nos governos Lula e Dilma. Diz Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos e ex-presidente do Banco Central: “No passado, você tinha a presença estatal nos setores de telecomunicações, mineração, siderurgia, fertilizantes. O governo, bem ou mal, vendeu participações enormes no Banco do Brasil e na Petrobras. O setor elétrico também avançou um pouco. Os portos passaram por um grande processo de concessão e privatização. O mesmo aconteceu com rodovias, aeroportos, ferrovias, hidrovias”.

Talvez, a “República Socialista Soviética do Brasil” – tema de uma série pioneira de reportagens sobre o gigantismo estatal, publicada em 1983 pelo Jornal da Tarde, editado de 1966 a 2012 pelo Grupo Estado – tenha realmente encolhido, como diz Arminio, ainda que de forma lenta e gradual. Mesmo assim, a desestatização está longe do fim.

Ícone do estatismo

Existem, ainda, algumas “joias da coroa” na fila, como a Petrobras, ícone maior do estatismo verde-amarelo, a PPSA (a estatal do pré-sal), o BB e a Caixa, além dos Correios e da Telebrás, e dezenas de concessões que já estão no pipeline do PPI, em estágio mais ou menos avançado, como as dos aeroportos de Congonhas (SP) e Santos Dumont (RJ).

“Hoje, há muito mais apoio à privatização da Petrobras do que antes. A minha percepção, com base em observações e em pesquisas sobre o assunto, é que entre 40% e 50% da população apoiam a medida”, afirma José Márcio Camargo. “No Brasil, privatizar é sempre complicado. Mas, da mesma forma que a Eletrobras foi privatizada, é possível privatizar a Petrobras e acabar definitivamente com o que nós chamamos de Era Vargas.”

Para Rafaela Vitoria, é importante que os projetos de desestatização sejam desenhados com cautela, mas isso não deve levar à paralisação da agenda. “O processo de privatização tem de ser feito com cuidado, para evitar que se beneficiem pequenos grupos, como ocorreu no México e na Rússia”, diz. “Agora, é fundamental que as privatizações continuem a avançar, assim como as parcerias público-privadas, para a gente poder evoluir nos investimentos em infraestrutura.” É isso que estará em jogo nesta questão nas eleições de outubro. •