P or suas ramificações no mundo dos negócios, o Estado brasileiro tem sido frequentemente comparado a um polvo. Mas mesmo o animal, com seus oito braços que se movem de forma independente, parece acanhado para simbolizar a presença estatal na economia do País.
Os tentáculos do Estado se espalham por inúmeros ramos de atividade, da extração de petróleo às comunicações e às finanças, da administração de portos e aeroportos ao abastecimento alimentar e ao processamento de dados.
Segundo os levantamentos mais recentes das secretarias do Tesouro Nacional e de Coordenação e Governança das Empresas Estatais, atualizados pelo Estadão até junho de 2022, a União detém, de formas direta e indireta, o controle acionário de 131 empresas e participações minoritárias em outras 298.
Entre as 46 empresas controladas diretamente, cuja fatia no PIB (Produto Interno Bruto) alcança 7,6%, de acordo com os números oficiais, 19 são deficitárias. Só no ano passado, elas consumiram R$ 24,5 bilhões em recursos dos pagadores de impostos, cinco vezes mais do que em 2010. No total, de 2012 a 2021, a injeção da União para cobrir “rombos” de estatais atingiu R$ 160 bilhões, o equivalente a todo o gasto federal com saúde previsto para este ano.
“O Estado brasileiro é extremamente intervencionista”, diz José Márcio Camargo, economista-chefe da Genial Investimentos e colunista do Estadão. “Com tantas prioridades no Brasil, como segurança, relações exteriores e defesa, além de educação e saúde, não faz sentido o Estado competir com a iniciativa privada na arena empresarial”, afirma Salim Mattar, ex-secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados.
Na campanha eleitoral, a privatização deve ser, mais uma vez, um dos temas centrais do debate entre os candidatos à Presidência. Nesta reportagem de José Fucs, a terceira da série Agenda Estadão, dedicada à discussão dos principais desafios que o próximo presidente terá pela frente, o jornal aborda a importância da desestatização para o aumento da produtividade e o desenvolvimento econômico.
“A privatização tem uma função super importante: aumentar a eficiência da economia, a taxa de investimento e o crescimento, contribuindo para diminuir a pobreza e a desigualdade”, diz Camargo. "As estatais têm muitas amarras para fazer negócios, muita morosidade para tomar decisões. Para realizar qualquer investimento ou gasto, têm de fazer editais que estão sujeitos a regras rígidas”, afirma Rafaela Vitoria, economista-chefe do Banco Inter, que fez sua tese de doutorado sobre as privatizações e as empresas públicas no País.
Problemas crônicos
Usadas ao longo do tempo para irrigar propinodutos de partidos políticos, beneficiar fornecedores influentes em Brasília e engordar o patrimônio de corruptos de todos os tipos, as estatais representam um exemplo emblemático dos problemas crônicos enfrentados pelo setor público brasileiro. Com um quadro inchado de pessoal, salários generosos e privilégios ilimitados para seus funcionários, elas se tornaram uma trincheira de defesa do estatismo e do corporativismo que travam a modernização da economia.
“A gente passou muitos anos em que a privatização era mal vista, mal falada. Ainda hoje, existe uma narrativa de que as estatais são bens públicos e estratégicos”, diz Rafaela. “Mas as estatais só são ‘estratégicas’ para os políticos, que usam as empresas para outros fins, visando benefícios eleitorais, e para seus funcionários, que ganham muito mais do que a média do setor privado e têm privilégios injustificáveis.”
Nos últimos anos, é certo, o Estado-empresário, “bombado” nos governos Lula e Dilma, em linha com as ideias desenvolvimentistas que marcaram o regime militar, perdeu força. Após permanecer em hibernação entre 2003 e 2015, o programa de desestatização impulsionado nas gestões de Collor e FHC voltou a ganhar tração.
No governo Temer, apesar de as privatizações de estatais controladas diretamente pela União não terem decolado, aconteceram 124 concessões, que renderam R$ 46,4 bilhões em outorga à União.
No atual governo, ainda que a privatização tenha se limitado à Eletrobras e à Codesa (Companhia Docas do Espírito Santo) e ficado distante das pretensões do ministro da Economia, Paulo Guedes, as vendas de subsidiárias e participações minoritárias de estatais, que não exigem autorização do Congresso, alcançaram o maior volume de todos os tempos.
“Desalavancagem”
De acordo com o Ministério da Economia, as vendas de ativos de estatais somaram R$ 230,7 bilhões entre o início de 2019 e abril deste ano, tendo como estrelas a BR Distribuidora, a TAG (Transportadora Associada de Gás), a refinaria Landulpho Alves e fatias relevantes no Banco Pan e no IRB (Instituto de Resseguros do Brasil). Só o BNDES arrecadou cerca de R$ 75 bilhões no período com a venda de participações na Petrobras, Vale, JBS, Marfrig, Suzano e em outras grandes empresas.
Mais R$ 170,6 bilhões foram arrecadados pelo governo federal, conforme os dados do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), com concessões e com as privatizações da Eletrobras e da Codesa. Houve, também, uma “desalavancagem” master dos bancos públicos, que permitiu o aumento da fatia das instituições privadas no crédito, e a aprovação de novos marcos regulatórios para as áreas de saneamento, ferrovias, gás e cabotagem, que vão facilitar bastante o investimento privado.
No fim, apesar dos percalços, as privatizações e as concessões renderam um total de R$ 401,3 bilhões (US$ 77,2 bilhões ao câmbio atual) à União, com a vantagem de que, desta vez, os fundos de pensão das estatais não figuraram entre os principais investidores, como acontecia no passado. É um resultado que não chega à metade do R$ 1 trilhão almejado por Guedes, mas supera em 15% os US$ 67,5 bilhões obtidos com a desestatização desde os anos 1980 até 2018 – US$ 54,5 bilhões até 2015, segundo o BNDES, e cerca de US$ 13 bilhões no governo Temer.
Sabotador
Agora, é certo, também, que novas estatais surgiram no meio do caminho. Fazem parte da lista a ENBPar, que reuniu Itaipu Binacional e Eletronuclear, a NAV Brasil, que assumiu ativos e passivos da Infraero ligados aos serviços de navegação aérea, e a VDMG Investimentos, que herdou as ações da União na CBTU-MG, do metrô de Belo Horizonte.
É certo, ainda, que o próprio presidente Jair Bolsonaro (PL), apesar de vociferar pela privatização da Petrobras, muitas vezes foi o principal sabotador do processo de desestatização, como ocorreu quando ele forçou a retirada da Casa da Moeda e do Ceasa de São Paulo do PPI e desestimulou a inclusão do Banco do Brasil e da Caixa no programa.
O saldo, porém, ainda é positivo neste campo. “Em relação ao prometido na campanha e ao que o governo anunciou no início do mandato, o resultado ficou a desejar”, diz Rafaela. “Mas a gente precisa analisar o que foi feito não só em termos de grandes privatizações, com o governo vendendo o controle direto de empresas, mas de vendas de subsidiárias e de participações acionárias de estatais.”
Historicamente, o balanço é igualmente favorável, mesmo considerando que a privatização parou e as concessões andaram em marcha lenta nos governos Lula e Dilma. Diz Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos e ex-presidente do Banco Central: “No passado, você tinha a presença estatal nos setores de telecomunicações, mineração, siderurgia, fertilizantes. O governo, bem ou mal, vendeu participações enormes no Banco do Brasil e na Petrobras. O setor elétrico também avançou um pouco. Os portos passaram por um grande processo de concessão e privatização. O mesmo aconteceu com rodovias, aeroportos, ferrovias, hidrovias”.
Talvez, a “República Socialista Soviética do Brasil” – tema de uma série pioneira de reportagens sobre o gigantismo estatal, publicada em 1983 pelo Jornal da Tarde, editado de 1966 a 2012 pelo Grupo Estado – tenha realmente encolhido, como diz Arminio, ainda que de forma lenta e gradual. Mesmo assim, a desestatização está longe do fim.
Ícone do estatismo
Existem, ainda, algumas “joias da coroa” na fila, como a Petrobras, ícone maior do estatismo verde-amarelo, a PPSA (a estatal do pré-sal), o BB e a Caixa, além dos Correios e da Telebrás, e dezenas de concessões que já estão no pipeline do PPI, em estágio mais ou menos avançado, como as dos aeroportos de Congonhas (SP) e Santos Dumont (RJ).
“Hoje, há muito mais apoio à privatização da Petrobras do que antes. A minha percepção, com base em observações e em pesquisas sobre o assunto, é que entre 40% e 50% da população apoiam a medida”, afirma José Márcio Camargo. “No Brasil, privatizar é sempre complicado. Mas, da mesma forma que a Eletrobras foi privatizada, é possível privatizar a Petrobras e acabar definitivamente com o que nós chamamos de Era Vargas.”
Para Rafaela Vitoria, é importante que os projetos de desestatização sejam desenhados com cautela, mas isso não deve levar à paralisação da agenda. “O processo de privatização tem de ser feito com cuidado, para evitar que se beneficiem pequenos grupos, como ocorreu no México e na Rússia”, diz. “Agora, é fundamental que as privatizações continuem a avançar, assim como as parcerias público-privadas, para a gente poder evoluir nos investimentos em infraestrutura.” É isso que estará em jogo nesta questão nas eleições de outubro. •