Apandemia de covid forçou uma revisão do papel do Estado na saúde. No caso do Brasil, milhões de pessoas descobriram que o braço pesado do Estado, mesmo caro e ineficaz em tantas áreas, na saúde mostrou-se, com o SUS, de imensa utilidade na superação da crise. O Estadão destacou as jornalistas Adriana Ferraz e Cristiane Segatto para produzir esta reportagem que objetiva municiar os debates eleitorais em torno da questão essencial de formulação de políticas públicas para a saúde no próximo governo, seja quem for o próximo presidente.
O eleito se defrontará com um Sistema Único de Saúde que se mostrou imprescindível diante de uma demanda gigantesca por atendimentos. São 150 milhões os brasileiros exclusivamente dependentes do SUS, seja para curar um resfriado, tomar uma vacina ou se submeter a uma cirurgia.
A decisão crucial a ser tomada no Palácio do Planalto para tornar o SUS sustentável e mais eficiente gira em torno de três grandes eixos:
• O governo federal precisa decidir se eleva em quatro anos o gasto público com saúde dos atuais 3,96% do PIB para o patamar de 5% do PIB, considerado mínimo por estudiosos do assunto.
• Precisa explicitar seus planos para aprimorar a coordenação e otimização dos recursos destinados à saúde de modo a tornar os gastos mais transparentes e a prestação de contas uma obrigação do setor público para com os pagadores de impostos.
• O ideal é que a nova administração já tenha uma ideia clara de como vai tratar as atuais desonerações que favorecem o setor privado e as Organizações Sociais (OSs), com quem o Estado mantém relações complexas não totalmente entendidas.
Historicamente o setor público tem um gasto menor do que o setor privado, representando 3,8% do PIB, ou R$ 283,6 bilhões
Já o setor privado investe mais em saúde no País do que os governos federal, estadual e municipal, representando 5,8% do PIB, ou R$ 427,8 bilhões
Somados os investimentos do setor público e privado, os valores chegam a 9,6% do PIB, ou R$ 711,4 bilhões
Para Rudi Rocha, diretor de pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), caberá ao Ministério da Saúde do novo governo articular ações e coordenar o serviço de vigilância de alta complexidade e de organização geral de redes de atenção do SUS. Diz Rudi Rocha: “A coordenação do sistema está atualmente totalmente fragmentada. Só avançaremos no ganho de eficiência e melhoria dos serviços se todos trabalharem juntos. A atenção primária é municipal, mas os hospitais são estaduais e os recursos, em parte, são federais. Tudo isso tem que estar alinhado.”
Edson Araujo, economista sênior do Banco Mundial, em Washington, reforça a recomendação sobre a coordenação do sistema, em especial da rede hospitalar. Diz Araújo: “O Brasil tem uma rede hospitalar muito diversa. Há muitos hospitais com baixa ocupação de leitos. Mais de 70% dos municípios brasileiros são pequenos – com cerca de 20 mil habitantes – e não têm escala para prover serviços essenciais de saúde. Sua existência se justifica pelo atendimento primário. Na atenção de média e alta complexidade, sobretudo hospitalar, porém, a escala e volume são decisivos”. Araujo recomenda fortemente que um novo governo estude mudar os critérios de repasses financeiros com foco em resultados, e não no número de leitos.
Maria Angélica Borges dos Santos, médica e pesquisadora da Fiocruz, concorda com o economista Edson Araujo e aponta a Tabela SUS, usada para definir as transferências de recursos entres os diversos entes do sistema, como mais um fator de descoordenação. Diz a doutora Maria Angélica: “A utilização dessa tabela não é uniforme nem dentro da mesma rede. As unidades geridas por Organizações Sociais (OSs), por exemplo, chegam a receber cinco vezes a tabela SUS. Os critérios são aleatórios”.
Não bastasse a complexidade própria de um serviço oficial de saúde implantado capilarmente em um país de dimensões continentais como Brasil, o SUS tem também diversas formas de interação com o sistema privado de saúde. Há consenso de que a convivência público-privada no sistema de saúde do governo deve continuar, mas são necessárias correções de rota na fiscalização dos repasses, dos critérios de desonerações dadas a hospitais privados titulados como instituições filantrópicas, mas que não necessariamente cumprem rigorosamente a cota de atendimentos públicos acordada.
Adriano Massuda, professor da FGV-SP, sugere um estudo cuidadoso do sistema europeu, que integra com harmonia os serviços públicos e privados de saúde, em benefício dos usuários. Diz Massuda: “A saúde suplementar precisa ser parceira do SUS. Isso é o que os países europeus fazem. Lá, a saúde suplementar está ligada à política nacional de saúde, não funciona como um mundo paralelo”.
O professor da FGV-SP lembra que no Brasil os dois sistemas, além de não se complementarem, colocam-se como concorrentes, sendo a maior distorção a possibilidade de uma pessoa com recursos para pagar um plano de saúde privado continuar usando o SUS, especialmente quando precisa de um procedimento complexo ou de um medicamento de alto custo. Conclui Massuda: “É urgente uma integração racional entre os dois sistemas.”
O PÚBLICO E O PRIVADO
Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lembra que a Constituição Brasileira colocou o acesso à saúde como um direito de todos os brasileiros. A professora considera que, se o governo não quiser afrontar o texto constitucional, é necessário elevar os gastos com saúde dos atuais 3,9% do PIB para 9% do PIB. “O impasse é esse. Se aprovamos a universalização dos serviços de saúde na Constituição, o caminho é desprivatizar o sistema, cortando subsídios aos hospitais particulares, canalizando os recursos necessários para o SUS.”.
A proposição da professora Ligia Bahia é impecável do ponto de vista lógico e do atendimento ao preceito constitucional. Ela precisa ser debatida. Os problemas começam, porém, quando se comparam as implicações práticas de governança, controle de custos e de eficiência na criação de uma estrutura de saúde ainda mais gigantesca do que o SUS atual. Simplesmente desmontar a atual convivência pública e privada na saúde brasileira, mesmo com todos suas zonas de sombra e complexidades, traria estrangulamentos fatais ao sistema, em especial na baixa oferta de serviços de apoio diagnóstico e terapêuticos.
Como registra o relatório “Mix público-privado no sistema de saúde brasileiro: realidade e futuro do SUS”, assinado pelas professoras Isabela Soares Santos, Maria Angelica Borges dos Santos e Danielle da Costa Leite Borges, a forte presença de prestadores privados é uma marca distintiva do sistema de saúde brasileiro. Diz a pesquisa: “Em estudo realizado por Hanson e Berman (1995), que abordava o final dos anos 80 e início da década de 90, o Brasil era o país com o maior número de leitos privados por habitante entre 52 países de baixa e média renda nos continentes americano, africano e asiático – 2,5 leitos privados por habitante comparado à média de 0,45 leito privado por habitante para o conjunto dos países estudados.”
O caminho mais adequado talvez seja buscar mais transparência nessas relações público-privadas com o uso intenso das novas tecnologias digitais.
Em um ambiente global hiperconectado, não faz sentido que o maior e mais complexo serviço de saúde pública do mundo, o SUS, não seja também vanguardista no uso de dados para dar coerência e eficiência para a sua atuação. O papel de financiador do SUS que o governo federal, ao que parece, precisa aprofundar, só vai trazer os resultados esperados com decisões tomadas a partir da análise de dados.
Jorge Kalil, presidente do Instituto Todos pela Saúde, é um fervoroso evangelista do uso de ferramentas de gestão e digitais com o objetivo de otimizar o emprego de recursos financeiros e humanos no SUS. Diz Kalil: “Temos de usar os dados que são gerados pelos atendimentos do SUS para melhorar o planejamento do próprio SUS. Esses dados precisam virar informação. A partir disso poderemos aprimorar a gestão e prevenir problemas futuros, como as pandemias”.
Kalil lembra que digitalizar o sistema de maneira ampla é uma reivindicação antiga dos especialistas em saúde pública. Um compromisso que um novo governo precisa ter para com o SUS é a implementação em tempo curto do Prontuário Eletrônico. Diz Kalil: “Essa ferramenta é fundamental para não ficarmos repetindo exames desnecessários. O Prontuário Eletrônico permite otimizar recursos e, ao mesmo tempo, aumentar a qualidade do atendimento médico.” •
‘SUS deve pagar por população assistida’
Entrevista
Gonzalo Vecina
Médico sanitarista e professor de Saúde Pública da USP
Adriana Ferraz
A experiência adquirida ao longo de uma vida dedicada à saúde pública permite ao médico Gonzalo Vecina propor uma mudança completa na forma de financiamento do Sistema Único de Saúde. A vitrine obtida pelo SUS com a pandemia torna urgente, segundo o especialista, um debate sobre como alcançar a universalidade no atendimento. Para o primeiro presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e professor de Saúde Pública da USP, é hora de aposentar a tabela SUS – usada para pagamento de procedimentos –, acabar com as isenções, inclusive às Santas Casas, e dividir o País em regiões demográficas para o atendimento da saúde.
Como ampliar e melhorar os serviços do SUS? O problema macro do SUS é o financiamento. Dinheiro? Sim, porque o dinheiro vem acompanhado de políticas públicas. Hoje, o financiamento do SUS é absolutamente inconsequente, particularmente o federal, que vem reduzindo inclusive sua parcela. Precisamos resolver essa crise.
O recurso é insuficiente ou mal utilizado? Temos de aumentar a eficiência no uso dos recursos públicos e isso exige mexer na gestão. E quem faz? Pessoalmente, acho que os movimentos de terceirização não são tão graves se forem acompanhados de cobrança, avaliação e controle. Hoje, 60% da rede hospitalar é privada. Só 40% é pública e parte ainda está sendo gerenciada por Organizações Sociais (OSs). O Estado tem que fazer esse controle, mas precisamos de integração entre municípios, Estados e a União.
Como tratar a tabela SUS? A tabela remunera por procedimento. Não paga por remédio, exame, mas por tratamento, como, por exemplo, o tratamento de uma pneumonia. O que deveria ser feito é financiar por população assistida. E o município e o Estado fariam um plano de aplicação de recursos. É muito mais inteligente, pois permitirá que os municípios e Estados tomem decisões.
Que mudança isso proporcionaria? Temos cerca de 7 mil hospitais no Brasil, sendo 70% com menos de 50 leitos. Um hospital desse tamanho não é um hospital, não tem tecnologia para atender a demanda. Não tem UTI, por exemplo. Mas ninguém tem coragem de fechar porque eles geram empregos. Agora, se os recursos fossem do município, ele poderia transformar esses hospitais em outras unidades de saúde, unidades de atenção básica e saúde da família. •