Estadao
Estadao
Da redação do Estadão
21/08/2022 | 05h00

Promessa de todos os presidentes eleitos nas últimas décadas e sempre abandonada no meio do caminho, a reforma tributária ganhou mais do que nunca o carimbo de “emergencial”. É consenso geral que o País não pode mais esperar e desperdiçar a chance de aprovar uma reforma ampla no primeiro ano do próximo governo, quando o ambiente político é favorável para as reformas econômicas conhecidas como “estruturantes”.

O Estadão destacou a jornalista Adriana Fernandes para produzir esta reportagem que mostra que, de todas as reformas a fazer no Brasil, a mudança no reconhecidamente caótico e injusto sistema tributário brasileiro é apontada como “número 1” na lista de prioridades econômicas, renovada a cada eleição.

Mas, se os empresários cobram a reforma tributária para ontem, o mercado financeiro quer ver uma solução imediata (se possível ainda em 2022) para o aumento das despesas com o Auxílio Brasil, o programa de transferência de renda criado no governo Jair Bolsonaro para substituir o Bolsa Família, e uma definição de novo arcabouço fiscal que sinalize uma trajetória de queda para a dívida pública.

Além da tributária, estão na fila das reformas a administrativa (do RH do Estado brasileiro), novos ajustes na legislação trabalhista e das regras de controle das contas públicas após a “morte” prematura do teto de gastos, a âncora da política fiscal que trava o crescimento das despesas à variação da inflação.

Desafio das reformas é buscar a redução de impostos e do custo de vida da população brasileira
Desafio das reformas é buscar a redução de impostos e do custo de vida da população brasileira. Marcos Santos/USP Imagens

Três novos pilares das reformas entraram mais fortemente no grupo das prioridades: um arcabouço regulatório favorável ao desenvolvimento da economia verde, uma reforma social para combater o aumento da miséria do País e uma mudança nas regras orçamentárias depois da criação do orçamento secreto, revelado pelo Estadão.

O desafio para 2023, porém, continua o mesmo: vencer a chamada “maldição” das reformas tributárias: proposta que toda a sociedade cobra, mas que nunca se chega em um consenso. Na hora que são negociados os detalhes, ela acaba morrendo com a falta de empenho político do presidente de plantão. Esse tem sido o roteiro da reforma tributária há quase 30 anos desde o lançamento do Plano Real.

O grande dilema é que a sociedade não aceita pagar mais impostos e todos os atores envolvidos não querem que a reforma afete o seu próprio bolso.

Com a recente desoneração do ICMS (tributo cobrado pelos Estados) dos combustíveis, energia elétrica, telecomunicações e transporte público, um novo ingrediente nesse caldeirão de demandas ganhou força: a pressão para que a reforma venha acompanhada de uma queda da carga tributária. Lideranças do Congresso afirmam que a “chave mudou” para os eleitores. Entre os especialistas, a percepção é contrária: a mudança do ICMS vai forçar a reforma tributária.

Do lado de quem arrecada (governo federal, Estados e municípios), a briga é para não perder arrecadação que banca as políticas públicas e a nova onda de reajustes salariais do funcionalismo.

DIVISÃO

A urgência do mercado financeiro para a reforma fiscal é maior porque os analistas veem uma sinalização de mudança no teto combinado com aumento de gastos para os próximos anos. Os investidores querem saber o que o próximo governo vai colocar no lugar do teto de gastos.

O piso do Auxílio Brasil subiu de R$ 400 para R$ 600 até o final do ano. O valor deverá ser mantido no próximo ano, de acordo com as promessas dos dois candidatos que lideram as pesquisas: Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL). O problema é que não há espaço no Orçamento com o desenho atual do teto.

“As duas mais importantes reformas são a definição da nova regra fiscal, com algum controle da despesa do governo de tal forma que possamos ver ainda no próximo governo as dívidas líquida e bruta entrarem numa trajetória de queda consistente; e a reforma tributária”, diz o ex-secretário do Tesouro Nacional Mansueto Almeida. “Se o próximo governo não deixar claro qual será a estratégia para continuar com ajuste fiscal, tudo ficará em risco”, prevê ele, que é hoje economista-chefe do banco BTG Pactual.

Segundo Mansueto, no Brasil, ao contrário de vários outros países da América Latina como México, Chile e Colômbia, o desafio continua sendo o de mudar a composição do gasto ao invés de simplesmente aumentar a despesa social.

Para aumentar a despesa na área social, México, Chile e Colômbia têm que necessariamente elevar o gasto total e a carga tributária. Mas esses são países de carga tributária baixa. Não é o caso do Brasil.

Aqui, o desafio continua sendo mudar a composição do gasto para tornar a despesa mais distributiva. E, mesmo assim, ainda há risco de elevação de impostos se a arrecadação cair nos próximos anos, alerta Mansueto.

Coordenador do Observatório Fiscal da Fundação Getulio Vargas (FGV), Manoel Pires tem trabalhado com uma visão integrada da solução fiscal com a tributária. Pires, que já foi secretário de Política Econômica, defende uma reforma tributária que elimine a “regressividade” da tributação do País da qual a isenção de lucros e dividendos é um elemento importante. Um sistema é regressivo quando os mais pobres pagam proporcionalmente mais tributos do que os mais ricos. É o caso do Brasil.

O economista da FGV ressalta um ponto que considera importante no cenário atual: a aceitação pelo empresariado da taxação de lucros e dividendos. E cita que a Federação da Indústria de São Paulo (Fiesp), em documento recente, sugeriu uma proposta de taxação de lucros e dividendos ajustada, proporcionalmente, à carga que incide sobre as empresas. “O documento reflete um amadurecimento importante em torno desse assunto”.

AVANÇOS

Envolvido nas negociações para aprovação da reforma tributária desde o governo Lula, o economista Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), avalia que há chance razoável de a reforma ser uma agenda do começo do governo. “É uma pauta que precisa ser feita e trabalhada em começo de governo”, diz ele, que defende que a tramitação da reforma tributária do consumo e da renda seja feita conjuntamente.

Appy fez parte da equipe econômica do ex-presidente Lula, que tentou em 2008 aprovar uma reforma tributária. Faltou na época, porém, empenho político do governo para tocá-la no Congresso.

Mais tarde, ele participou da elaboração da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45 e depois das negociações da PEC 110. As duas mexem na tributação de consumo criando um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) e unificando impostos.

“Não funciona o governo achar que vai mandar para o Congresso e resolver sozinho”, destaca ele, que agora integra o “Grupo dos Seis”, que apresentou um documento com propostas para o próximo governo que envolvem uma abordagem integrada das reformas e com compensações.

Ao longo do governo Bolsonaro, nem a PECs 45 e nem a PEC 110 foram aprovadas. Tampouco os projetos do ministro da Economia, Paulo Guedes, de reforma tributária fatiada. O primeiro deles criando um IVA federal (unindo o PIS/Cofins) e outro da reforma do Imposto de Renda (IR). A prometida desoneração da folha de salários (redução dos encargos cobrados sobre os salários dos funcionários) também não aconteceu.

A maior parte do setor de serviços, contrário à reforma ampla que aumente a carga tributária para as suas empresas, continua defendendo a criação de um novo imposto sobre as transações financeiras, nos moldes da antiga CPMF, para financiar a desoneração da folha de pagamento.

Entre os especialistas, há a avaliação que a tramitação das propostas no Congresso gerou um aprendizado importante sobre as resistências e quais são as mudanças que precisam ser feitas para superá-las.

A percepção é que a reforma tributária pode ter caminho semelhante ao da reforma da Previdência. O texto quase foi aprovado no governo Michel Temer e depois acabou abrindo caminho para a sua aprovação, em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro.

“Esses últimos anos não foram perdidos. Houve um amadurecimento para entender onde estão as resistências políticas para poder aprovar a reforma”, destaca Appy.

Representante das empresas do setor de comunicações, a empresária Vivien Suruagy, presidente da Federação Nacional de Call Center, Infraestrutura de Redes de Telecomunicações e Informática (Feninfra), diz que a reforma tributária é a maior prioridade. Mas a empresária destaca que a proposta precisa trazer eficiência na cobrança dos tributos e reduzir os impostos “para todos”.

“Não aumentando tributos em serviços, maior empregador, para subsidiar outros (setores)”, cobra Vivien, uma das mais atuantes nas negociações em Brasília. “Não podemos ter uma reforma de fachada para aumentar impostos e custo de vida da população brasileira, nem cair em discurso populista de tirar dos ricos para dar para os pobres”, adverte a empresária. Na sua avaliação, não adianta cobrar mais de quem investe e gera emprego.

ESG

Economista-chefe da Fiesp, Igor Rocha avalia que o cumprimento de práticas ESG (meio ambiente, social e governança) está virando em importância o que foi no passado o grau de investimento, o selo dado pelas agências de classificação de risco internacionais para os investidores colocarem o seu dinheiro. “É o novo grau de investimento”, destaca Rocha. O Brasil perdeu o grau de investimento em 2015.

No documento com diretrizes prioritárias para o governo entre 2023-2006, a Fiesp defende a criação de forma ampla do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) em nível nacional, inserido num programa de crescimento que assegure a neutralidade da arrecadação em alguns anos. Uma das exigências é que o desenho do IVA no Brasil preveja a adoção de mecanismos efetivos de recuperação de créditos.

SALÁRIOS

Entre os técnicos do Ministério da Economia, há uma avaliação de que é possível aprovar projeto que altere um dos problemas no funcionalismo público: os salários iniciais elevados e o prazo curto para se chegar no topo das carreiras.

Com as discrepâncias salariais e a movimentação recente de reajuste maior dos salários dos integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministério Público e Congresso, o debate tende a se misturar com a pressão pela reforma administrativa.

“O Brasil carece de reformas estruturantes há muito tempo. Entra governo, sai governo e as mudanças, cruciais, sempre acabam ficando para trás por motivos diversos”, diz o diretor-presidente do Centro de Liderança Pública, Tadeu Barros. Para ele, não existe “trade off” (troca) de prioridade entre a reforma tributária e a legislativa. “O Legislativo tem a obrigação de priorizar no ciclo que se inicia em 2023 uma agenda voltada à sustentabilidade, com regulação do mercado de carbono como prioridade, além de maior justiça fiscal, por meio da reforma tributária, e da modernização do setor público com uma reforma”, diz. O CLP apresentou documento com propostas de reformas para o próximo governo.

Ao comentar reportagem do Estadão que mostrava um custo de R$ 281 bilhões de herança para o próximo presidente, o ex-ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, que propôs o teto de gastos, avaliou que o governo que assumir o País em 2023 precisará encontrar dinheiro para cobrir os gastos bilionários e eleitoreiros de agora. Segundo ele, esse quadro cria condições para se avançar na reforma administrativa. •