Do Suplemento Feminino para Capitu: uma carta ao novo projeto
São Paulo, 11 de dezembro de 2018
Era setembro de 1953 quando nasci, Capitu. Cheguei antes mesmo de o casamento poder ser dissolvido pelo divórcio. Muitas mulheres cruzaram minhas páginas. Sim, é estranho, mas vivi no papel, ao contrário de você, que já abre os olhos no intangível. Minha primeira editora se chamava Maria do Carmo de Almeida (ou Carmen), a Capitu, de quem você herdou o nome. Ela foi uma das primeiras mulheres nas redações no País, sabia? Num período em que o voto feminino caminhava para se consolidar como um direito pleno, só possível na Constituição de 1946, aquilo foi revolução.
Continuar esse meu legado, agora no digital, é muita responsabilidade, eu sei. Mas não se preocupe. Dezembro me traz memórias de que é possível ir além. Aliás, foi neste mês que comemorei minha milésima edição. E, coincidentemente, foi no dia 11, há sete anos, que me despedi após 3.131 publicações encartadas no Estado de S. Paulo. Mesmo dia em que você é lançado – em outro corpo e tempo.
Meu nascimento é estreitamente ligado ao trabalho de Capitu, a jornalista que assumiu este heterônimo por amar a personagem da literatura brasileira. Uma consequência das páginas que ela vinha publicando todas as sextas-feiras no jornal, na década de 1950. Quando me tornei um suplemento, minha equipe se restringia a uma repórter, uma cronista e uma fotógrafa. E muito do conteúdo vinha da França, de fotos a receitas de cozinha.
Antes de se despedir, em 1958, assinando texto sobre a participação feminina no jornalismo, a admiradora de Machado de Assis abraçou cronistas como Lygia Fagundes Telles, Cecília Meireles, Fernando Sabino, Perseu Abramo e Nilo Scalzo. Os chargistas e ilustradores Claudius e Jaguar em mim desenharam. Tempos depois, chegaram nomes como Carlos Vergueiro (discos) e Frederico Branco (notícias internacionais).
Mudei de direção e de formato. E me consolidei de fato pelas mãos de Maria Cecilia Vieira de Carvalho Mesquita, que me assumiu de corpo e alma a partir de abril de 1960.
Tenho recordações incríveis daquele ano. O encontro entre Maria Cecilia e Simone de Beauvoir, durante sua passagem pelo Brasil com o marido Jean-Paul Sartre, foi um deles. Rendeu uma bela capa, com entrevista e fotos exclusivas.
“Estamos longe ainda do momento em que a mulher deixará sua posição de inferioridade. Apesar dos progressos havidos, restam na própria mulher contradições que dificultam a sua libertação. A que trabalha quer ficar em casa e a doméstica quer trabalhar”, declarou em minhas páginas, à época, a escritora e ativista política. Naquela mesma edição, estavam a poeta Hilda Hilst, a cantora Maysa, a atriz Cacilda Becker, a artista plástica Maria Bonomi. Elas deram depoimentos para uma espécie de receita de homem bonito.
Até 1967, ano em que houve a redução do prazo para a aposentadoria da mulher, de 35 para 30 anos, continuei em tamanho tablóide, pequenininho. Depois cresci, virei standard, mas as 16 páginas que tinha tornaram-se 8. Anos depois, diminuí novamente. Já circulei às sextas-feiras e aos domingos, e tive impressão tipográfica e off-set. Foram muitas mudanças. Mulheres precisam se reinventar.
Nas minhas páginas, conversava com leitoras e leitores sobre moda, beleza, trabalhos manuais, gastronomia e o que mais coubesse em mim. Inclusive publicava cartas como esta, vindas de quem me folheava. Chegavam de 35 a 50 por dia. “A repercussão era tanta que nossos concursos de trabalhos manuais chegaram a ter 7 mil concorrentes”, lembra Maria Lúcia Fragata, que me editou a partir de julho 1967. Nosso contato durou 37 anos.
Foi Lucinha, inclusive, que mudou toda a equipe que me dava vida naquele ano – construída por cronistas homens, ela formou um grupo somente de mulheres, como antes, com exceção do fotógrafo. “Criamos uma seção de direitos da família, de jardinagem, de escolas e de medicina, apesar de médicos serem proibidos de dar entrevista naquela época. Seus nomes não saíam”, rememora.
Mas eu também reportava temas atuais para a época. Em 1964, acompanhei a exposição de Tarsila do Amaral, em Veneza. Hoje vejo que entre suas matérias de lançamento, Capitu, está uma entrevista com Beatriz Milhazes, uma das herdeiras da tradição de Tarsila. São lembranças bonitas. Naqueles anos, atravessamos transformações sociais e culturais do Brasil. Muito se assemelha aos dias de hoje.
Quando Lucinha se aposentou, a jornalista Roberta Sampaio passou a me editar. Ficou comigo por cerca de sete anos, saindo em dezembro de 2010. Sem contar outros cinco como repórter anteriormente. “Havia limitações de ousar muito. Mas, mesmo assim, dava para dar uma arejada, incluir pautas novas, seções novas, trazer mais matéria de mercado de trabalho e economia”, resgata Roberta, que até hoje trabalha com as palavras no Rio de Janeiro.
A partir dali, não caminhei muito. Cortes aconteceram, equipes ficaram ainda mais reduzidas. Até que, alguns meses depois, mirei o fim. “Era um período de relativo abandono que não combinava com o prestígio que o Feminino ainda mantinha”, lamenta Angélica Sales, minha última editora.
Vivi muita coisa, minha amiga. E vejo que o mundo está mudando. À época, surgi corajosa em meio a um jornalismo de poucas mulheres. Por isso, fico feliz em vê-la germinar ao lado de tantas. “Hoje, as saias são comuns nas redações…”, disse-me um dia Carmen, a Capitu. Quando nasci, elas eram raras.
Beijos e boa sorte.
Feminino
Pesquisa e texto de Caio Faheina