Imaginar robôs substituindo trabalhadores beirava a ficção científica quando o Congresso Nacional pensou no tema pela primeira vez, durante a Assembleia Constituinte de 1988. O inciso XXVII do artigo 7º previa uma lei complementar para regulamentar como seria a proteção para os empregados frente à automação. Três décadas depois, no entanto, ainda não foi aprovado nenhum projeto de lei para definir a questão.
Pelo menos 11 projetos de lei passaram pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, 10 deles arquivados. O mais recente, ainda em tramitação, foi apresentado em fevereiro deste ano pelo deputado federal Wolney Queiroz (PDT-PE). O Projeto de Lei 1091/2019 estabelece que as empresas que optarem pela automação devem negociar com os trabalhadores afetados pela medida. As demissões em massa estariam proibidas e, caso algum funcionário fosse demitido pelo avanço das máquinas, deveria receber em dobro a rescisão trabalhista.
O projeto de Wolney Queiroz precisa ser aprovado em quatro comissões na Câmara dos Deputados e, caso não receba nenhum recurso para ser visto em Plenário, seguirá para o Senado. Até agora, porém, o texto não teve nem relator escolhido na primeira comissão da Câmara, a de Seguridade Social e Família (CSSF).
A lei que falta
Para o doutor em Direito Constitucional Marthius Sávio Cavalcanti Lobato, a proteção constitucional não diz respeito apenas à manutenção dos empregos, mas também a aspectos de segurança do trabalho que falem sobre acidentes com o maquinário.
Lobato ressalta ainda que as leis devem nortear pontos comuns aos trabalhadores, como critérios para demissão e responsabilidade pela recolocação dos profissionais no mercado. Para o especialista, os sindicatos e os empregadores devem promover, conjuntamente, a capacitação do funcionário para uma nova atividade. “Não adianta o trabalhador receber o dobro da verba rescisória e ter que custear sua reinserção no mercado de trabalho. Se ele sai da empresa A, não vai não arrumar emprego na mesma área na empresa B, porque provavelmente essa segunda empresa também vai ser automatizada para ser competitiva com as demais”, defende.
Ainda segundo Cavalcanti Lobato, as especificidades de cada tipo de função não poderiam ser cobertas por um projeto de lei único. “A transição não necessariamente vai ser igual para um trabalhador metalúrgico e um bancário. Então, a participação do sindicato é essencial”, explica Lobato.
Essa também é a visão de José Pastore, presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomercio de São Paulo. Ele cita o exemplo do setor bancário, que estabeleceu a capacitação constante por meio de negociações em convenções coletivas.
“Se as leis forem por esse caminho, de ajudar os trabalhadores a acompanharem as mudanças tecnológicas, serão muito bem-vindas e úteis”, afirma Pastore. “Mas se for para combater as inovações, é muito perverso. Na hora em que você inibe a inovação, inibe o crescimento econômico e com isso você conspira contra o trabalhador.”
O especialista critica, por exemplo, a lei 9956/2000 de Aldo Rebelo (PCdoB/SP), que exige que todas as bombas de postos de combustíveis tenham frentistas, diferente do que ocorre em outros países. Outro exemplo seriam as leis estaduais que não permitem a instalação de catracas eletrônicas nos ônibus. “Dizem que isso é pra proteger os cobradores, mas precisa ver se isso compensa. As prefeituras gastam uma quantidade gigantesca de subsídios de ônibus em grande parte devido à impossibilidade de inovar nesse campo”, defende.
De FHC a Wolney
Dentre os onze projetos de lei apresentados desde 1988, a proposta que foi mais longe foi a do então senador Fernando Henrique Cardoso, em 1991. O projeto foi aprovado na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado como um texto substitutivo do relator e enviado à Câmara dos Deputados. Já naquela Casa, outros oito projetos de lei correlatos foram apensados à proposta de FHC para tramitar em conjunto. Após passarem por três comissões e pela mão de diferentes relatores, ao longo de 17 anos, as propostas foram todas rejeitadas e arquivadas em 2009.
Os principais pontos do projeto de Fernando Henrique são:
- Empresas que optarem pela automação devem criar comissões paritárias com empregados para discutir capacitação e readaptação deles. Quanto mais velho o funcionário, maior seria a prioridade dele na realocação;
- Quem não pudesse ser reaproveitado na empresa seria encaminhado a uma central de reciclagem e recolocação, mantida pelo sindicato de sua categoria;
- As demissões que fossem consequência da automação não seriam consideradas por justa causa;
- O governo federal deve incentivar centros de pesquisa e comissões de estudo interdisciplinares para orientar o recapacitação de trabalhadores;
- As escolas de ensino fundamental e médio deveriam incluir nos currículos obrigatórios disciplinas que abordem o avanço da tecnologia e os efeitos disso na economia
Confira na linha do tempo os principais pontos defendidos pelos deputados federais durante os últimos anos:
Elton Bomfim/Agência Câmara
Karin Schmidt/AMM
Lourenço Bonifácio
Assembleia Legislativa de Santa Catarina
Waldemir Barreto/Agência Senado
Waldemir Barreto/Agência Senado
Marcelle Cristinne/ASN
Lourenço Bonifácio
Moreira Mariz/Agência Senado
Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados
Omissão Política
Para Miguel Torres, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e Mogi das Cruzes, o diálogo com os parlamentares é difícil. “Querendo ou não, gostando ou não, a grande maioria dos parlamentares não são trabalhadores”, afirmou.
O representante dos metalúrgicos destacou que os trabalhadores têm sido “atacados” pelas recentes aprovações na legislação. Nessa conta entram a implementação da Reforma Trabalhista e da Previdência. Mesmo com a “dificuldade de pedir regulamentação”, Torres defende que o sindicato continue o debate com os parlamentares. “Temos uma representação pequena ainda dos trabalhadores dentro do Congresso Nacional, mas nós temos que estar articulando e não jogar a toalha”, disse.
Segundo o sindicalista, os trabalhadores precisam estar atentos e se preparar para um novo contexto de tecnologia no trabalho, além da eventual substituição. Ele opina, contudo, que o País não está preparado para essa transição. “Não adianta ter uma tecnologia 4.0 só desempregando e deixar a população sem oportunidade de estar participando do mundo do trabalho”, alegou.
Esse despreparo para as novas tendências de trabalho resulta em uma perspectiva futura “um pouco assustadora” para os metalúrgicos, categoria historicamente muito afetada pela automatização de processos na indústria. “Temos que achar caminhos para estar participando e também estar dividindo essa responsabilidade com empresários e trabalhadores para um futuro melhor”, declarou. Para tal, ele defendeu a maior participação conjunta de sindicatos e empresários de forma que as posições de cada um sejam respeitadas e tenham como objetivo um “país melhor”.
Para Marthius Sávio Cavalcanti Lobato, o fracasso de todos os projetos de lei desde 1990 é sinal do forte lobby do setor empresarial dentro do parlamento. “Tem que ter uma reeducação do setor econômico para mostrar que ele pode ter o seu avanço tecnológico, garantir o lucro, desde que respeite a própria estrutura constitucional da dignidade humana da própria sociedade”, defende. Confira o trecho completo sobre o tema:
Esforço em vão
No ano passado, o Executivo até tentou se inteirar do tema da automação por meio de um comitê especial. A iniciativa não veio por acaso: foi após a aprovação da Reforma Trabalhista em 2017, e em um momento que se especulava sobre a então distante Reforma da Previdência.
Com a questão trabalhista em alta, o extinto Ministério do Trabalho lançou o Comitê de Estudos Avançados sobre o Futuro do Trabalho, criado para “discutir e propor formas de proteção ao emprego diante do avanço da automação”.
O grupo foi formado por 23 representantes dos poderes Executivo e Judiciário, de instituições acadêmicas, sindicatos e entidades de classe. O comitê chegou a se reunir cinco vezes e realizar três audiências públicas, além de ter disponibilizado um canal aberto por e-mail para receber sugestões da população.
Com a incorporação da pasta no Ministério da Economia, contudo, as conclusões do grupo perderam prioridade e foram adiadas. Ao Estadão QR, o Ministério afirmou que o relatório de conclusão do comitê será encaminhado para votação ao Conselho Nacional do Trabalho (CNT), um colegiado vinculado a própria pasta.
O CNT é formado por dez membros do Ministério, dez representantes dos empregadores e dez representantes dos trabalhadores. Não há, entretanto, previsão para a votação do relatório de conclusão ou de sua divulgação.