O nome da banda já diz tudo: Jovens Americanos Desafiando a Alta Tecnologia. Esse é o lema por trás da sigla YACHT. Prestes a lançar seu sétimo disco, cujo nome vem sendo mantido em segredo dos fãs, o grupo americano de synthpop se tornou conhecido por usar, de forma inusitada, a tecnologia para produzir e divulgar a sua música.
No álbum novo, o trio formado por Claire L. Evans, Jona Bechtolt e Rob Kieswetter alimentou um algoritmo de machine learning com tudo que já havia produzido. Na sequência, os músicos selecionaram os melhores trechos gerados pela máquina para recompor as músicas, desta vez de maneira tradicional.
A Inteligência Artificial aparece de várias formas no disco. Em Downtown (Dancing), primeiro single do álbum, o grupo se mantém fiel à disco music. Mas fazendo uso do sintetizador neural do Google, o NSynth, para construir as melodias. As letras foram compostas por um algoritmo e o vídeo, feito utilizando uma fonte experimental, assinada pelo designer Barney McCann.
O Estadão QR conversou com Claire L. Evans, integrante da banda e autora do livro Broad Band: The Untold Story of the Women who Made the Internet. Confira o que ela falou sobre o novo disco e o futuro da música com a inteligência artificial:
Como vocês usaram a Inteligência Artificial em seu novo projeto? Não é somente nas músicas, correto? É também nas fontes, imagens e letras.
Nós vimos o processo de produzir e lançar um álbum como uma oportunidade de explorar como a Inteligência Artificial pode ser aplicada para criar melodia, texto, fotografia, design, vídeo e arte. Não era uma solução simples: para cada pedaço do quebra-cabeça, tínhamos de encontrar um processo de aprendizado único para a máquina que pudesse gerar um material interessante e ainda nos permitir ter controle suficiente para criar algo que parecesse puramente nosso. No caso da música, isso significava usar um modelo algorítmico para explorar o nosso próprio catálogo prévio de músicas e encontrar melodias escondidas entre as notas das canções antigas. Compilamos tudo em músicas que depois tocamos e gravamos da forma tradicional.
O Estadão QR entrevistou recentemente o artista plástico Mario Klingemann, responsável pelas imagens do material de divulgação do álbum novo. Como foi essa experiência?
Sim, Mario criou as imagens da banda para este álbum. Somos grandes fãs do trabalho dele há anos e ficamos muito animados quando o Mario concordou em colaborar conosco. É uma maneira incomum de fazer fotografias: ensinar como os nossos rostos se parecem para um modelo de machine learning, para que ele possa os alucinar de novo a partir do nada. A imagem final mistura nossos rostos em híbridos mutados, permitindo que nos tornemos versões infinitas da mesma pessoa. As imagens são hilárias e, às vezes, assustadoras, como sonhos.
Por que a escolha de usar essa tecnologia?
Estávamos interessados na qualidade reflexiva do machine learning, nas maneiras como essa tecnologia pode nos ajudar a entender a nós mesmos. E também no seu potencial criativo puro, ou seja, como a IA poderia nos ajudar a criar algo completamente novo. Além disso, sabemos que se trata de uma tecnologia importante, que está ativamente mudando o mundo à nossa volta. Queríamos entender mais claramente esse processo. Para nós, a única maneira de compreender a tecnologia é tentar fazer algo com ela.
Usar o machine learning para fazer música hoje é como usar um sintetizador no começo dos anos 80, é transformar uma possível ameaça em uma oportunidade de criar um tipo completamente diferente de música.
Claire L. Evans
Vocês acham que a IA pode substituir seres humanos no processo de criação musical? Ou a tecnologia é apenas uma ferramenta para novas possibilidades?
É importante lembrar que música é muito mais do que dados. Uma música representa o ponto de vista único de um artista, sua perspectiva de mundo, seus valores, de onde ele vem. Nós escutamos música porque isso nos permite compartilhar experiências através de gerações e de culturas. Pode ser que algum dia os sistemas de IA possam produzir músicas, mas nunca haverá um sistema que consiga reproduzir a função que a música tem na nossa sociedade. Usar o machine learning para fazer música hoje é como usar um sintetizador no começo dos anos 1980. É transformar uma possível ameaça em uma oportunidade de criar um tipo completamente diferente de música.
Em seu livro, você procura resgatar as mulheres que foram relegadas ao segundo plano na história da internet. Você acha que esse processo de apagamento feminino vem ocorrendo também no desenvolvimento da Inteligência Artificial?
Sim, tecnologia é uma área imensamente predominada por homens e a IA não é exceção. As implicações disso são assustadoras, especialmente por causa das maneiras em que as IA reforçam as tendências humanas enquanto simultaneamente as escondem por trás da evolução tecnológica. Nos Estados Unidos, estamos começando a ver aplicações nas áreas de policiamento e de imigração que são genuinamente assustadoras, uma consequência do desenvolvimento tecnológico em ambientes monoculturais com pouca contribuição das pessoas que podem ser prejudicadas. Tendo dito isso, existem muitas pessoas brilhantes escrevendo e pensando sobre os impactos sociais das IA, e grupos como o AI Now Institute (criado por duas mulheres!) que estão fazendo um ótimo trabalho em articular os problemas e responsabilizando o tamanho desse poder.
Vocês estão usando algumas ferramentas do Magenta, do Google. Qual a relação entre artistas e as pessoas que desenvolvem a tecnologia dessas grandes companhias?
Usamos um dos modelos de código aberto do Magenta para gerar padrões melódicos. Conseguimos desenvolver um relacionamento amigável com o time de cientistas da Magenta, com os quais tivemos muitas conversas filosóficas nos últimos anos. Tendo dito isso, as grandes companhias de tecnologia são os gatekeepers de como a IA é desenvolvida e aplicada. E nós achamos importante que os artistas se envolvam, tirem dúvidas e mergulhem nas ferramentas para encontrar aplicações subversivas para este tipo de tecnologia. Nem que seja para desmistificá-la para o restante das pessoas.