‘Uncanny Mirror’ na Bienal Mediacity, em Seul: face humana e grotesco na arte de Klingemann.

Inteligência Artificial é o próximo passo na evolução da arte?

O 'Estadão QR' conversou com artistas pioneiros na criação de obras com IA para entender como esse processo pode transformar a arte nos próximos anos

Não, a Inteligência Artificial não substituirá os artistas. Assim como as obras produzidas com auxílio das novas tecnologias não vão significar o fim da pintura ou da fotografia. O que está ocorrendo, sim, é uma transformação na arte. Mudança que já está chegando aos corredores de museus como o MoMA e o Barbican Centre e atraindo interesse em casas de leilão, caso da Christie’s e da Sotheby’s.

O principal modelo usado para gerar arte é o de Redes Generativas Adversárias (GAN) para machine learning, surgido em 2014 a partir da pesquisa de Ian Goodfellow, atualmente diretor de machine learning da Apple. Nesse modelo, duas redes neurais competem entre si, possibilitando a criação de novas imagens a partir de um banco de dados anterior. Já há até um nome para esse movimento, Ganism, proposto pelo desenvolvedor do Google, François Challet.

A artista Anna Ridler fotografou dez mil tulipas para sua obra Myriad.

O Estadão QR conversou com três artistas pioneiros sobre como é o processo criativo em parceria com a IA. São eles: 

  • Anna Ridler: artista britânica que desenvolveu um trabalho com GAN relacionando a volatilidade do mercado de criptomoedas com a Febre das Tulipas, na Holanda do século 17, considerada a primeira bolha especulativa da história.
  • Gauthier Vernier: artista francês, que faz parte do coletivo Obvious (junto com os amigos Hugo Caselles-Dupré e Pierre Fautrel). O grupo foi responsável pela primeira venda de uma obra feita com IA. O quadro Edmond de Belamy foi vendido na Christie’s por US$ 432 mil, em outubro de 2018, com o valor 40 vezes maior do que o esperado. A obra faz parte da série Belamy Family.
  • Mario Klingemann: artista alemão, pioneiro no uso de Inteligência Artificial. Ele foi residente do Google no programa Arts & Culture e já teve suas obras expostas no Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York. Em Uncanny Mirror, a inteligência artificial interpreta e distorce o rosto do observador, criando um aspecto de espelho desconfortável, como sugere o título da obra.

Como é o processo de criação usando a inteligência artificial?

Anna Ridler: A Inteligência Artificial é um processo e uma ferramenta. E eu não teria sido capaz de produzir facilmente as imagens que estão no vídeo (da obra Mosaic Virus) ou qualquer outra forma de animação sem usar essa ferramenta. Mas também é um processo porque, para criar a peça, tenho de comprar as tulipas, rotular os objetos, construir o modelo e preparar o conjunto de dados. Essa maneira interativa de aprender mais sobre o que você está fazendo e sobre a maneira como você vê o mundo é muito legal. 

Gauthier Vernier: Esse algoritmo é muito poderoso e também tem muitas implicações, porque é como se fosse uma criatividade expressa por uma máquina ou pelo menos uma atividade inventada, porque cria novas imagens que são únicas e totalmente novas. Quando decidimos criar a arte com IA, pensamos na peça  mais comum, algo que falasse com todos e escolhemos a arte clássica europeia. Decidimos imprimir em uma tela e emoldurar. Acho que fez diferença o fato de que a peça é física e não virtual. Decidimos assiná-la com a fórmula do algoritmo para lhe dar crédito – pois foi o algoritmo quem realmente criou a imagem. Basicamente, é assim que trabalhamos. 

O artista Mario Klingemann ao lado de um dos rostos gerados pela instalação “Memories of Passerby I”

Mario Klingemann: Quando uma máquina olha para uma imagem ela pode imitar algumas partes da percepção humana, em particular quando se trata de recursos superficiais como bordas, cores ou texturas. O que a IA está perdendo agora nesse processo são todos os aspectos subconscientes e emocionais que os humanos acrescentam à comparação, mas isso não é porque a máquina não tem alma, mas porque esses aspectos são muitas vezes difíceis de quantificar e há uma questão pessoal, de gosto.

Você vê uma relação entre o trabalho do Obvious e os ready-made de Duchamp?

Gauthier Vernier: Existe esse tipo de comparação porque é um novo tipo de arte. Na verdade, nosso trabalho questiona o que é arte. Basicamente, pegamos algo que era principalmente do mundo da tecnologia e da pesquisa e dissemos ‘ok, isso é capaz de criar’. Então, somos capazes de criar coisas com isso. É uma nova ferramenta para os artistas usarem e criarem novos tipos de arte. Essa foi a nossa declaração. E, na época, não era tão óbvio. Agora que a Christie’s realmente acreditou no nosso trabalho, que o mercado respondeu positivamente, acho que podemos considerar como arte.

Acredito que será como a fotografia que veio e modificou, até certo ponto, os retratos, mas as pessoas ainda pintam imagens de pessoas, só que elas fazem isso de uma maneira diferente.

Anna Ridler

Pode-se dizer que IA é o futuro da arte?

Anna Ridler: Mais e mais pessoas vão usar IA, o que não é necessariamente uma coisa ruim. Ao mesmo tempo em que nem todo mundo vai usar, então, não acho que seria para todos. Acredito que será como a fotografia que veio e modificou, até certo ponto, os retratos, mas as pessoas ainda pintam imagens de pessoas, só que elas fazem isso de uma maneira diferente. Então, acho que alguns artistas serão atraídos pela IA por causa do que ela pode fazer. Outros simplesmente não terão interesse. E isso é uma coisa boa.

Para Gauthier Vernier, o trabalho do coletivo Obvious questiona o que é arte.

Gauthier Vernier: Esses algoritmos são tão poderosos porque permitem que um novo tipo de artista se expresse e utilizando uma nova ferramenta para participar de um movimento artístico. Acho que é exatamente o mesmo que aconteceu com a câmera fotográfica. Quando a câmera saiu, eram basicamente engenheiros que a estavam usando. Eles começaram a fazer suas primeiras fotos e decidiram que eram tão bonitas que poderiam ser consideradas arte. E as pessoas no começo disseram que isso arruinaria os artistas. O que vemos anos depois é que a pintura ainda existe. Ela é tão importante na cultura que não vai desaparecer. Talvez possamos esperar também que a pintura vá fazer algo que a IA não é capaz de fazer. 

Mario Klingemann: Eu não diria que é o futuro da arte, mas é definitivamente um novo meio, com novas formas de expressão que ocupará um lugar no topo. Não substituirá outras mídias como pintura ou fotografia, mas abrirá novos caminhos. Neste momento, ela se beneficia da novidade e da fascinação pela IA em geral, mas acredito que a atenção é merecida, pois a IA mudará fundamentalmente as nossas vidas em um futuro próximo e a arte não será poupada disso. Agora que se tornou muito mais fácil usar a IA, a porta está aberta a pessoas com um background menos técnico que vêm com perguntas muito diferentes. Esperamos trazer de volta o foco no conteúdo e nas histórias que podem ser criadas e contadas de diferentes maneiras.

A arte deve nos desafiar, nos fazer questionar e até recusar. E enquanto a AI é muito boa em nos dar mais do mesmo, mas um pouco diferente, ainda levará algum tempo até que possa realmente entender a natureza humana e nos contar histórias significativas.

Mario Klingemann

Essa tecnologia não pode contribuir para uma produção em massa de arte que acabe por substituir o artista?

Anna Ridler: Se eu fosse designer, ficaria um pouco preocupada com o que acontecerá daqui 50 anos. Mas o valor da arte é muito subjetivo. As pessoas pagam caro por coisas como um triângulo em uma página, por causa de uma superestrutura que diz se algo é valioso ou não. Mas quando você começa a olhar para alguns dos outros trabalhos da indústria criativa, em que há muito mais um trabalho de repetição, acredito que a IA otimize alguns desses trabalhos, tornando-os mais fáceis ou menos valiosos. Entretanto, uma das coisas mais importantes sobre o machine learning é que o maior impacto dele sobre a indústria criativa são os algoritmos de recomendação, como os da Netflix, no tipo de trabalho está sendo produzido. Então é interessante pensar em que tipo de arte as pessoas estão vendo, que tipo de programa é comissionado, que tipo de música é feita por causa do que é popular?

Novas obras do coletivo Obvious tem como inspiração a arte japonesa.

Gauthier Vernier: Não achamos que a IA possa substituir os seres humanos. O que acreditamos é que se trata apenas de uma ferramenta muito poderosa que pode ser usada para catalisar nossa criatividade. Mas você não vai substituir os humanos porque, quando você vê todo o processo, o humano está cuidando de grande parte. E mais importante: o humano é aquele que defende a declaração artística. Quando o algoritmo cria alguma coisa, ele não cria com um propósito. Nós damos o propósito. Por isso é uma espécie de colaboração entre a máquina e o humano. Mas o humano não pode ser substituído nessa colaboração. 

Mario Klingemann: Arte é algo que está em permanente evolução. Por outro lado, quando se trata de obter atenção ou de nos dar o que queremos, a IA tem o potencial de otimizar os trabalhos de tal forma que nos parecerá muito interessante, talvez até mais do que o que os artistas humanos criam. Então, sim, artistas que criam trabalhos repetitivos com uma receita simples podem ter alguma competição, já que é nisso que a máquina se destaca. Mas a questão é se ainda é arte, se está apenas tentando agradar nossos sentidos. A arte deve nos desafiar, nos fazer questionar e até recusar. E enquanto a AI é muito boa em nos dar mais do mesmo, mas um pouco diferente, ainda levará algum tempo até que possa realmente entender a natureza humana e nos contar histórias significativas.