Direto ao ponto
02:31 Entenda o que é o núcleo accumbens
23:16 A palavra ’fã’ é uma abreviação de ’fanático’
25:15 Minha Vó Tá Certa? Crianças e adolescentes que têm ídolos devem despertar preocupação?
28:03 Manja do Assunto – Péricles: ”Me tornei fã da Camila Cabello assim que ela saiu do Fifth Harmony”
31:39 Ajuda Aqui! Violência entre torcidas e governos que exploram o fanatismo é tema de redações
33:28 Prêmio IgNobel: música influencia na recuperação de ratos que passaram por transplante
Como funciona o cérebro de um fã
Apresentadores: Carla Menezes e Diego Kerber
(Som de “bip”)
Carla Menezes: (Gravação de Carla emocionada na fila para o show do Shawn Mendes). Só consegui chegar aqui agora… faltam três minutos para abrir o portão e, sinceramente, não tem como superar, não tem roteiro nenhum no mundo que supere isso aqui…
(Som de “bip”)
C: É, mas superou. O episódio de hoje deveria ter começado de um jeito diferente. Como vocês ouviram, eu já estava no Allianz Parque, aqui em São Paulo, na fila para o show do Shawn Mendes que, bem, não aconteceu.
Diego Kerber: Meus pêsames, Carla!
(Vinheta: trilha sonora acompanhada de locução)
“Você está ouvindo Choque da Uva, a ciência no cotidiano!”
(Sobe som da música There’s Nothing Holdin’ Me Back, de Shawn Mendes)
C: O que vem à sua cabeça quando você pensa em fãs? É uma fila de pessoas acampadas em frente a um estádio meses antes de um show? É histeria, gritaria, choro, confusão?
D: Bom, para além dos estereótipos, todo mundo é fã de alguma coisa. E a ciência tem, sim, uma explicação para isso.
C: Eu sou a Carla Menezes.
D: E eu sou Diego Kerber.
C: E o episódio de hoje é sobre uma das experiências mais universais do ser humano: a jornada de um fã. Eu mesma tive um monte de ídolos nessa vida. Vocês ouviram que eu comecei esse episódio do Choque da Uva lá no show do Shawn Mendes, que eu fui, mas ele não foi. O Shawn cancelou o show de última hora.
D: Brazil, I’m devastated!
(Sobe som da música There’s Nothing Holdin’ Me Back, de Shawn Mendes)
C: Mas para entender as razões científicas que fizeram eu e outras 54.999 pessoas irmos até lá para ver o Shawn e acabarmos arrasadas quando o show foi cancelado, é preciso voltar um pouquinho.
D: Conta para a gente a sua jornada de fã do Shawn, Carla! Só uma informação para quem está ouvindo o episódio e não conhece o Shawn Mendes: ele é um cantor canadense que ficou famoso depois de postar algumas versões cover de músicas na Internet.
C: Quem não conhece, está na hora de conhecer, né. Eu conheci o Shawn em 2015, quando ele já tinha começado a gravar músicas autorais. Ele começou lá no Vine tem um tempinho e depois começou com as músicas dele mesmo. Vi uma galera comentar na minha timeline do Twitter que ele era o “novo Justin Bieber”. Aí fiquei curiosa, procurei no YouTube e achei o clipe de Stitches. Depois disso, já fiquei com o refrão na cabeça.
D: Foi tipo amor à primeira vista, né, Carla?
C: Foi. Eu fiquei com “I’ll be Needing Stitches” (Carla canta esse refrão) na cabeça.
(Entra trecho da música Stitches, de Shawn Mendes)
“And now that I’m without your kisses
I’ll be needing stitches
Just like a moth drawn to a flame”
D: Mas é bem isso mesmo. Quando a gente vê um filme ou ouve uma música de que gosta muito logo de cara, na nossa cabeça acontece um processo bem parecido com aquele que rola quando a gente se apaixona, sabia?
C: Uma região do nosso cérebro do tamanho de um grãozinho de café, chamada núcleo accumbens, é ativada quando o fã se vê diante de um conteúdo que ele gosta. Essa partezinha está associada à avaliação de recompensa e ao sentimento de prazer e logo faz com que a gente queira ver ou ouvir mais daquilo.
D: Pera aí, núcleo accumbens? Acho que chegou a hora do Momento Faraday.
(Vinheta: som de disco voltando, seguido de narração)
“Momento Faraday!”
Tiago Bortolini: O núcleo accumbens tem um papel central no que a gente chama de circuitaria de recompensa.
D: Esse que está falando é o neurocientista Tiago Bortolini, do Instituto D’Or, que estuda justamente psicologia evolutiva.
Tiago Bortolini: (especialista continua a explicação) Esse é um termo genérico utilizado para explicar todas as regiões cerebrais que estão relacionadas ao processamento de recompensas. Essas recompensas podem ser desde comer um chocolate gostoso até ver um show da banda que você gosta, ir ao jogo do seu time de futebol, etc. Todos esses aspectos positivos relacionados à nossa vida parecem ser processados de alguma forma por essa circuitaria. E o núcleo accumbens recebe vários neurônios dopaminérgicos, ou seja, os neurônios que vêm lá de outra região, que é o VTA, que é onde a dopamina é produzida. E aí eles projetam para o núcleo accumbens. Então, o papel do accumbens é muito relacionado à percepção de pistas que estão relacionadas a algum evento positivo. Então, o papel da dopamina e do núcleo accumbens está muito mais relacionado à antecipação de uma recompensa do que de fato ao consumo dessa recompensa. No caso dos fãs ou do torcedor de futebol, a dopamina está mais relacionada com essa antecipação ao evento. E a endorfina, que seria um componente mais opioide, um componente endógeno, relacionado ao prazer, estaria mais ativa e sendo liberada durante o consumo dessa recompensa. Então, o accumbens é muito importante principalmente para essa questão da antecipação de recompensas. Você gera uma expectativa, tem um disparo de dopamina muito grande e, quando você consome aquela recompensa, você tem um aumento de endorfina e de outros opióides.
D: Pela explicação, provavelmente o seu núcleo accumbens, Carla, foi ativado quando você ouviu Stitches, né.
C: Provavelmente. A música ficou na minha cabeça e, assim, pouco tempo depois, eu fui procurar o resto do álbum e viciei. De lá para cá, eu tenho acompanhado todos os lançamentos.
D: E aí também entram os hormônios, como o Tiago falou agora pouco, inclusive! É como se o seu corpo antecipasse o prazer que ele sabe que você vai sentir quando ouvir as músicas do Shawn de novo e disparasse uma injeção de dopamina.
C: (interrompe) Para quem não sabe, dopamina é aquele neurotransmissor conhecido como “mediador do bem-estar”.
D: Exato! Daí o seu cérebro avalia o comportamento que desencadeou essa sensação de prazer como algo positivo e sinaliza para outras regiões repetirem essa ação. É como se o seu corpo entrasse em loop em busca desse comportamento.
C: Olha, Diego, já que é assim, vou confessar que eu obedeço muito os sinais do meu corpo! (risos de Diego) Porque as músicas do Shawn estão sempre entre as mais ouvidas do meu Spotify. Mas o ponto alto da minha jornada de fã foi mesmo o quase show dele aqui em São Paulo. Quase show!
D: Que tristeza!
C: (risos) Meus batimentos cardíacos chegaram a 184 por minuto na hora que o portão deveria abrir. Mas nunca abriu.
D: Força, guerreira!
(Entra conversa do apresentador Silvio Santos com um garoto: “Você prefere que eu dou para você R$ 500 ou você prefere tirar uma fotografia junto com o conjunto do Raça Negra?”
Criança: “Fotografia junto com o Raça Negra”.)
D: Carla, acho que essa sua história é um exemplo de que não é preciso muito para se tornar fã. Às vezes, basta assistir a um filme ou a um clipe, ler um livro, ouvir uma música, ver um vídeo no YouTube ou até um Story no Instagram que vai desaparecer em 24 horas. Quando essa conexão entre fã e ídolo acontece, não tem mais jeito.
C: E essa conexão pode acontecer com um cantor ou cantora, um ator ou atriz, um time de futebol…
D: Uma escola de samba, uma novela, um reality show e até um game! Provavelmente você já ouviu falar de Minecraft, que é aquele famoso lego digital que reúne fãs de todas as idades ao redor do mundo.
C: E a gente se pergunta: mas como pessoas de culturas, idades e estilo de vida às vezes superdiferentes compartilham ídolos? É meio louco você pensar nisso, né?
D: Exato.
C: As pessoas são tão diferentes.
D: Aham. Será que existe algum mecanismo comum que permita que você, Carla, por exemplo, nascida no Ceará, admire tanto o Shawn Mendes quanto alguém que nasceu lá em Xangai, na China, e é dez anos mais velha que você?
C: Desde o século passado, com a consolidação da cultura de massa, as celebridades estão acostumadas com os grandes grupos de fãs que acompanham suas carreiras ao redor do mundo.
D: Greta Garbo, Carmen Miranda e Marilyn Monroe, por exemplo, arrastaram uma legião de espectadores para os cinemas nas décadas de 1940 e 1950.
C: Na música, o Elvis Presley, os Beatles e o Bob Dylan fizeram muito sucesso entre os jovens de todo o mundo nos anos 1950 e 1960.
D: E o mais interessante disso, Carla, é que esses ídolos também marcaram o estilo de vida das pessoas. O que tem de vô que usava topete por causa do Elvis Presley não está escrito!
C: Não é só vô, não, viu! Eu, noveleira que sou, usei muito as pulseiras da Jade, personagem da Giovanna Antonelli, na novela O Clone. “Inshalá, muito ouro”!
D: (risos) Mas essa coisa de se espelhar em alguém não vem de hoje, nem do século passado. Se agora as pessoas imitam celebridades, antigamente as referências eram membros da Igreja e da monarquia.
C: Inclusive lembrei de uma história aqui. Em 1808, várias mulheres do Rio de Janeiro rasparam o cabelo depois que Carlota Joaquina chegou careca na cidade. Elas achavam que estavam copiando a última moda da Corte portuguesa, mas, na verdade, o que aconteceu foi que a rainha pegou piolho na viagem de navio para o Brasil.
D: E o pior é que alguns cientistas acreditam que isso pode ser explicado por um fenômeno cerebral. Você sabia que a gente tem um neurônio espelho?
C: E o que é isso, menino? (risos)
D: Pois é, isso mesmo! Neurônio espelho. Quem explica isso para gente é novamente o neurocientista Tiago Bortolini.
Tiago Bortolini: Essa questão dos neurônios espelho surgiu na década de 1990. Foi uma descoberta que uns italianos fizeram, vendo que alguns neurônios em regiões específicas, relacionadas à percepção de movimento, respondiam quando os macacos viam alguém fazendo um movimento semelhante ao que eles faziam. Então, essa teoria desses neurônios gerou uma grande esperança na neurociência para explicar várias coisas, como a mente humana, a questão da imitação. Provavelmente, esse mecanismo dos neurônios espelhos está relacionado a um comportamento de imitação, porque ele parece ser muito mais ligado ao aspecto motor do que a um aspecto afetivo, por exemplo, de uma relação de ídolo e fã. É uma teoria que hoje em dia está mais sendo discutida. Mas ainda não há um consenso de que ela realmente é importante para esses processos de empatia e de identificação.
(Entra trecho da música “Sou fã”, de Cristian e Cristiano)
“Sou fã do seu jeito
Sou fã da sua roupa
Sou fã desse sorriso”
(Entra trecho da música “Fã”, de Ivete Sangalo)
“Olá, eu sou sua fã
A número 1, sou sua fã
Não durmo direito, não como, não bebo… só vivo de te ver passar
Você realiza o meu sonho, é a minha razão de sonhar!!!
Olá, eu sou sua fã”
C: Mas, para além da biologia, a reunião de um determinado grupo de pessoas em torno de um mesmo artista ou produto, o chamado fandom, também está muito ligada à necessidade de fazer parte de algo, de aceitação mesmo… não é a toa que quem estuda esse fenômeno o descreve como uma cultura, a cultura de fãs. Mas o que será que faz com que um fã se identifique com um ídolo? A Adriana Amaral, que coordena o Cultpop, um grupo de pesquisa em cultura pop, comunicação e tecnologias da Unisinos, vai explicar melhor para a gente.
Adriana Amaral: Olha, são vários elementos. Geralmente, não há exatamente padrões em relação a isso, mas aquele produto tem que dizer alguma coisa sobre a vida pessoal, sobre a filosofia, sobre ideologia da pessoa ou aquela estética vai atrair, vai agradar mais a pessoa. Não há exatamente um padrão. A gente vai ver fenômenos que são, por exemplo, transculturais, como é o caso do k-pop. Em tese, os outras países não teriam com o que se identificar no k-pop. É algo específico, criado na Coreia. Mas o k-pop é um fenômeno mundial. Como isso se dá? Porque há alguns elementos naquela cultura que atraem as pessoas. Pode ser pelas letras, pode ser pela sonoridade, pode ser pelos próprios artistas, pode ser pelo modo como é conduzido. Então, vários pesquisadores têm discutido muito a questão da cultura, né. Há elementos que são universais.
D: Quando a gente fala em fãs, é natural pensar em fãs de cantores e celebridades no geral.
C: É, e é aí que a gente esquece de um tipo de fã que certamente todos nós conhecemos – ou somos: os fãs de futebol.
D: A Adriana explica.
Adriana Amaral: Em alguns momentos, há uma diferença em como a mídia trata torcedores de futebol, que também são fãs, e os fãs do Shawn Mendes. Talvez pelo futebol ser algo mais relacionado ao masculino. Então, tem essa questão de gênero.
D: As torcidas são um fenômeno que, inclusive, já foi analisado biologicamente.
(Entra áudio de um torcedor do Flamengo na final da Copa Libertadores da América 2019)
“Flamengo, pra mim, é família, é tudo, é amor, é paixão, é raça, é união de pai e filho por esse clube. E agora eu vou ganhar mais uma vez, a gente vai ser bicampeão da Libertadores, se Deus quiser”
C: Você acabou de ouvir um torcedor do Flamengo. Notou que ele disse “vou ganhar” e “a gente vai ser campeão”, no plural mesmo, como se ele realmente estivesse dentro de campo fazendo os gols?
D: Isso acontece por causa daqueles neurônios espelhos que a gente explicou lá no início do episódio. Eles fazem com que a gente consiga se colocar no lugar de outras pessoas e imaginar o que elas estão passando em um determinado momento.
C: Nesse caso, um torcedor, quando está diante da TV ou no estádio vendo o time do coração jogar, pode ter sensações muito parecidas com as que o camisa 10 está tendo lá no campo.
D: A adrenalina é liberada e faz com que o coração bata mais forte e o sangue seja desviado para as partes mais importantes do corpo, como o próprio coração e os músculos.
(Entra áudio de um torcedor do Flamengo na final da Copa Libertadores da América 2019)
“Estou passando mal, estou passando mal, não estou aguentando, eu nunca vi, só vi um Brasileiro e duas Copas do Brasil, eu estou passando mal…Isso é o Flamengo”.
C: Sabe quando você sente aquele frio na barriga, as famosas borboletas no estômago? (Carla canta: “Borboletas sempre voltam…” (trecho da música “Borboletas”, da dupla Victor & Leo) (risos de Carla e Diego). Isso acontece porque o sangue que deveria estar circulando no sistema digestivo é direcionado justamente para o coração e para os músculos.
D: E tem um outro fator em jogo aí. Quando o time perde, o cérebro produz cortisol, um hormônio que é liberado no nosso corpo quando a gente está sob estresse.
C: É só lembrar de quando a gente perdeu por 7 a 1 na Copa de 2014, né?
D: Nem me lembra disso.
C: Dava para sentir o clima de derrota no ar.
D: Mas também tem um lado positivo, viu? Quando o time está jogando bem, o cérebro libera a dopamina, da qual falamos no começo do episódio.
C: Se o placar for bom para o seu time, a dopamina vai regular o seu cérebro para que você tenha uma sensação de recompensa, de prazer mesmo.
D: Até os níveis de testosterona podem ser alterados durante um jogo. Em 1998, o cientista Paul Bernahrdt, da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, resolveu fazer um experimento durante um jogo entre Brasil e Itália na Copa do Mundo.
C: E foi basicamente assim: o Paul e os colegas se dividiram em dois grupos. Cada um foi para um bar diferente que estava transmitindo o jogo. Em um dos bares, o público era de torcedores brasileiros. No outro, de italianos.
D: Eles coletaram amostras da saliva dos torcedores das duas seleções antes e depois do jogo. E, bem, a Itália perdeu a partida.
C: E sabe o que aconteceu? Os exames mostraram que o nível de testosterona dos fãs do Brasil, no caso os torcedores brasileiros, ficou 20% maior do que o dos italianos.
D: Aí a gente consegue perceber que essa jornada não é apenas psicológica, né, Carla? O neurocientista Tiago Bortolini, que falou com a gente no início do episódio sobre neurônios espelhos, fez uma pesquisa bem interessante sobre como os torcedores e os fãs que compartilham ídolos podem desenvolver um sentimento de empatia semelhante ao que a gente sente pela nossa família.
Tiago Bortolini: A gente tem uma assinatura neural de uma região bem específica que está relacionada quando o indivíduo pensa, por exemplo, na própria família. Uma região que chama septo hipotalâmica. E também tem o córtex subgenual, que parece que está relacionado à filiação, à cooperação e à moralidade. Essas regiões cerebrais que estão relacionadas ao pertencimento de família, que é o grupo mais basal da nossa espécie, o primeiro grupo que a gente tem, parecem estar relacionadas também com esse pertencimento a grupos mais abstratos, caso das torcidas de futebol e de outros grupos que a gente participa.
C: Mas antes de a gente compartilhar essa sensação de pertencimento com outras pessoas, a gente também tem uma experiência individual com nossos ídolos. Hoje, a gente tem mil possibilidades na palma das nossas mãos. Vários artistas, séries, filmes…
D: E a ciência também tem uma explicação para a gente escolher um ídolo e não o outro, até porque ninguém é fã de todo mundo, né?
C: Acontece mais ou menos assim: todos os estímulos que a gente está absorvendo, como o de uma música, por exemplo, vão ser processados baseados na nossa experiência. A gente tem regiões na memória que vão reconhecer timbres, notas…
D: É. E nesse momento a gente já tem um padrão do tipo de música que a gente gosta ou não estabelecido na nossa cabeça. Isso porque na primeira vez em que a gente escuta uma música, a gente filtra estímulos. O timbre, o volume, o beat, tudo isso é mapeado pelo nosso córtex auditivo.
C: Aí a avaliação de se você gosta ou não de algo parece estar muito mais relacionada às regiões frontais. Então, enquanto você está escutando uma música, você está avaliando aquela melodia o tempo todo: “Será que eu gosto dessa música? Será que ela é parecida com aquela outra? Ela é melhor ou é pior?”.
D: É, essas avaliações parecem estar relacionadas mais ao lobo frontal e a regiões frontais do nosso cérebro. E aí você vai gerar uma opinião, um valor sobre aquela música, e vai definir se ela agrada ou não.
C: Se você gostar da música, da próxima vez que você escutá-la, seu corpo pode gerar uma resposta de antecipação, a tal sensação de recompensa.
D: Carla, a gente falou muito sobre o que acontece no nosso cérebro quando estamos diante de conteúdos que a gente gosta. Mas será que a neurociência consegue explicar toda a jornada de um fã? Do momento em que ele se depara pela primeira vez com alguém que vai se tornar seu ídolo até encontrar com esse ídolo pessoalmente? Em um show ou jogo, por exemplo. Quem conta para a gente é o Tiago Bortolini.
Tiago Bortolini: Eu acho que daria para ir nesse passo a passo dessa questão assim de você absorver estímulos, o cérebro interpretar esses estímulos externos, contextualizar de acordo com a sua história de vida, seus gostos. E aí você pode também ter esse outro componente. Uma vez que você gosta, aquele estímulo vira saliente, um estímulo relevante. Aí você compra o ingresso e gera aquela expectativa de ir ao show. Há uma antecipação daquela recompensa. Isso tudo aí é accumbens, é sistema de recompensa. E aí você confirma aquela recompensa. Ao ir a um show, você tem uma derivação de prazer. A gente consegue atingir estados de prazer muito alto em rituais, em geral.
C: Mas eu tenho uma dúvida pessoal aqui: o que faz a gente gostar tanto dessa experiência? De muito sofrimento… (risos)
Tiago Bortolini: Então, você tem um aumento de endorfina. Você tem uma redução de sensação de dor. Você tem aumento de empatia entre aqueles indivíduos, você se sente parte daquele grupo. Então, tudo isso está relacionado certamente com esse componente de afeto, né? As emoções positivas fazem você querer ir de novo daqui a um ano. Você quer reproduzir aquela experiência prazerosa. Você está no meio de pessoas que, às vezes, você nem conhece, mas as pessoas passam a ser conhecidas, porque vocês têm uma coisa em comum. Essa questão está toda interligada entre a parte biológica e a parte social. A gente não consegue separar nunca essas duas vertentes.
D: E para entendermos mais sobre o processo social de se tornar fã, conversamos com Christian Dunker, psicanalista, professor de Psicologia da USP e autor do livro Mal-estar, Sofrimento e Sintoma: uma Psicopatologia do Brasil entre Muros, da editora Boitempo.
C: Christian, o que leva uma pessoa a virar fã de alguma coisa?
Christian Dunker: Acho que tem mais de um caminho. Mas uma rota clássica é quando o fã identifica naquele que ele idolatra uma versão mais bem acabada de si mesmo. É um molde do nosso narcisismo. Tanto em relação ao que a gente gostaria de ter sido, ao que a gente foi e ao que a gente gostaria de ser. Em geral, é uma composição entre essas coisas. Muitas vezes, o fã não reconhece essa relação de identificação com aspectos de si mesmo. Há os líderes políticos, os líderes de massa, os líderes condutores que pretendem diretamente influenciar seus seguidores ou seus fãs. Nesse caso, a teoria é de que eles acabam se inscrevendo como um objeto, na posição de ideal, criando assim uma forte identificação vertical, em geral substituta de um laço paterno, e uma outra identificação horizontal, substituta de um laço fraterno.
D: E como acontece essa relação de identificação com o ídolo?
Christian Dunker: As identificações não são só experiências mentais. Elas envolvem também um certo compartilhamento de experiências de corpo, de sentimentos, de afetos, de áreas cerebrais. Esse sentimento de que há uma comunicação direta, de que o ídolo fala com cada um de seus seguidores individualmente, de que ele compreende, de que ele sabe exatamente os anseios e as dificuldades de cada um de seus fãs, é um efeito que a gente aproxima do hipnotismo. É um efeito que está ligado ao fato de aquele sujeito representar substitutivamente um personagem da nossa história. Por isso é que se gera essa relação de familiaridade tão intensa e que, muitas vezes, evolui mal. Quando essa familiaridade comporta também sentimentos hostis, reprimidos, quando comporta emoções de ódio ou de erotismo direto mal-elaborado.
D: Carla, outra parte curiosa dessa jornada dos fãs é que algumas pessoas vão muito além e chegam até ao fanatismo.
C: E ainda tem uma galera por aí que confunde fã com fanático. Essa confusão vem muito da “beatlemania”. O termo surgiu para traduzir o frenesi que se criou em torno dos Beatles lá na década de 1960. Por onde o quarteto passava, uma multidão de fãs se reunia, gritava e até desmaiava! O barulho era tanto que, em alguns shows, nem a banda conseguia ouvir as músicas que estava cantando.
(Sobe som do vídeo The Beatles Momentos – Shut up!, do Youtube)
D: E, infelizmente, esse jogo de palavras acabou associando o fã ao maníaco.
C: Pois, é. E quem vai explicar melhor isso para gente é a Gilda Paoliello, psiquiatra, psicanalista e professora de pós-graduação em Psiquiatria do Instituto de Pesquisa e Ensino Médico. Gilda, quais são as diferenças entre uma pessoa que é fã e outra que é fanática?
Gilda Paoliello: Etimologicamente, a palavra “fã” é simplesmente uma abreviatura de “fanático”, que vem do latim “fanaticus”, que nos remete a “loucamente entusiasta”. Mas no emprego coloquial dessas duas palavras há muita diferença. O fã é uma pessoa que tem grande admiração por alguém. Um traço dessa pessoa representa o que ela gostaria de ser, mas a pessoa tem crítica. Ela sabe separar entre ela e o outro. E o fanático? A pessoa (admirada) ou causa que representa passa a ser o centro de sua vida, como uma obsessão. Traz como consequência intolerância a quem não compartilha dessa mesma posição, chegando a gerar ódio e preconceito. O fanatismo é sempre extremo, sempre radical.
C: Interessante, professora. Muito obrigada pela explicação. A diferença entre fã e fanático sempre gerou muita discussão, inclusive dentro das nossas próprias famílias. A relação entre fã e ídolo costuma ser uma preocupação no período da infância e da adolescência. Não é, Diego?
D: Pois é, Carla, não é incomum que mães, pais e avós se preocupem com o que as crianças andam ouvindo, assistindo ou até jogando…
C: A minha avó, por exemplo, não me deixava assistir Rebelde, aquela novela mexicana que passava no SBT, por causa do nome. Ela achava que eu ia ficar mal criada, ia me rebelar!
D: Meu Deus. O pior é que eu também passei por uma situação muito parecida quando eu era criança. Minha mãe não me deixava assistir Chaves, você acredita? Ela não deixava porque também achava que eu ia ficar malcriado por causa do “sem querer, querendo”.
C: Eu acho que essa é a nossa deixa para chamar o quadro Minha Vó Tá Certa?.
(Vinheta: trilha sonora do quadro “Minha Vó Tá Certa?”)
C: Agora chegou o momento do programa em que a gente discute as crendices de família. Nós conversamos com Leila Tardivo, especialista em psicologia infantil e professora da USP, para saber até que ponto as avós têm razão em ficar preocupadas quando os netos viram fãs de alguma moda. Leila, a gente queria saber: a família deve se preocupar quando crianças e adolescentes começam a cultivar ídolos?
Leila Tardivo: As crianças e os adolescentes crescem na base da identificação. Buscam ídolos. Pode ser o pai, pode ser a mãe. É um fenômeno esperado. Tem a ver mesmo com essa fase do processo de desenvolvimento, acho que desde que o mundo é mundo, pelo menos que a gente se lembra, no mundo ocidental isso é um fenômeno. Sempre houve essa coisa das fãs, dos fãs. Quase uma fantasia mesmo. ‘Ah, porque eu sou apaixonada…’. Quem não era apaixonada pelo Paul McCartney na minha época? Todas nós, mas ninguém ia casar com o Paul McCartney…
C: Então essa coisa de proibir as crianças de acompanharem um ídolo, verem um desenho ou jogarem um jogo não é o melhor caminho, né?
Leila Tardivo: É muito importante o adulto não combater, mas ficar atento, porque há uma maior vulnerabilidade por ainda estarem em processo de formação. Então, assim, é poder estimular a criatividade, a capacidade de criação. A idealização do ídolo aí não é necessariamente alimentar alguma coisa na linha da destrutividade. Mas é importante estar próximo, conhecer… Respeitar até a intimidade, mas ao mesmo tempo estar próximo. Esses meninos têm muito conhecimento e é preciso aliar o conhecimento a suporte, a apoio, a orientação e a estímulo para crescimento.
D: Mas e no caso de um ídolo com comportamentos destrutivos ou de um jogo violento? Muitas vezes os pais ficam com medo de as crianças começarem a reproduzir, a imitar mesmo, essas atitudes representadas ali…
Leila Tardivo: Tudo é muito relativo à idade e ao desenvolvimento. E as crianças têm certo apego a coisas violentas. Impedir talvez não seja o melhor. Estimular, também não. O que é possível é pensar na idade. Tem de saber discriminar a fantasia da realidade. Por isso que eu disse que a idade é importante. Porque pode não ser uma criança agressiva, que vai estar lá lutando, mas no jogo. É óbvio que crianças mais sadias, adolescentes mais estruturados, com família e com um ambiente que dê suporte, não vão imitar pura e simplesmente um ídolo ou qualquer comportamento de risco, né.
C: Obrigada, Leila! E um beijo pra minha avó! Ela, inclusive, vai ficar muito feliz quando ouvir esse episódio e descobrir com quem o repórter Samuel Costa está agora.
D: Exato! É hora do Manja do Assunto, galera!
(Vinheta: trilha sonora acompanhada de locução)
“Manja do assunto!”
C: Ô, Samuel! Eu, o Diego e minha avó somos superfãs do convidado deste episódio. Mas ele também é fã de uma artista que eu, pelo menos, nunca pensei que ele curtiria.
Samuel Costa (repórter): É isso mesmo, Carla! Eu estou aqui com o Péricles. Todo mundo sabe que ele manda muito no samba e no pagode. Mas o que muita gente nem imagina é que ele também é fã de pop. Ninguém resiste a uma diva, né? No DVD Mensageiro do Amor, ele gravou a música Havana, da Camila Cabello, e o vídeo bombou nas redes sociais.
(Entra trecho da música “Havana”, de Camila Cabello, interpretada por Péricles)
“Havana, ooh na na, half of my heart is in Havana, ooh na na, he took me back to East Atlanta, oh na na na, oh, but my heart is in Havana”
Samuel Costa: Pericão, conta mais essa história para nós, quando você virou fã da Camila Cabello?
Péricles: Eu me tornei fã da Camila Cabello assim que ela saiu daquele grupo que ela fazia parte né, o Fifth Harmony, que era bem legal. E aí eu fiquei perguntando por que ela saiu. Como é a pergunta que todo mundo faz quando vê alguém faz parte de um grupo se deslocar para fazer carreira solo, como aconteceu comigo, aconteceu com vários outros. E eu, como fã, fiquei com a mesma pergunta e comecei a pesquisar mais sobre a obra dela. Gostei muito de ver o desprendimento dela. O grupo continuou, ela continuou, sucesso para todo mundo e eu vejo com muito bons olhos a trajetória dela cantando com, principalmente, Shawn Mendes, fazendo seu som… Cada dia que passa ela vem desempenhando muito bem o seu trabalho e eu me tornei muito fã.
Samuel Costa: Iii, rapaz. O negócio é de tempos, o cara já acompanha Fifth Harmony. E de onde surgiu a ideia de gravar a música da Camila Cabello?
Péricles: Eu conheci o trabalho da Camila, virei fã e acompanho muito de perto o som dela. Tanto que, conversando com nossa equipe, chegamos à conclusão de botar essa música no show, uma junção de Havana com Oye Como Va. Ficou muito bacana!
Samuel Costa: Queria saber um pouco mais dessa história porque você já tem muito mais tempo de estrada do que a Camila… Então, provavelmente, ela não foi uma influência para sua carreira, no sentido de inspirar. Mas tem algum artista do cenário pop que influenciou sua carreira na música?
Péricles: Bom, embora eu tenha mais tempo de trajetória do que ela, ela em pouco tempo consegue tocar no mundo todo, uma coisa que eu ainda hei de conseguir. Mas tenho grandes ídolos. Venho de um tempo em que meus ídolos estavam tocando todo dia. Hoje, são clássicos: Michael Jackson, Stevie Wonder, Maria Bethânia, Djavan, Gilberto Gil. Eles são meus ídolos, os que sempre trago no coração.
(Entra trecho da música “Havana”, de Camila Cabello, interpretada por Péricles)
“He took me back to East Atlanta”
Samuel Costa: É Pericão. A lista de ídolos deve estar bastante grande e eclética, eu diria. E você faria algum dueto com um deles ou até com a própria Camila Cabello? Tem essa vontade de fazer um feat?
Péricles: Seria ótimo poder fazer um dueto com ela! Por que não? Com ela e com muitos dos meus ídolos. A lista dos ídolos e dos colegas de trabalho que eu quero fazer parceria é muito grande. Eu não diria um só, porque seria injusto com os demais, mas eu tenho muita vontade de fazer vários duetos. Eu acredito que a oportunidade, quando vier, será muito bem aproveitada.
Samuel Costa: Valeu, Pericão! Muito obrigado por falar com o Choque da Uva. Beijo.
(Encerra com som da música Havana, de Camila Cabello, interpretada por Péricles)
(Vinheta: trilha sonora acompanhada de locução)
“Ajuda aqui!”
D: E, você, já parou para pensar que esse assunto pode aparecer nos vestibulares? Para ajudar nisso, a gente conversou com Vitor Ikeda, que é psicanalista e professor de Sociologia e História na escola bilíngue Pueri Domus. Professor, como a dinâmica dos fandoms pode ser abordada nas questões?
Vitor Ikeda: Em geral, os vestibulares não perguntam sobre a dinâmica psíquica de grupos relacionados ao fanatismo. Entretanto, o vestibular é uma espécie de esponja de seu tempo. Ele costuma transformar em questões ou em temas de redação aquilo que se destaca entre um ano e outro. Existe também a possibilidade de os exames cobrarem a questão da violência entre torcidas ou da violência do Estado contra as manifestações sociais. Outra forma muito explorada pelos exames é a forma como os governos exploram, por exemplo, o fanatismo de grupos, buscando alguma aproximação com eles. Por exemplo, um clássico do vestibular, sobretudo em questões de História, é, por exemplo, associar a propaganda e o discurso político do regime militar com a vitória do Brasil na Copa de 1970. Então, essa também é uma abordagem possível.
C: É, então agora quando alguém reclamar que você tá passando muito tempo vendo clipes no YouTube ou lendo fanfics, você pode dizer que pode ser assunto de prova, hein?
D: Só não vale exagerar, galera. Não é desculpa, viu?
C: O episódio de hoje está acabando. E eu vou pedir para a produção, no caso nosso editor Bruno Nomura, colocar um áudio de aaaaah, de lamentação, por favor! (Entra som de lamentação) Mas ainda temos um tempinho para aquele quadro no mínimo… inusitado.
(Vinheta: trilha sonora acompanhada de locução)
“Com vocês, Prêmio IgNobel!”
(Sobe som da canção Lacrimosa, de Mozart)
D: O Prêmio IgNobel desse episódio foi concedido em 2013 a vários cientistas japoneses, que analisaram o efeito da música na recuperação de pacientes que passaram por um transplante cardíaco. É bem interessante, não? E que pode trazer grandes avanços para a medicina!
C: Mas não seria digno de um Prêmio Ignobel se não tivesse algo peculiar envolvido, né? Pois, então. O inusitado dessa pesquisa são os próprios pacientes: são todos ratos.
D: Para a pesquisa, os cientistas expuseram os camundongos transplantados a três tipos de música: a ópera La Traviata, de Giuseppe Verdi, a músicas de Mozart e a canções de Enya, no estilo New Age. O experimento rolou por sete dias depois do transplante.
(Sobe som da canção Lacrimosa, de Mozart)
C: Também foram feitos testes com camundongos que tiveram o tímpano perfurado e com outro grupo de pacientes por sete dias antes da operação.
D: Eles descobriram que os pacientes que ouviram Mozart ou a ópera tiveram uma sobrevida do órgão transplantado muito maior do que os que ouviram as frequências únicas ou Enya.
C: Basicamente, o estilo de música da ópera influenciou positivamente a resposta imune periférica, como a produção de linfócitos reguladores e a regulação de citocinas anti-inflamatórias. Traduzindo: a música ajudou a produzir substâncias que controlam as imunorreações do corpo, ou seja, que protegem a gente.
D: Curti! Partiu ouvir ópera, Carla?
(Encerra som da canção Lacrimosa, de Mozart)
D: E este foi o Choque da Uva, o novo podcast de ciência do Estadão que explica tudo o que você está a fim de saber.
C: Eu sou Carla Menezes.
D: E eu sou Diego Kerber.
C: O roteiro é de Marcela Coelho, Rayssa Motta, Samuel Costa e meu. A produção ficou por conta de Adriano Cirino, Marina Aragão, Rayssa Motta e Samuel Costa./ A edição de som foi de Bruno Nomura. Nosso programa é feito pela 30ª turma do Curso Estado de Jornalismo, os focas do Estadão.
D: Aproveita e siga a gente nas redes sociais: somos o @choquedauvapod no Twitter, Instagram, Facebook e Youtube.
C: Até a próxima!
D: Tchau, tchau!