De adúltera a símbolo de autonomia. Nunca consenso. Por trás dos famosos olhos de ressaca, a personagem Capitu, de Machado de Assis, continua sendo uma das mais ambíguas da literatura brasileira, após quase 120 anos de existência. Para a escritora Ana Maria Machado, ocupante da cadeira 1 da Academia Brasileira de Letras, essa dúvida é justamente o que torna Dom Casmurro um romance imortal.
Mais conhecida por seu trabalho dirigido ao público infanto-juvenil, a escritora carioca revisitou a obra-prima de Machado de Assis em A Audácia Dessa Mulher, romance lançado em 1999, na celebração do centenário de Dom Casmurro. No livro, a autora remonta, a partir da visão da personagem feminina, a frustrada história de amor entre Bento Santiago e Maria Capitolina Pádua. Com isso, Ana Maria criou um contraponto à narrativa original de Bentinho, que induz o leitor a pensar em adultério por parte de Capitu.
O meio acadêmico só passa a questionar o personagem principal do clássico da literatura brasileira e dá relevância à versão de Capitu quando a crítica literária inglesa Helen Caldwell publicou, em 1960, O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. No livro, a estudiosa defende Capitu e se opõe frontalmente à interpretação de que a traição era inquestionável. A partir de então, Dom Casmurro deixou de ser um romance de adultério, gênero tão comum no século 19, para se tornar também uma obra passível de muitas interpretações.
Desde de 1899, quando o livro de Machado de Assis foi lançado, a sociedade se transformou muito. Mas, sobre possíveis mudanças na forma de representar a mulher na literatura como um todo, Ana Maria é cautelosa na análise. “Os autores são diferentes, os livros são diferentes, é impossível fazer generalizações. O belíssimo da literatura é isso de ser muito variada, de o próprio livro ter sentidos diferentes em épocas diferentes.” E completa: “Não sei se a abordagem dos escritores sobre as mulheres é tão diferente. O que mudou é que hoje há mais mulheres escrevendo, então a gente tem a visão de quem está do lado de dentro”.
Em A Audácia Dessa Mulher, a escritora imprime à protagonista machadiana sua visão feminina do século 20. “Escolhi Capitu porque ela é uma personagem fascinante”, diz. A autora conta que, antes de escrever seu romance, percebeu que essa leitura já estava no original de Machado de Assis. “Eu não tinha uma ideia pré-concebida, não queria provar nada. Queria simplesmente que meus personagens encontrassem anotações da Capitu dizendo que havia outra versão, mas não imaginava que essa versão já existisse tão clara no livro.”
Para Ana Maria, a personagem está no imaginário nacional. “Capitu é muito forte. Talvez, junto com Emília de Rabicó, seja a personagem mais forte da literatura brasileira”, afirma escritora. Hoje, quase 20 anos depois do seu livro, Ana Maria conversou com o Estado a respeito de sua relação com Dom Casmurro e as principais influências que teve como autora.
Houve uma época em que a interpretação predominante de Dom Casmurro concordava com a narrativa de Bentinho, mas isso mudou muito. Como essa discussão evoluiu no meio acadêmico?
Antes se tomava sempre a palavra do homem como definitiva. Eu mesma, quando li adolescente, engoli a palavra do Bentinho. Engraçado que, quando escrevi meu livro, que tomava muito o ponto de vista da Capitu, eu não sabia o que a Helen Caldwell tinha escrito sobre Machado. Só fui tomar conhecimento depois de ter publicado meu livro, porque estava muito afastada dos meios acadêmicos e universitários na época. Foi uma grande coincidência ter assumido essa perspectiva diferente da vigente. Acho que era uma coisa de espírito da época. Com o tempo, deixou de ser basicamente uma história sobre adultério, e isso é uma das maravilhas de Machado, conseguir manter essa coisa tão ambígua, permitindo leituras tão distintas.
O que você pensava quando decidiu escrever esse contraponto à versão de Bentinho?
Eu queria retomar uma personagem de ficção e fazê-la contracenar com a realidade dos meus personagens, conversando com a minha contemporaneidade. Era fazer esse jogo de que o imaginado por outro autor poderia ser verdadeiro para meus personagens. E escolhi Capitu porque ela é uma personagem fascinante. Concebi meu livro com a ideia de que meus personagens encontrariam Capitu, mas ainda não tinha ideia de que seria esta Capitu. Só quando fui reler Dom Casmurro percebi que, no fim do século 20, a única leitura possível era essa. Eu não tinha uma ideia pré-concebida, não queria provar nada. Queria simplesmente que meus personagens encontrassem anotações da Capitu dizendo que havia outra versão, mas não imaginava que essa versão já existisse tão clara no livro.
Como o livro foi recebido no lançamento?
Não chamou tanta atenção. Isso até me surpreendeu um pouco, não se discutiu muito Machado nem Capitu. Falou-se mais sobre o enredo e de como recriei bem o século 19. Também se discutiu como inverti papéis tradicionais, colocando uma mulher independente viajando e um homem cozinhando. Dependendo da plateia com que eu ia discutir, era disso que falavam, ainda mais num momento em que a crítica de jornal se limitava a pouco mais do que uma resenha. Para que essa questão fosse abordada, precisei esperar a crítica universitária se debruçar sobre o livro. Foi quando comecei a discutir o assunto em universidades, mas isso só aconteceu dois ou três anos após a publicação.
Em que aspectos Capitu se contrapõe à personagem narrada por Bentinho?
A Capitu que recriei vai se surpreendendo e se desapontando com o Bentinho. Ela o vê como um fraco e alguém que não a entende e percebe que se enganou na ideia de amor adolescente. Quando amadurece, vê que ele não é maduro. Uma segunda coisa é que ela vai refazer a vida no exterior depois de tudo. Para essa construção, misturei alguma coisa de Henry James, cujos personagens viajam muito pela Europa. Além disso, quis também insistir na amizade dela com a Sancha, essa relação que se rompe em Dom Casmurro pela tragédia do Escobar.
O que instigou a recriar a história com a perspectiva feminina e qual é a importância de ter mulheres do século 20 nessa reconstrução?
Eu tinha vontade há muito tempo de criar uma história que misturasse personagens que já existissem com a minha ficção, separados em camadas. E isso acho que vinha desde a infância, do fato de personagens clássicos da ficção visitarem o Sítio do Pica-pau Amarelo. Dom Quixote ir a um sítio nas imediações de Taubaté, no interior do Brasil, e encontrar brasileiros era algo que me fascinava. Era algo que estava no fundo da minha memória e foi uma referência muito boa. Muitos anos depois, quando eu era professora de literatura, li A Mulher do Tenente Francês e me dei conta de que era possível escrever um romance contemporâneo com esse ponto de vista da minha época. É essa a visão que James Fowles tem nesse livro: é um autor contemporâneo escrevendo uma história de época, mas só fingindo estar naquela época. Ao me preparar para a escrita, como eu sabia que ia ter um elemento do século 19 muito forte, reli toda a obra de Machado e também os grandes romances com personagens femininos, como Anna Karenina, Madame Bovary, O Primo Basílio, além de quase todo o Henry James, que tem muitas personagens fortes.
Como é a sua relação pessoal com Dom Casmurro? Você falou que teve uma impressão inicial muito diferente da que tem hoje. Como ela mudou?
Quando conheci a obra, na minha adolescência, foi uma leitura muito frustrante. Do ponto de vista adolescente, é uma história linda de amor jovem, mas que termina muito mal. Eles não vivem felizes para sempre. É um amor que quando vence as contrariedades se frustra. O casamento traz uma decepção para ela por não estar à altura do que sonhava, pode-se dizer que é uma desilusão. Não é um amor bonitinho e não chega nem a ser como Romeu e Julieta, que por ser uma tragédia ganha uma outra dimensão. E eu engoli a versão do Bentinho, acabei criando impressão de que ela não foi leal com ele. A personagem com quem eu me identifiquei o enganou e traiu os modelos de retidão da época. Depois, quando li novamente, e aí eu já estava na faculdade, vi alguma coisa bem diferente, mas não tanto nos personagens. Nessa ocasião, o que me encantou foi a linguagem, a maneira de ele conversar com o leitor, a ironia, a filosofia, mas não foi tanto do enredo. A leitura foi mudando. Li novamente no exílio, porque levei pouquíssimos livros e Machado de Assis e Drummond foram os autores que mais reli quando estava lá. Dessa vez, o que me chamou a atenção foi como ele pegava a alma brasileira, como eu me reconhecia tanto como brasileira nele. Eu já não estava mais centrada na personagem feminina, mas na nossa sociedade. Me chamava mais a atenção José Dias e o jogo de querer se dar bem. Depois disso, só voltei a ler para escrever meu livro, e vi essa coisa feminina muito forte. Me surpreendeu como o enlouquecimento dele estava lá o tempo todo e eu não tinha visto. Ele tem um desligamento da realidade que é estranhíssimo. É casmurro porque não se dá com ninguém.
Você voltou a ler Dom Casmurro depois de fazer o seu livro?
Até reli há pouco tempo o Memórias Póstumas, mas não Dom Casmurro. E no momento estou relendo Henry James, por um motivo diferente. Estou fascinada, relendo O Retrato de Uma Senhora, que foi o livro que li naquela ocasião, mas agora o faço por conta de um outro livro. Comecei a ler em inglês um livro do John Banville chamado Mrs. Osmond, que é a personagem principal do livro de Henry James e dá sequência à sua história. As duas primeiras páginas dele foram tão fantásticas que decidi reler O Retrato de Uma Senhora antes para estar com tudo muito fresco na cabeça e não perder nada do que ele está fazendo, nenhuma das alusões, porque é densíssimo.
Gostaria que você falasse sobre as mudanças na representação de mulheres desde o século 19.
Os autores são diferentes, os livros são diferentes, é impossível fazer generalizações. A gente é capaz de encontrar hoje alguns que se debruçam ainda de uma maneira muito tradicional. Da mesma forma, estou vendo agora como essa Mrs. Osmond é contemporânea. Então, é muito difícil. Não dá para falar que houve uniformidade. O belíssimo da literatura é isso de ser muito variada, de o próprio livro ter sentidos diferentes em épocas diferentes. Acho que hoje nós não devemos ter tantas mulheres adúlteras se suicidando pela impossibilidade de casar como havia em um momento do século 19, em que os romances de adultério contaram muito isso. Isso mudou, mas eu não sei se a abordagem dos escritores sobre as mulheres é tão diferente. O que mudou é que hoje tem mais mulheres escrevendo, então a gente tem a visão de quem está do lado de dentro. E o adultério deixou de ser não só estigmatizado, mas deixou de ser proibido, impedido. Não é um amor impossível, é um caso, faz parte do mundo real. Isso mudou, mas não é a representação da mulher, a sociedade mudou.
Como foi que você empregou o mecanismo de reescrita para a reinvenção de Capitu, uma personagem tão antiga?
Engraçado, a primeira coisa que pensei agora foi “mas eu não reescrevi”. Eu ia dizer que foi ela quem escreveu, quando na verdade ela foi uma personagem que criei. Ela existiu tão forte para mim na hora que criei que fiquei com a sensação de que era ela contando, e não eu. Então senti esse estranhamento agora com a sua pergunta. Foi como se eu tivesse dado a palavra a ela e ela tivesse falado. Nesse momento, meu livro que é todo na terceira pessoa, passa para a primeira. E isso foi feito sem muita consciência, o livro vai pedindo certas coisas, a história vai pedindo e a gente vai contando e os personagens passam a existir. Eu deixo a porta aberta para eles entrarem.
Que autoras contemporâneas são referência para você?
Vou dizer algumas que gosto muito, mas é dificílimo falar pois sei que vou acabar esquecendo de alguém. Para começar, é impossível não falar de Lygia Fagundes Telles, que continua sendo para mim uma estrela maior, absolutamente maravilhosa. Tenho um fascínio enorme por ela, é outra que leio e releio e não canso, é uma mágica. Falando de uma geração mais nova, gosto muito da Elvira Vigna, também da Beatriz Bracher, da Adriana Lisboa. Adriana Gonçalves eu acho um deslumbramento, uma das maiores. Estou louca para ver o livro novo dela, que eu sei que está para sair. É difícil, são tantas que passam pela minha cabeça. Heloísa Seixas, Fernanda Torres e Socorro Acioli, outras três bem diferentes entre si, mas cujo trabalho realmente admiro.
O que pensou sobre a Polícia Federal ter batizado uma operação de Capitu, usando como referência a descrição de José Dias, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”?
Dissimulado era o Bentinho, que achava que era bento. Achava que podia julgar e classificá-la de dissimulada, oblíqua ou do que fosse. Mas eu sei que a Polícia Federal estava partindo da leitura dominante. É também a forma que encontraram de fazer uma “referência cultural”. Eu não posso falar muito, mas a minha família também teve uma cachorra que chamava Capitu, uma boxer. São maneiras de homenagear, e Capitu é muito forte. Talvez, junto com Emília de Rabicó, seja a personagem mais forte da literatura brasileira. Então ela tem uma vida no imaginário nacional muito forte. Acabo até entendendo a polícia.
Como você descreveria o olhar de Capitu, algo tão presente em Dom Casmurro, obra sob a qual já existiram diversos olhares e perspectivas diferentes?
Acho que nunca descrevi o olhar de um personagem. Agora que você me perguntou, parei para pensar. Já descrevi modo de andar, maneira de falar, mas nunca o olhar. Acho que, no caso de Capitu, seria um olhar atento, me parece uma menina que está sempre prestando atenção no que acontece à sua volta.