Aprender é algo poderoso. E poder deixa qualquer um menos suscetível à violência, acredita a britânica nascida no Senegal Mariéme Jamme, de 44 anos. Fluente em sete de linguagens de programação, ela batalha para garantir a presença de mais mulheres na tecnologia e, consequentemente, na economia. Tem como front principal a ONG I Am The Code, que se propõe a mudar a vida de 1 milhão de meninas até 2030 através da programação.
“Cada um de nós tem um código em si. Temos uma chave para mudar a vida das pessoas”, disse Mariéme, em entrevista realizada durante sua vinda ao Brasil para a Feira Preta, evento de cultura e empreendedorismo negro, em novembro. A afirmação é compreensível para quem conhece sua história de vida. Abandonada pela mãe quando tinha 5 anos, ela passou a infância na zona rural do país africano, de orfanato em orfanato, sem perspectiva de adoção.
As dificuldades se acentuaram quando foi traficada para Paris como prostituta. Tinha apenas 13 anos. Só se livrou ao ser resgatada pela polícia três anos depois e enviada para um centro de refugiados francês até ser transferida para outro espaço do gênero, no Reino Unido.
Sem educação formal até os 16 anos, passou a alternar a rotina em empregos temporários com visitas regulares a bibliotecas, onde aprendeu sozinha a ler, a escrever e a programar. “Quando você não tem habilidades ou qualificações, faz tantas coisas ao mesmo tempo que, em algum momento, consegue encontrar seu destino.” No caso de Mariéme, esses rumos passaram por etapas bem-sucedidas em pequenos bancos até chegar a um banco internacional e, na sequência, a uma gigante de tecnologia.
Mas a transformação pessoal não bastava. Era preciso transformar o futuro de meninas africanas, carentes e sem perspectivas, como ela mesma tinha sido. “Me tornei a voz dos sem voz porque não sabia como articular minha frustração”, conta Mariame. “Não queria me tornar uma mulher negra furiosa, mas queria ajudar estas africanas a entender que elas têm a responsabilidade de mudar a sociedade.”
Nascia ali o I Am The Code, movimento que mobiliza governos, empresas e investidores a apoiar jovens através do uso de códigos e da aprendizagem criativa. A iniciativa conta com embaixadoras em 62 países, incluindo o Brasil. Aqui, está presente no Recife, em São Paulo e no Rio. Além de capacitar as jovens em programação, oferecer os kits de aprendizagem e selecionar as embaixadoras de cada território, Mariéme é a responsável por fazer a articulação necessária para que o projeto seja mais do que uma mera aula.
Mariéme também preside a Spot One Global Solutions, consultoria que auxilia empresas de tecnologia a se firmarem na Europa, no Oriente Médio, na África e na Ásia. Foi nomeada uma das 100 africanas mais influentes pela African Business Magazine e uma das 20 mais jovens mulheres poderosas da África pela Forbes.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Como começou a sua carreira nos bancos?
Comecei a ler aos 16 anos, nunca fui para uma escola formal. Eu tinha 18, 19 anos, quando vim para a Inglaterra. Aprendi Excel e tecnologia em uma biblioteca – que nem tinha computador, aliás. Tudo o que se sabia era que existia algo chamado Windows, da Microsoft. De manhã, trabalhava como faxineira e, à tarde, num bar. No turno da noite, arrumava prateleiras em um supermercado. Essa era a minha rotina. Só que comecei a perceber que estava me tornando um ser humano. Foi quando procurei minha agência de empregos e disse que eu queria um trabalho fixo. Falaram que eu não tinha qualificação para atuar em uma grande empresa. Eu rebati: “Mas sei organizar códigos e falo bem”. Eles compraram a ideia e comecei a trabalhar no equivalente aos Correios, na Inglaterra, onde cuidava de arquivos e documentos. Continuava estudando na biblioteca e pedindo mais trabalho. Até que um dia me indicaram para contar dinheiro em um banco local. Eu ainda estava aprendendo quando minha agência entrou em contato e decidiu me mandar para um grande banco em Londres. Lá eu já fazia ligações, porque meu inglês estava melhorando, e organizava os dados para toda a equipe de vendas. Fiz isso por nove meses.
Você já reunia tudo isso em códigos?
Sim. Colocava tudo que a gente vendia em um banco de dados. Montei a dinâmica de quem estava vendendo o quê. Um dia, recebi a ligação de um chefe, pedindo para eu ir ao escritório dele. Pensei que minha sorte tivesse terminado. Ao mesmo tempo, estava resignada: “Se uma oportunidade acabou, tudo bem”. Quando entrei, ele perguntou se eu sabia quanto dinheiro eu tinha feito para o banco. Eu não fazia ideia. Ele disse que eu havia feito o banco lucrar US$ 75 milhões. Ele pegou a minha mão e me convidou para descer até a entrada principal. Todo mundo estava aplaudindo, falando “parabéns”. Foi a primeira vez que eu vi pessoas brancas validarem meu trabalho. Foi a primeira vez que eu me entendi como um ser próprio, como uma pessoa. Eu tinha 23, 24 anos. Depois disso, comecei a ser procurada por caçadores de talento de outras organizações.
Em qual momento surgiu a preocupação social?
O Google estava nascendo, com uma plataforma de blogs autorais. Um rapaz que trabalhava na biblioteca sugeriu que eu, a partir de meus conhecimentos em Excel e XML, contasse minha história em um blog. Nesta época, tinha sentimentos confusos e conflituosos sobre a pobreza. Me perguntava por que eu estava na Inglaterra, por que a minha mãe havia nos abandonado, por que eu tinha sido traficada e estuprada… Resolvi escrever sobre isso. Também li reportagens na BBC sobre crianças sofrendo na África e resolvi redigir uma carta aberta, tentando promover alguma mudança. A partir daí, o The Guardian me convidou para escrever sobre a minha experiência. Me tornei a voz dos sem voz e encontrei outros africanos para ajudar porque eu não sabia como articular minha frustração. Não queria me tornar uma mulher negra furiosa, mas queria ajudar estas africanas a entender que elas têm a responsabilidade de mudar a sociedade. Nessa época, o mundo da programação ainda não era relevante. Então, nos tornamos os pioneiros da tecnologia na África, lá em 2005. Foi quando comecei a plataforma Africa Gathering, para trazer a conversa entre a pobreza, a aids e o financiamento no continente.
Como conseguiu transformar essa raiva que diz ter sentido em ação?
Não entendia que era raiva. Achava que era uma frustração, uma grande perda profunda e conflitante. Me tornei budista 13 anos atrás porque eu queria perdoar a minha mãe. Talvez ela não soubesse o que estava fazendo (quando colocou Mariéme para adoção). Foi muito difícil, porque eu não queria ter raiva. Quero ser positiva e projetar meu próprio caminho. Então, fui ao Nepal para refletir sobre a humanidade e por que as pessoas fazem coisas ruins. É por isso que meu trabalho é muito baseado em mudanças de sistemas.
Como surgiu a ideia do I Am The Code?
Foi por acaso. Já tinha a minha empresa, mas comecei a pensar muito em como criar representatividade na tecnologia, em como garantir que as comunidades marginalizadas tenham voz. Como não tinha financiadores ou doadores, passei a dedicar 45% do lucro da minha empresa para a fundação, que tem o propósito elevar as pessoas, mudar suas vidas, dar-lhes dignidade. Mas eu queria montar algo que promovesse mudanças a longo prazo. Para isso, é preciso incluir todas as partes interessadas: governo, setor privado e investidores. Tive a sorte de estar nas Organização das Nações Unidas (ONU) e ter contato com o setor privado. Eu só disse a eles: ‘Vou criar essa fundação, preciso de todos vocês envolvidos e vamos capacitar 1 milhão de meninas programadoras até 2030′.
Como surgiu o nome I am the Code?
Fui convidada para um evento em Davos, dois anos atrás. Estava muito nervosa e disse ao meu filho: “Não sei o que dizer a essas mulheres. Elas são tão poderosas”. E meu filho respondeu: “Bem, mãe, você faz um trabalho incrível e eu tenho certeza de que eles vão entender se você falar dele. Você é o código”. Eu disse: “Sim, eu sou o código (I Am The Code, em inglês). Você está certo”. Cada um de nós tem um código. Temos uma chave para mudar a vida das pessoas. Seu código é sua dor. O que eu quero dizer com “eu sou o código” é que eu tenho tenacidade, força, paixão e influência para falar com o governo e o setor privado, e também com as pessoas mais difíceis do mundo, se for preciso. Posso fazê-los tomar decisões por mulheres e meninas até que cada uma de nós possa usar seu código, seu potencial, seu poder e fazer diferença – se quiser. Estou usando o código como uma maneira de ensinar as meninas como codificar e decodificar informações e entender que elas têm uma habilidade, mas também como uma forma de fortalecê-las. Eu lhes digo: você é o código, você tem o destino em suas mãos.
Como o I Am The Code escolhe os países onde fará parte?
Algumas vezes a gente escolhe, nas outras, outras pessoas escolhem. Mas o que nós queremos é mostrar a globalização do problema. Vamos aos países para mostrar as falhas na educação tecnológica das meninas. No próximo ano, iremos para Índia, Rússia e outros lugares. Nesse ir e vir, aprendemos muito. O que está acontecendo não é um problema local, e sim um problema sistemático. E quero dar luz aos problemas sistemáticos, que são bem ligados com os objetivos da ONU. Pensar o que podemos mudar na vida das meninas até 2030, como podemos melhorar suas habilidades, lhes oferecer oportunidades.
A senhora já disse que queria que as garotas na África fizessem parte da economia em desenvolvimento do continente. Como a programação pode ajudá-las?
O I Am The Code é uma ideia africana executada em solo britânico, mas muda a vida de muita gente. Ensino meninas no Brasil, no Senegal e no Quênia. Se você tem uma habilidade, tem poder econômico. Quando você tem poder econômico, fica menos suscetível à violência, porque pode assumir o controle de sua vida. Com dinheiro, você pode comprar seus dados, seu absorvente, seu desodorante. A violência começa quando uma mulher não tem habilidades e depende de outras pessoas para viver. Espero que essas mulheres contribuam para a economia da África, construindo tecnologias incríveis e soluções incríveis. No Brasil, se tivermos empreendedoras em tecnologia, teremos um ecossistema muito bom. E elas terão voz na economia.
O que a senhora quer dizer quando se refere aos dados como uma commodity?
Os dados são uma commodity a partir do momento que nasci no Senegal e não faço parte dos dados de Conotor, cidade onde eu nasci, nos anos 1970. Governos de muitos países não têm sistemas de monitoramento de mulheres jovens e meninas. Alguém pode vir para o Brasil agora, tirar duas ou três garotas, sair do país e ninguém sabe. Ninguém vai descobrir. Por isso eu fui traficada, pela falta de bons dados. No Reino Unido, a cada dez anos, fazemos um censo. Sabemos quem é quem. A polícia tem dados, o governo dados. Mas os cidadãos não têm seus próprios dados. Qualquer um pode usar seus dados para ganhar dinheiro, vendendo-os. Qualquer um pode vir ao Brasil, obter dados e vender. O Facebook, por exemplo, pode fazer o que quiser com seus dados.
O que mudou depois de passar por todas essas experiências?
Eu não mudei, acho que cresci vendo o mundo. O dinheiro nunca comprará meu sentimento e o que preciso fazer. Sempre vou lutar por pessoas que sentem ou lutam para ajudar outras pessoas, isso sempre estará em meu coração. Todo dia para mim é um dia fascinante. Estou me tornando uma mulher poderosa e tenho um sentimento de gratidão. Não sei como isso aconteceu, não vi isso acontecer. Só sinto o senso de justiça para ir e ajudar as mulheres e as meninas que estão sofrendo. Não posso dormir se não lutar por elas.