Tulipas multicoloridas, em versões mais ou menos desfocadas, conforme a oscilação da criptomoeda bitcoin. Uma família de aristocratas que nunca existiu. Rostos retorcidos, mesclando arte e horror. Com infinitas possibilidades, a arte desenvolvida com auxílio de robôs e inteligências artificiais vem ganhando espaço em museus internacionais e em prestigiadas casas de leilão.
A primeira venda de impacto ocorreu no ano passado, em Nova York. Criado por algoritmos, o quadro Edmond de Belamy, retrato fictício de um aristocrata europeu, foi adquirido por US$ 432 mil em um leilão na Christie’s, superando em muito a expectativa inicial, que não chegava a US$ 10 mil.
Por trás da obra – e de outras que retratam a imaginária família Belamy, com seus condes, duques e barões – está o grupo francês OBVIOUS, formado por Pierre Fautrel, Hugo Caselles-Dupré e Gauthier Vernier. O trio se surpreendeu com o valor alcançado por Edmond de Belamy e acredita que o comprador pode ter decidido gastar tanto por ser o primeiro leilão do gênero. Ou seja, a pessoa estaria pagando não apenas pela obra, mas por uma parte da história da arte.
“A Inteligência Artificial é um tema importante na sociedade hoje”, disse Gauthier, em entrevista ao Estadão QR. “É um assunto central e, por isso, recebeu tanta atenção e o preço subiu tanto. Mas foi surpreendente.”
Para gerar esses quadros, os artistas alimentaram uma rede voltada ao Machine Learning, com centenas de pinturas clássicas. A escolha estética é motivada por uma questão histórica: esses retratos têm um formato reconhecível e associado à história da arte europeia.
Outro detalhe interessante é a assinatura das obras, que traz um trecho da operação matemática que a criou. Só que aplicada manualmente, em uma fonte cursiva. “O algoritmo criou a imagem, mas há três humanos por trás do algoritmo”, explica Gauthier.
Após o experimento com retratos, o grupo agora se dedica à estampa japonesa, o 浮世絵. “Queremos que as pessoas descubram movimentos artísticos em uma maneira nova. Isso abre espaço na arte para um tipo diferente de pessoas, talvez mais jovens, ou ligadas à tecnologia”, diz.
Exposição no MoMA
Pioneiro no uso de Inteligência Artificial para fazer arte, o alemão Mario Klingemann já teve suas obras expostas no MoMA (Museu de Arte Moderna), em Nova York. Em Uncanny Mirror, ele usa a tecnologia para interpretar e distorcer o rosto do observador, criando um aspecto de espelho extremamente desconfortável, como sugere o título da obra. Leiloada em março pela Sotheby’s por 40 mil libras, a instalação Memories of Passerby I usa um sistema de redes neurais para gerar um fluxo infinito de rostos não-existentes, como a imaginação incessante de uma máquina.
A face humana é elemento-chave para Klingemann. “Os rostos existem numa escala que vai do emoji até uma fotografia realística”, explicou o artista, que foi residente do Google no programa Arts & Culture. “A distância entre esses polos é algo que ocupa os artistas desde o início da civilização. Sou um de muitos que exploram esse espaço quase infinito, tentando descobrir um nicho ainda não trilhado.”
Klingemann conta que também é fascinado pelo inquietante e pelo grotesco. Algo que fica claro em 79530 Self Portraits, em que o sistema tenta recriar o trabalho de mestres da pintura a partir de uma webcam, enquanto busca formas de dar sentido a eventuais erros, que vão se acumulando e gerando rostos distorcidos. “Forçar a Inteligência Artificial a cometer erros em sua compreensão dos rostos humanos ajuda a trazer esse aspecto grotesco.”
As obras têm um aspecto que remete aos filmes de David Lynch ou às pinturas de Francis Bacon, citado como inspiração por Klingemann. O artista diz que vê semelhança entre sua arte e a de Bacon, na necessidade de ter agentes externos incontroláveis para o exercício da criatividade total. No caso de Bacon, a tinta jogada e as pinceladas violentas. No seu, os algoritmos, impossíveis de prever.
Tulipas e criptomoedas
Em 2017, o bitcoin passou de menos de US$ 1 mil para mais de US$ 20 mil. Em seguida, perdeu 80% de seu valor. Tal volatilidade fez a artista britânica Anna Ridler se lembrar do fenômeno que ficou conhecido como Febre das Tulipas, na Holanda do século 17.
Vindas da então Constantinopla, hoje Istambul, as flores encantaram os holandeses e viraram símbolo de status, iniciando uma corrida pelas tulipas. Com a demanda em alta, não faltou quem se interessasse por comprar as flores como forma de investimento, contribuindo para o aumento constante do preço.
Como as tulipas florescem no verão e são vendidas no inverno, um mercado futuro se estabeleceu. No auge, alguns tipos de bulbos começaram a valer dez vezes o salário anual de um artesão. Há relatos de que foram trocados até por casas. Grandes fortunas se formaram naquele período.
O problema é que preços assim tão altos foram um estímulo a fraudes. O mercado quebrou, na primeira bolha especulativa da História.
Anna relembra a Febre das Tulipas na instalação Mosaic Virus. “Estava realmente interessada em comparar a especulação na época das tulipas com o que acontecia com as criptomoedas e também com a inteligência artificial, o hype do momento”, disse a artista ao Estadão QR.
Na instalação, batizada com o nome do vírus que causa as mudanças de cor nas flores, a Inteligência Artificial gera vídeos de tulipas florescendo. Conforme o preço do bitcoin sobe, as flores ficam mais listradas.
Mas por trás dessa obra digital, há um extenso trabalho humano. Anna catalogou nada menos do que 10 mil tulipas individualmente para alimentar o banco de dados do algoritmo. Essas imagens foram expostas com o nome Myriad, numeral grego equivalente a dez mil. “Quando você vê essas lindas imagens digitais, é muito fácil esquecer que em algum ponto do processo todas eram coisas reais”, lembrou Anna, que preparou e fotografou todas as flores.
Na obra Bloemenveiling, essas tulipas virtuais são leiloadas utilizando a tecnologia Ethereum. Nos leilões, humanos competem com bots programados por artistas, adicionando especulação e escassez a um recurso teoricamente infinito, as flores geradas pela IA. Os vencedores do leilão recebem a flor virtualmente.
Após uma semana, as tulipas desaparecem e ficam somente os contratos, armazenados permanentemente na rede. “A obra usa a tecnologia blockchain para ecoar a efemeridade do mundo natural”, diz Anna.