Você provavelmente já se perguntou por que os assistentes virtuais geralmente são mulheres. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) fez mais do que isso e decidiu estudar o assunto. O resultado? Lançado em maio, o relatório Eu Coraria, se Pudesse (I’d Blush, if I Could) apontou que o uso predominante de vozes femininas está contribuindo para reforçar os estereótipos de gênero. A conclusão reacendeu o debate para o uso mais adequado dessas Inteligências Artificiais no mundo.
No documento, a Unesco criticou grandes empresas que escolheram ter ajudantes mulheres. A equipe responsável pelo estudo afirmou, ainda, que as assistentes foram programadas para serem submissas, inclusive a insultos.
Em entrevista ao Estadão QR, a diretora de Gênero e Igualdade da Unesco, Saniye Gulser Corat, responsável pela elaboração do relatório, afirmou que os estereótipos podem ser percebidos em outros sinais, que vão além da voz.
“As empresas criam uma personalidade, um corpo físico, uma formação, como no caso da Cortana. A tecnologia é criada pela sociedade e reproduz os estereótipos que vivemos. Mas é preciso lembrar que, em grande maioria, esses softwares são desenvolvidos por homens jovens e acabam refletindo justamente o ideal de mulher deles.”
Saniye Gulser Corat, Diretora de Gênero e Igualdade da Unesco
A organização alerta que, se nada for feito para alterar essa lógica, as mulheres podem voltar a ser encaradas como pessoas de segunda classe por setores da sociedade. “Nossa maior preocupação é com os mais jovens, que crescem cercados por essa tecnologia. Como a voz é similar à humana, fica mais difícil ainda de distinguir humanos de máquinas”, explica Saniye. “E isso normaliza a ideia de que é aceitável tratar as mulheres como você trata a máquina.”
Saniye recomenda que as empresas deixem cada vez mais claro para os usuários que aquela interação está sendo feita com um robô – e não com uma pessoa. Isso também seria uma forma de reduzir consequências potencialmente desastrosas, como uma possível naturalização da violência contra a mulher, inclusive a sexual.
A utilização de vozes femininas para softwares que realizam serviços de atendimento e assistência na internet incomoda a pesquisadora e diretora do Labdata da Fundação Instituto de Administração (FIA), Alessandra Montini. De acordo com ela, a disparidade existe porque está enraizada na sociedade a ideia de que a voz da mulher seria mais agradável.
Para a locutora e dona de uma das primeiras vozes para sistemas artificiais na língua portuguesa, Regina Bittar, no entanto, o mais importante não é a discussão sobre o gênero em si. Segundo ela, é necessário entender a intenção por trás do uso de cada voz, seja feminina ou masculina. Regina acha que as empresas buscam vozes de mulheres para acolher o cliente.
Outras vozes
Equipes de tecnologia de grandes empresas já estão refletindo sobre os rumos que as Inteligências Artificiais estão tomando. Trabalhando com Tecnologia e Ecossistemas Emergentes na Sage, Shivani Govil diz que quem atua na área precisa assumir posição e se certificar de que a tecnologia entregue resultados mais justos e corretos.
“Acredito que a tecnologia é tão boa quanto as pessoas que a constroem. Por isso, apesar de esses softwares possuírem um enorme potencial de equilibrar a desigualdade de gênero, há muitos casos em que acabam sendo utilizados para reforçá-la. No caso das assistentes virtuais, desenvolver esse papel de que a máquina deve servir e obedecer aos comandos pode se refletir na percepção e na dinâmica do mundo real de como devemos tratar as mulheres.”
Shivani Govil, executiva Sage
Lançada em 2016, a BIA ainda não tem voz nem gênero. Seu nome é derivado de Bradesco Inteligência Artificial, como explica Walkiria Marchetti, diretora-executiva de Tecnologia, Inovação, Pesquisa e Operações do banco. A executiva, apontada pela IBM como uma das 40 mulheres mais influentes em IA no mundo, diz que o Bradesco está realizando estudos para ver que opção de voz usar nas interações da BIA com os clientes.
Na opinião de Walkiria, usar vozes femininas não reforça estereótipos. “O que se busca com a BIA é valorizar o tempo da pessoa. Então, de nenhuma forma isso é um trabalho menor.” Para o futuro, no entanto, ela imagina que a tecnologia de Inteligência Artificial vai se expandir e começar a permitir que cada usuário personalize as inteligências artificiais com a sua própria voz.
Para a linguista computacional Karina Soares, essa voz do futuro pode ser completamente artificial, sem gênero.
“Já existem hoje muitas pesquisas indicando que engenheiros e linguistas estão tentando chegar em um standard de uma linguagem artificial em que a gente não identifique se é uma mulher ou um homem. É possível ter a voz de uma assistente mesmo que não tenha gênero.”
Karina Soares, Analista de Inteligência Artificial e linguista computacional
Mercado de Trabalho
De acordo com a Unesco, a falta de mulheres na indústria de tecnologia contribui para o sexismo demonstrado na construção dessas assistentes. “Como os homens continuam dominando este espaço, a disparidade serve para perpetuar e exacerbar as desigualdades de gênero, pois o viés não reconhecido é replicado e construído em algoritmos e inteligência artificial”, concluiu a equipe, no relatório.
Para a diretora de Projetos do coletivo Nossas, Enrica Duncan, ter mais mulheres desenvolvendo tecnologia é fundamental para ter uma sociedade mais igualitária. Em 2016, o grupo criou a Beta, uma chatbot feminista, para defender os direitos reprodutivos das mulheres.