Especialistas divergem se é proteção social ou distribuição de renda incondicional

Ter dinheiro sem emprego? Entenda a polêmica da renda básica universal

Confira a entrevista exclusiva do 'Estadão QR' com três especialistas no assunto

Até 2050, 35 milhões de brasileiros enfrentam o risco de perder o emprego para máquinas, segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Se estes números se confirmarem, como vai sobreviver essa massa de desempregados? O cenário traz à tona a discussão sobre a renda básica universal (RBU).

O Estadão QR convidou três especialistas para debater o tema, que é bem controverso. Acompanhe a discussão com: Heikki Hiilamo, professor de Políticas Sociais na Universidade de Helsinki, na Finlândia, país no qual foi feito um experimento com a renda básica; Renan Pieri, professor de economia do Insper e da Fundação Getulio Vargas (FGV); e Tatiana Roque, professora de matemática e filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O que é uma renda básica universal?

Heikki Hiilamo: A definição padrão da Rede Global de Renda Básica para renda básica universal (RBU) diz que esta é um pagamento periódico em dinheiro, incondicionalmente feito a todos em bases individuais, sem provas de recursos ou exigência de trabalho. Entretanto, o problema com o movimento da renda básica é que não está claro se a RBU é um meio ou um fim. Para mim, como um estudioso em políticas sociais, é muito importante verificar as suas consequências, para quê é usada, e se ela realmente atinge os objetivos que estabelece. Algumas pessoas têm ideias muito radicais e utópicas, imaginando que a renda básica vai criar algo como um paraíso na Terra. Para outros, é somente uma mudança incremental, a qual poderia talvez ajudar a aliviar a pobreza.

Renan Pieri: A renda básica universal é uma proposta de equalizar uma renda mínima para todo o cidadão. Assim, decidimos o quanto seria o mínimo aceitável que cada indivíduo deveria ter e distribuímos essa renda para todo mundo. O que a diferencia é o fato de ser universal, ou seja, ela não depende de condicionantes, ao contrário do Bolsa Família, por exemplo, em que você tem critérios de renda, tamanho da família, para definir o tamanho do benefício.

Tatiana Roque: A RBU é tida como um direito que cada pessoa tem de receber o básico para a sua subsistência. Como o mundo do trabalho está mudando, a sociedade vai precisar reorganizar o modo como as pessoas trabalham. Então a RBU também funciona como garantia de uma transição mais tranquila. As pessoas que ganham a renda básica vão poder ter mais tempo para estudar, para se reposicionar no mundo do trabalho.

Renan Pieri crê que é preciso superar a crise econômica antes de se pensar em implantar uma renda básica

O processo de automação e robotização necessariamente levará à adoção de uma renda básica universal?

Heikki Hiilamo: A explicação padrão para o aumento do debate em torno da renda básica é que seria uma consequência da inteligência artificial, automação e tudo isso. Porém, eu não penso que isso seja particularmente convincente já que nós não estamos, na verdade, vendo tanta disrupção no mercado de trabalho. A maioria dos países ocidentais está se recuperando muito bem do colapso econômico de 2018. A desigualdade é provavelmente muito mais importante como um fator para o debate da renda básica.

Renan Pieri: Além da renda básica universal, a gente pode discutir a ampliação dos programas de renda condicionais que já existem. O Bolsa Família, por exemplo, pode ter mais faixas de rendimento para distribuir mais recursos. O positivo de você colocar uma condição para a pessoa receber a renda, é que você pode estimular comportamentos desejados. No caso do Bolsa Família, as famílias recebem o dinheiro se os filhos forem para a escola, tiverem uma presença mínima de frequência dentro da escola, e se as mulheres frequentarem o posto de saúde. Isso gera diversos outros benefícios.

Tatiana Roque: Uma das razões para o aumento do interesse pela renda básica universal são as mudanças no mundo do trabalho, com a automação e a robotização. Os bem remunerados, que são muito qualificados, vão persistir, assim como os pouquíssimo qualificados e muito mal pagos. As faixas intermediárias é que vão desaparecer, ou seja, as classes médias serão mais afetadas. Então uma ideia que está sendo veiculada como uma maneira de lidar com os efeitos da crise social é a RBU. Eu a defendo justamente porque acho que é uma maneira de você estender para os cidadãos esse conceito de proteção social, que normalmente é associado ao emprego, é associado ao salário. A pessoa tem direito a uma renda para existir, não necessariamente porque ela trabalha. A renda básica universal é uma maneira de fazer uma transição para uma outra sociedade, na qual a gente trabalhe de outra maneira e, sobretudo, que a gente não dependa da renda do trabalho, ou seja, do salário, para ter uma condição de vida mínima garantida.

Tatiana Roque destaca que a experiência da Finlândia, aparentemente não obteve bons resultados

A renda básica universal é economicamente viável?

Heikki Hiilamo: Isso depende completamente do nível e da cobertura do benefício da renda básica.

Renan Pieri: Hoje não, na crise não. Teria que fazer um esforço muito grande para conseguir organizar o sistema de arrecadação para conseguir garanti-la. A questão não é tanto da viabilidade em si, é da ineficiência. Sabemos que, segundo a teoria econômica, quando o Estado cobra impostos ele gera distorção de preços. Uma vez que o dinheiro vai para o Estado você tem uma perda de renda, de riqueza na sociedade. No fundo, se nós tirarmos da sociedade um certo nível de dinheiro e devolvermos esse mesmo volume, no final das contas, talvez a gente gere mais inflação do que aumento de renda.

Tatiana Roque: A grande preocupação é: como financiar isso? Primeiro, tem que pensar o seguinte: já existe muita gente que vive de renda. As pessoas muito ricas, em geral, não vivem do seu trabalho. Vivem da renda aplicada no mercado financeiro, ou seja, trata-se também de dar para todo mundo uma condição de sobreviver de um capital que produz capital. Isso tem sido uma exclusividade das pessoas muito ricas, então uma das ideias para financiar a renda básica é justamente taxar os ganhos financeiros do capital. Uma das propostas, de autoria de Yanis Varoufakis, ex-ministro das finanças da Grécia, é que a cada busca na internet, em que você alimenta os algoritmos de grandes corporações, elas tenham que pagar uma taxa para um fundo, o qual financiaria a RBU. Uma outra ideia que circulou na campanha do candidato Benoit Hamon na última eleição presidencial na França, é financiar essa renda básica através da taxação dos robôs, seria instituir um imposto para os robôs.

“O problema com o movimento da renda básica é que não está claro se a RBU é um meio ou um fim”, diz Heikki Hiilamo

Das experiências com RBU, o que pode se concluir delas?

Heikki Hiilamo: O conceito de renda básica não é novo ou não testado. Primeiramente, atraiu interesse de legisladores e governos americanos e canadenses nos anos 70, levando a experimentos locais. Entretanto, a Finlândia foi o primeiro país a implementar um experimento de campo, nacional e aleatório sobre a ideia.

A experiência finlandesa de renda básica tratou de renda básica parcial e mirou indivíduos fisicamente capazes desempregados. O grupo experimento recebeu uma soma líquida de 560 euros por mês por um período de estudo que compreendeu dois anos, de 2017 a 2018, independente do status de empregabilidade. Em fevereiro, o time de pesquisa da renda básica divulgou os primeiros resultados do experimento. Os resultados do primeiro ano mostraram que os beneficiados pela renda não tinham mais dias de trabalho ou rendas maiores do que aqueles no grupo controle. Apesar do fato dos recipientes da renda básica terem melhores incentivos para trabalhar, não houve diferenças estatisticamente significantes entre os grupos.

Renan Pieri: É um modelo de sociedade completamente diferente. Importar um programa da Finlândia direto para o Brasil tem uma série de problemas de adaptação. Preocupa-me muito esse tipo de experiência, como a nórdica, orientar as políticas públicas aqui. Primeiro, a gente não tem recurso sobrando. Segundo, nós somos uma sociedade muito heterogênea. Mesmo o Bolsa Família reduz um pouco a oferta de trabalho, a pessoa para receber o recurso acaba trabalhando um pouco menos. Hoje, se a gente tiver um programa de distribuição de renda incondicional no Brasil, você terá uma redução muito grande de oferta de trabalho, isso não é desejável.

Tatiana Roque: Já foram feitas algumas experiências sobre renda básica no Canadá, no Quênia, mas a mais recente, na Finlândia, aparentemente não obteve resultados muito bons. Uma das explicações é justamente o fato que isso foi aplicado em uma situação de comparação com um seguro que tem condicionantes. Então isso produziu um certo viés na experimentação, porque o objetivo inicial era verificar se aquelas pessoas que estavam recebendo renda básica iam trabalhar mais por conta própria do que aqueles que eram obrigados a procurar emprego. Então já existia na própria formulação da proposta uma intenção de que a renda básica servisse para as pessoas procurarem uma maneira de trabalhar mais. Ou seja, isso é chamado Workfare, uma sociedade que pensa as políticas sociais em função do trabalho. Então, na minha opinião, a renda básica deve ser usada de uma maneira um pouco diferente, ela deve ser usada desvinculada dessa condicionante, desvinculada da intenção de fazer com que as pessoas trabalhem mais, porque ela justamente uma maneira justa de reconhecer a crise do trabalho e das formas de trabalhar.

A renda básica universal seria suficiente para manter um estado de bem-estar social?

Heikki Hiilamo: Depende também muito da maneira com a qual a renda básica for implementada.

Renan Pieri: As evidências que nós temos são do Bolsa Família, o qual teve um impacto positivo de redução da criminalidade, então acho que seria esperado, por um lado, que a RBU também tivesse. Sobre desigualdade, especificamente, o Bolsa Família é pouco efetivo, e não tem porque achar que a renda básica universal seria um motor de redução da desigualdade. A renda básica universal, para reduzir desigualdade, depende não tanto da distribuição de dinheiro, mas sim de como vamos tributar as pessoas. Para ter um impacto na desigualdade, teria que tributar mais os ricos, proporcionalmente aos pobres.


Tatiana Roque: Eu defendo a renda básica como complemento a uma proteção social que garanta educação universal, saúde universal, políticas de habitação e de transporte, ou seja, não é a defesa da RBU em substituição ao Estado de Bem-Estar Social. Muitos liberais defendem a RBU como substituição às políticas do bem-estar social. Acho que isso seria bem prejudicial porque seria uma maneira de você submeter as políticas do bem-estar social, sobretudo, à lógica do endividamento.

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