Estadão Marielle Franco
De Dani Monteiro para Marielle: ‘Tentaram te parar, mas nós nunca paramos de te ouvir

‘Aprendi que não nos esqueceremos de ninguém’

Em carta à amiga Marielle, deputada estadual Dani Monteiro (PSOL/RJ), conta como vai continuar lutando: na política e fora dela

“Sou seu colete à prova de balas
Seu ouvido à prova de falas
Eu vou tomar nosso mundo de volta”
Djonga

É estranho escrever pra você, Mari. Mas, como o pássaro Sankofa, a gente voa olhando o passado. Sempre dos que vieram antes de nós para os que virão depois. Como o Djonga, queria com sentimento passar uma ideia, um desejo, quase uma oração, que sintetiza aquilo que eu peço, desejo e construo com os nossos, por você e por tantos de nós. Esse ano foi no ritmo dos 150 bpm. Não consegui respirar, nem parar de chorar de noite. A maioria de nós está, ainda, com a respiração suspensa desde que soube que não te veria mais. Aquela noite se estende até hoje sobre nós, como um pesadelo. Eu me perguntava diariamente enquanto cumpria, como você, todos os compromissos de campanha, vida e militância: qual de nós teve tempo para parar nessa vida?

Eu citei a noite que queria esquecer, mas nunca me esqueci de tudo que você fez, com muito trabalho e resistência, nesses seus 37 anos. Nosso povo tem sido retirado de nós. Apesar disso, aprendi com você, com os nossos, com as mães que choram, gritam e reivindicam, neste mesmo espaço que nos mata, que todo lugar é nosso, até a política. Aprendi que não nos esqueceremos de ninguém. Passe o tempo que for.

Por aqui, seguimos contando os dias sem você, num protesto ininterrupto. Não te calarão mesmo! Com os jovens como eu, tenho aprendido que se não se tem tempo pra respirar, a gente rima. Dia a dia, tentam retirar nosso futuro de nós. Pra cada jovem que está na favela, o céu que amanhece tão bonito acaba sempre sem perspectiva. Está faltando emprego, estão fechando as escolas, perseguindo professores… E a chuva de balas na favela rasga o céu e os sonhos da juventude preta e favelada. Vemos as mulheres, que vivem múltiplas jornadas de trabalho, adoecendo ao perder um dos seus, ao sentir o peso do patriarcado controlando e violando seus corpos. Lutamos tanto pra combater o assédio contra as mulheres, pelo direito ao parto humanizado e pela responsabilidade do Estado em construir políticas públicas pela vida das mulheres.

E foi assim, por entre a memória de tudo o que você fez e ainda repercute, e por meio desses que me cercam e não topam o shiii dessa sociedade, que segui, Mari. A luta não me deixou adoecer. Fazendo campanha na raça, com os pilares que representam o que sou, no plural, mesmo que a olhos desatentos pareça que essas pautas são singulares, identitárias: negritude, juventude, favela e mulheres são pilares de uma nação, isso sim!

Lembrando tanta coisa e querendo um tanto mais – de voltar no tempo e conseguir te proteger, e a cada um de nós, dos nossos. Realmente não deu sem você. Uma parte de nós se foi. Mas outra renasceu. E a explicação só pode ser ancestral.  Tentaram te parar, mas nós nunca paramos de te ouvir. “Vamo, que vamo, gente!”. Você avisou que não iriam te calar, né negona?

O ubunbtu, por você rememorado, é a nossa prática diária. Política com afeto e papo reto. E, se somos a maioria, me diga você, Mari, haveria ousadia em pretender que três de nós, que com você caminharam nesse mandato, se multiplicassem no parlamento?  Essa é difícil de responder. Mas você nos falou disso de tantas formas ao longo desse ano e três meses de mandato. Falou de “mulheres na política”. E, em tantas declarações, você sempre tão certa de que a nossa união preta era a revolução. Que mulheres estão na linha de frente da nova cultura política!  Mas alguns duvidaram, nega. Pra esses, mostramos, na prática, que não há como deter a força que move o mundo. Os preto é chave, abram os portões!

Penso também, quase toda noite, sobre como você, ancestral, é um elo, entre todos que queríamos e queremos aqui. Temos um futuro a construir, por você. Não arredaremos pé, nem um centímetro, por mais que tentem, Mari. Vai ser um pé na instituição e mil fora dela!

É por nós mesmas, daqui para frente. E para sempre!

Com muita saudade,

Dani Monteiro

Nota da redação: A carta acima foi escrita em dezembro, a pedido do Estado