Mari,
Lembro com carinho de quando a nossa história começa, lá em 1999, há quase 20 anos, que nos esbarramos pela primeira vez no pré-vestibular comunitário da Maré. Mas só trabalhando no jornal O Cidadão, mais ou menos um ano depois, que viramos parceiras de luta. Pois é, duas mulheres faveladas, se metendo a conhecer a Escola Florestan Fernandes e desbravando a floresta da Tijuca com o Leon pra entender melhor a sociedade e as briófitas. Você passou no vestibular e eu só passei no ano seguinte pra PUC-Rio. Que emoção, quantos desafios. Mas a realidade de privações era mais dura quando mexiam com os nossos. Fazer atos na favela para reivindicar o direito à vida passou a ser rotina. Lembra dos nossos meninos, Renan e Matheus? Espero que tenha dado uma abraço bem forte neles e tenha acolhido o Marcus Vinicius. Meninos que deixaram suas famílias cedo demais. Depois veio tanta coisa: mandato do Freixo, Comissão de Direitos Humanos, sua campanha… E aqui estamos em 2018.
Não faz dois meses que o Brasil elegeu Bolsonaro presidente, Mari. Não, não é brincadeira. Com 55,13% dos votos, ele derrotou o candidato do PT, Fernando Haddad, no segundo turno. Você deve estar se perguntando: “E o Lula?”. O Lula está preso. E as surpresas não acabam por aí. Sérgio Moro foi anunciado como ministro da Justiça.
Sim, o Moro prendeu Lula, impedindo o mais bem colocado nas pesquisas de ser candidato, e agora vai assumir um ministério. E, sabe de uma coisa, Mari, o juiz tá longe de ser o pior ministro. Um dos indicados diz que vai banir Paulo Freire da Educação, o outro chama a ONU de comunista. Consegue imaginar isso? Como você sempre disse: “A vida é dura, bebê!”.
Não queria falar disso agora, Mari, mas a pior notícia de 2018 — a maior dor que senti na vida — foi o seu assassinato. Parece meio estranho estar aqui, escrevendo uma carta endereçada a você sabendo que sua matéria se foi. Posso confessar uma coisa? Penso em você diariamente. E, de alguma maneira, conversamos. Te tiraram de nós e estamos aqui há quase nove meses esperando o resultado das investigações e nada. Mas não descansaremos. Os poderosos que mandaram apertar aquele gatilho vão ser achados e responsabilizados. Não queremos vingança, mas Justiça. Apenas isso.
Não é mimimi, as notícias boas andam realmente raras. Mas aqui no Rio de Janeiro fizemos algo inédito que te encheria de orgulho. Mônica Francisco, Dani Monteiro e eu — isso mesmo, três negonas vindas da sua mandata — eleitas deputadas estaduais e a nossa Talíria Petrone foi eleita deputada federal. Ela vai estar lá em Brasília junto com Marcelo Freixo, Luiza Erundina, Áurea Carolina e mais seis companheir@s do PSOL. Essas pequenas vitórias são essenciais para nos dar fôlego, Mari. 2019 promete exigir muito da gente.
Mari, você sabe o tamanho da nossa responsabilidade, enquanto mulher, negra e periférica, em ocupar esses espaços de poder. Você nos representou, e representa, muito bem, você é respeitada e lembrada pelo trabalho que fez para superar as desigualdades raciais, sociais e econômicas. Nossa eleição, assim como será nossa mandata, é carregada de muita responsabilidade. Ela representa um grito que estava retraído na garganta da sociedade, não apenas por mais representatividade, mas também por mais presença de trabalhos concretos e qualificados no que diz respeito às políticas públicas. Nossos votos representam milhares de pessoas que decidiram não se render ao ódio, ao medo e a barbárie como método político.
Negona, você não está aqui como gostaríamos — viva, sorridente e cheia de gás pra luta. Mas, de várias formas, sua presença está por todos os lados. Seu rosto estampa blusas, está grafitado nas paredes, virou tatuagem. Na verdade, Mari, você virou o símbolo e é uma chama viva no peito dos que lutam pela democracia e pelos direitos humanos. Tu sempre foi e continua gigante, mulher! E, agora, é semente de um mundo novo. Seguimos por você, por nós, e pelos outros.
Obrigado por tudo, principalmente por nos trazer luz em tempos de trevas!
Saudades infinitas,
Com amor,
Rê
Nota da redação: A carta acima foi escrita em dezembro, a pedido do Estado