Brasil: Lica; Marisa, Elane, Sandra e Fanta; Lúcia, Marcinha e Sissi; Pelezinha, Roseli e Cebola.
Foi com essa escalação, no dia 1º de junho de 1988, que o Brasil fez sua primeira partida em uma competição da Fifa. Com a base do Radar, grande time do País à época, a trajetória da seleção feminina de futebol começou com um histórico bronze na China, sede do campeonato experimental. Dali até o reinado de Marta, seis vezes melhor jogadora de futebol do mundo, um tortuoso caminho foi percorrido pelas brasileiras. “Nunca vai ter uma seleção melhor”, resume a zagueira Elane.
O futebol feminino esteve proibido no País de 1941, no Estado Novo, até a revogação da lei, em 1979, na ditadura militar. Ainda que o esporte vivesse sob a marginalidade, a prática existia nas grandes cidades do País, onde times não oficiais se formavam em profusão.
Copacabana era o palco principal das competições no Rio. A cultura do futebol de praia no bairro, conhecido por sua diversidade, fez nascer o maior time de todos os tempos no futebol feminino do Brasil, o Esporte Clube Radar, capitaneado por Eurico Lyra. “Meu sonho era jogar lá, eu acompanhava o time pelo rádio. Mas não tive oportunidade”, diz Sissi, primeira camisa 10 da Seleção.
“O seu Eurico era um visionário, já sabia que essa proibição ia cair. Ele se preparou para montar o melhor time e depois uma Seleção. Estava tudo na cabeça dele”, afirma Meg, a primeira goleira da Seleção Brasileira.
Com 16 atletas do time de Copacabana — e sem Meg, goleira que também atuava na seleção brasileira de handebol e, para jogar o Mundial da modalidade em 1989, pediu dispensa da primeira Seleção de mulheres no futebol —, a Seleção viajou para a China com Lica no gol e logo levou um susto: derrota por 1 a 0 para a Austrália na estreia. “Nós não tínhamos informações, não conhecíamos as jogadoras, era uma dificuldade grande de estrutura”, lembra Sissi.
A campanha mudou da água para o vinho quando as meninas do Brasil venceram a Noruega, então campeã europeia e que ganharia também essa competição. Em sequência, a Seleção goleou a Tailândia por 9 a 0, venceu a Holanda por 2 a 1 e chegou às semifinais contra a mesma Noruega, em Guangzhou. A derrota doída colocou o time brasileiro na disputa pelo terceiro lugar, na qual uma vitória nos pênaltis deu o bronze para o Brasil.
Aquele time seria base da equipe do primeiro Mundial da China, em 1991, e da Seleção que disputaria a primeira Olimpíada do futebol feminino, em 1996. O quarto lugar em Atlanta, nos Estados Unidos, foi histórico, mas as mulheres viram a medalha escapar pelas mãos. “A China tinha um baita time. Estávamos ganhando de 2 a 0, faltavam apenas oito minutos. A medalha de prata estava na mão. Sabe o que é isso? As chinesas fizeram duas substituições e viraram para 3 a 2”, relembra Meg.
A derrota na disputa do bronze, contra a Noruega, também é reflexo da falta de estrutura: “Não tínhamos preparo físico, até porque não havia projeto, preparação adequada. Estávamos muito cansadas, não tínhamos peças de reposição, isso fez muita diferença”, diz.
Resistência ao machismo
Se hoje o futebol feminino não chama atenção pela organização, há 30 anos a história era ainda pior. Mesmo as jogadoras que formavam a Seleção faziam tudo por amor. Dinheiro? Alimentação já era motivo de comemoração. O machismo era visto como institucional, pois a já rica Confederação Brasileira de Futebol (CBF) não ajudava com estrutura nem dinheiro. “Eu parei de estudar. Na prática, eu pagava para ser atleta. Passei muito sufoco. Os clubes só davam o dinheiro da passagem”, conta Elane. “A CBF não dava nada. Demorou a nos aceitar como atletas. O Eurico (Lyra) praticamente obrigou a CBF a criar a Seleção.”
Presidente do Esporte Clube Radar, Lyra foi o embaixador da modalidade no País enquanto ainda não havia regulamentação para o esporte feminino. O clube, potência da época, nunca perdeu uma Taça Brasil, primeiro campeonato nacional da CBF.
Mas o dinheiro demorou a chegar. Na comemoração do título de 1982, uma atleta brincou com representantes do Unibanco, patrocinadores à época, pedindo salário. Com cara de poucos amigos, todos os integrantes da empresa se retiraram. Eurico se calou. A verdade viria à tona: já havia uma contribuição das empresas, que não era repassada às atletas.
Além do dinheiro, havia, claro, muito preconceito com as mulheres que desbravaram o futebol feminino no país do futebol… masculino. “Tudo era muito difícil. Eu lembro de ouvir os gritos de ‘vai lavar louça!’, entre outras coisas. Acontecia, mas todas nós já passamos por isso. Até hoje se ouve que futebol é para homem”, salienta a goleira Meg. “É um preconceito que é reflexo da falta de educação. Parece inacreditável, mas nossa sociedade ainda é muito preconceituosa com as minorias.”
Antes da Rainha, a Imperatriz
Uma das grandes jogadoras da história do futebol feminino, a baiana Sissi precisou driblar o preconceito até se tornar a primeira camisa 10 da história da Seleção. “Começou em casa. Diziam que futebol não era coisa para menina e só me deixavam jogar se fosse para ser a ‘bobinha’”, recorda.
Se descarta o rótulo de ser a “Marta antes de Marta”, Sissi lembra com carinho de uma transgressão tão simbólica quanto necessária: arrancar cabeças de bonecas, que faziam as vezes de bola de futebol. “Minha mãe ficava louca e eu quebrava tudo em casa. Quando ela descobriu que eu fui convidada para jogar em um time em Campo Formoso (na Bahia), não queria que fosse”, lembra Sissi. “O dono convenceu meu pai, que relutou, mas aceitou e a convenceu também. Sempre teve preconceito, é claro, mas nunca deixei que me afetasse. Só me dava mais força.”
Das ruas aos campos de terra batida no sertão baiano, a Imperatriz do futebol feminino deu seus primeiros passos no Flamengo-BA. Depois, foi para o Bahia, clube no qual se desenvolveu. De lá, o voo mais distante, para a China, aos 21 anos, para representar a Seleção em 1988.
“É claro que dá orgulho ser a primeira camisa 10 da Seleção. Eu era fã do Zico, sempre quis jogar com esse número. Mas na época eu não tinha a dimensão. Hoje eu paro e penso: ‘Meu Deus!’. Era um tempo de muita luta. Mas valeu a pena, eu faria tudo de novo. Vejo a Seleção de hoje em campo e sei que elas estão lá porque nós estivemos antes.”
A menina de Dois Riachos
Depois de aposentar as luvas, a goleira Meg começou a trabalhar na categoria sub-17 do Vasco da Gama. Após as Olimpíadas de Atlanta, em 1996, o clube montou um projeto olímpico para ser a base da delegação brasileira em Sydney, em 2000. Por isso, quase toda a Seleção foi para o Gigante da Colina, no qual um grande talento foi lapidado.
“Eu trabalhava na secretaria de esportes do Rio de Janeiro. Um colega de trabalho chegou para mim e disse: ‘Meg, tem uma menina vindo de Alagoas aqui para o Rio, conhecida de um amigo meu, e ela queria fazer um teste no Vasco. Você conseguiria ajudar?’ Eu disse: ‘Claro’. Liguei para a Helena (Pacheco, treinadora do time principal) e a gente marcou um dia”, lembra.
A menina de Dois Riachos era Marta Vieira da Silva, a atual Rainha do Futebol. Com 14 anos, a magricela Marta fez um teste em uma pelada armada por Helena no campo da extinta Varig, na Ilha do Governador. Meg não esquece aquela manhã ensolarada de uma terça-feira, quando viu “a magia daqueles pés com os próprios olhos”. “Ela acabou com o jogo. Driblava todo mundo para frente, para trás, para um lado, para o outro. Parecia estar voando. Todos ficaram de queixo caído, olhando um para o outro. Ela sabia tudo. Estávamos de frente para uma coisa de outro mundo.”
Naquele mesmo ano, Sissi, que jogava no time profissional do Vasco, treinou algumas vezes contra meninas da categoria inferior. E a Imperatriz logo reconheceu a Rainha, hoje consagrada e considerada a melhor de todos os tempos. “Nos treinos, ela simplesmente vencia jogos sozinha contra o nosso time, que era uma seleção. Eu não tive a felicidade de jogar ao lado dela. Imagina nós duas? Eu criando e a Marta finalizando? Ela era genial. Dava para ver ainda menina. Com 14 anos, uma criança, veja bem, Marta já era Marta, essa de hoje. Não há de existir coisa igual.”