Lauren Peace/Justice for All | Arte: Carla Miranda Vasfije Krasniqi-Goodman
‘A palavra de ordem sempre foi proteger os homens, pais ou irmãos, pois eles é que poderiam morrer’, conta Vasfije Krasniqi-Goodman

‘Preferia morrer a ser estuprada’, diz vítima do Kosovo à espera de Justiça

Nenhum homem foi condenado entre os 20 mil casos de violência sexual registrados durante a guerra nos Bálcãs, que completa 20 anos

Um policial sérvio bateu à porta de Vasfije Krasniqi-Goodman à procura dos homens da casa. Era 14 de abril de 1999, em meio à Guerra do Kosovo. Apenas a menina e sua mãe estavam em casa. Vasfije foi arrastada a um vilarejo próximo, onde foi violentada durante algumas horas por dois homens. “Quando me levaram, achei que iriam me matar. Eu com certeza preferia morrer a ser estuprada. Eu tinha 16 anos e mal conhecia a vida.”

Vasfije foi uma das cerca de 20 mil pessoas que teriam sido estupradas, pela estimativa usada pela Anistia Internacional e por ONGs — homens também, em menor escala — por agentes de forças militares e paramilitares sérvias, durante o conflito entre Kosovo e Sérvia. Poucas mulheres falam abertamente sobre a violência sexual que sofreram, mas todas compartilham a injustiça de não ver os culpados responsabilizados. Desde o fim oficial da guerra, há exatos 20 anos, nenhum homem sérvio foi condenado.

A prática de estupro contra vítimas civis é frequentemente usada como arma de guerra. Geralmente executados de forma coletiva no Kosovo, os crimes sexuais podiam acontecer em meio às massas de refugiados que se deslocavam para fora do país ou até mesmo dentro das casas daqueles que ficavam. Muitas vezes, a violência sexual era cometida na presença de parentes.

“A palavra de ordem sempre foi proteger os homens, pais ou irmãos, pois eles é que poderiam morrer”, conta Vasfije. Dessa forma, durante o conflito entre Kosovo e Sérvia, a maioria deles ou estava refugiada em outros países (caso do pai da menina, que vivia na Alemanha) ou havia deixado suas famílias para lutar com o Exército de Libertação do Kosovo (ELK), como havia feito um dos irmãos de Vasfije.

Durante o conflito, na primavera europeia de 1999, as tropas do general sérvio Slobodan Milosevic levaram a cabo um processo de genocídio no Kosovo, expulsando pessoas de suas casas e capturando qualquer homem albanês em idade de combate. O que se sucedeu foi uma política sistemática de estupros perpetrados por militares e paramilitares sérvios. Após o fim oficial do conflito, em 10 de junho, foram registrados estupros de mulheres sérvias e outras minorias étnicas, desta vez por homens do ELK, como uma forma de retaliação.

Sofrimento das vítimas de violência sexual

“O estupro em si foi uma experiência traumatizante. Contudo, a vida após o estupro foi agonizante para a maioria delas”, afirma Feride Rushiti, fundadora do Centro de Reabilitação Kosovar para Vítimas de Tortura (KRCT). As mulheres que foram estupradas durante a guerra tiveram consequências incapacitantes. Algumas desenvolveram esquizofrenia após ver filhas sendo violentadas. Outras, grávidas quando sofreram a violência sexual, nunca mais puderam ter filhos.

Essa situação se agrava ainda mais porque o estupro é considerado uma ofensa não apenas contra a mulher, mas contra a honra da família. Assim, o tema se tornou um tabu e foi mantido em segredo dentro do círculo familiar. “As pessoas se referem àqueles que morreram como se fossem mártires. Por outro lado, o estupro era tratado como uma vergonha”, explica Feride.

Nebahate Zekaj/KRCT | Arte: Carla MirandaFeride Rushiti, fundadora da ONG Centro de Reabilitação Kosovar para Vítimas de Tortura
‘As pessoas se referem àqueles que morreram como se fossem mártires. Por outro lado, o estupro era tratado como uma vergonha’, explica Feride Rushiti

Entre as mulheres que falaram de seu estupro com a família, há aquelas cujos maridos pediram divórcio ou foram expulsas de casas pelos próprios filhos. Índices de violência doméstica se intensificaram e Feride diz que muitas mulheres não conseguiram continuar sua formação educacional nem sequer formar uma família. “O estupro acabou com o sonho de uma vida normal. Por isso, elas dizem que era melhor ter sido mortas com um tiro do que viver após o estupro.”

Vasfije conta que procura aproveitar a vida com as duas filhas ao máximo, mas o sofrimento, a dor e a mágoa farão parte dela para sempre. “É algo que jamais esquecerei. Eu terei paz em minha alma no dia em que a Justiça for feita.” A jovem do Kosovo reportou o crime na época, esperando que a Organização das Nações Unidas (ONU) apurasse o caso. Ela descobriria, no entanto, que o caminho para a Justiça seria mais tortuoso do que imaginava.

Denúncias de estupro sem condenação

Um relatório divulgado em dezembro de 2017 pela Anistia Internacional acusa a missão da ONU, que esteve no país logo após o fim da guerra, de deixar a investigação da violência sexual durante o conflito em segundo plano. O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia condenou apenas quatro oficiais sérvios de alto escalão pelos crimes de guerra praticados na Guerra do Kosovo, incluindo a política de estupros sistemáticos de mulheres kosovares como um crime contra a humanidade. No entanto, nenhum estuprador foi condenado pelo tribunal.

A Anistia Internacional também apontou erros que teriam sido cometidos nas investigações comandadas pela ONU e que viriam a impedir as condenações em julgamentos futuros. Em muitos outros casos, denúncias feitas pelas próprias vítimas não tiveram sequer investigações abertas. Presidente do Kosovo entre 2012 e 2016, Atifete Jahjaga avalia falta de profissionalismo pelos investigadores das Nações Unidas em muitos casos. “Eles não conduziram investigações quando tinham evidências suficientes para tal. As vítimas estão aí, vivem entre nós.”

Norik Uka/Jahjaga Foundation | Arte: Carla MirandaAtifete Jahjaga, ex-presidente do Kosovo
‘Levar todos os perpetradores a julgamento é nosso dever moral e institucional. Essa cultura de impunidade é algo que não pode jamais ser explicado’, afirma a ex-presidente do Kosovo Atifete Jahjaga

Insatisfeita com a injustiça, Vasfije denunciou novamente seus estupradores em 2010, dessa vez para a Missão de Polícia e Justiça comandada pela União Europeia (Eulex). Após uma primeira absolvição, eles foram condenados em uma instância superior. “Quando recebi o telefonema sobre a condenação, foi o dia mais feliz da minha vida. Eu jamais esquecerei aquela ligação”, conta a kosovar. O caso, porém, chegou até a Suprema Corte, onde considerou-se que as provas apresentadas eram insuficientes para confirmar a identidade dos estupradores “além de qualquer dúvida”. “Quando soube que eles foram inocentados, fiquei devastada. Foi literalmente como ser estuprada novamente.”

Um terceiro tribunal é responsável pelos casos de violência sexual na guerra do Kosovo. Com sede em Belgrado, na Sérvia, a Câmara Especial para Crimes de Guerra julgou dois homens albaneses e um deles foi condenado. Ex-combatente do ELK, Anton Lekaj foi considerado culpado, em 2006, pelo estupro de uma garota menor de idade e um homem, ambos ciganos, na noite de 12 de junho de 1999. Ou seja, o crime ocorreu após o fim da guerra.

A ex-presidente Atifete acusa a Sérvia de dificultar a condenação dos estupradores, uma vez que eles trabalhavam para o regime de Milosevic e alguns ainda ocupam cargos de alto escalão. Assim, ela diz que apesar da pressão da comunidade internacional e das iniciativas do Kosovo, o país vizinho se recusa a assinar acordos de extradição e não autoriza sua entrada em mecanismos de cooperação criminal, como a Interpol ou a Europol. Segundo Atifete, seriam os primeiros passos para lidar com esse tipo de crime.

“Levar todos os perpetradores a julgamento é nosso dever moral e institucional. Essa cultura de impunidade é algo que não pode jamais ser explicado”, diz a ex-presidente, enfatizando que as sobreviventes só terão suas necessidades completamente supridas quando a Justiça funcionar.

Sobreviventes de crimes de guerra

O trabalho feito por ONGs como o Centro de Reabilitação Kosovar para Vítimas de Tortura (KRCT) com os sobreviventes é fundamental. Durante três anos, essas organizações promoveram uma campanha intensa com a sociedade civil, órgãos públicos e a mídia para que o sofrimento das vítimas fosse reconhecido. O estigma e o tabu envolvendo o tema, porém, não seriam superados facilmente. Em 2013, uma advogada e defensora dos direitos humanos foi espancada quando entrava em seu apartamento. Uma semana antes, ela recebera uma carta que dizia: “Não proteja a vergonha. Do contrário, vamos te matar”.

Cerca de um ano depois, o Parlamento aprovou uma emenda na lei que incluiu os sobreviventes de violência sexual na categoria de vítimas civis da guerra. Isso foi uma grande conquista, pois permitiria que pudessem solicitar uma reparação mensal ao governo. A mobilização feita por ativistas, ONGs e vítimas criou um momento oportuno para as mudanças. No mesmo ano de aprovação de emenda à lei, a ex-presidente Atifete criou o Conselho Nacional para Sobreviventes de Violência Sexual, que uniu representantes dos Poderes Legislativo e Executivo, agentes internacionais e sociedade civil em prol dos sobreviventes.

Ilir Blakcori/MolosGroup | Arte: Carla MirandaObra 'Heroinat', do artista Ilir Blakcori
A obra ‘Heroinat’ foi construída para homenagear as mulheres vítimas da guerra

No Kosovo, uma lei tem até seis meses para entrar em vigor após ser aprovada. Neste caso, as vítimas só puderam começar a se inscrever em fevereiro de 2018. Esse intervalo de quatro anos foi usado pelas ONGs para desenvolver um procedimento de inscrição que atendesse às necessidades das vítimas. As organizações conseguiram que o relato de sobreviventes de violência sexual tivesse mais importância no processo do que documentos comprobatórios, por exemplo. “A maioria das mulheres não tem nenhum documento”, conta Feride. “Mesmo aquelas que tinham algum laudo médico ou outro papel, os destruíram para apagar qualquer vestígio do estupro.”

O pedido feito pelo sobrevivente é analisado por uma comissão, que decide se está apto a receber uma pensão mensal de € 230 (cerca de 87% do salário médio de uma mulher no país, de acordo com a Anistia Internacional). Esse valor é fundamental para a independência das vítimas, mas muitas vezes é usado para comprar os medicamentos de seu tratamento. O governo não fornece nenhum remédio, apenas paga às ONGs para oferecerem acompanhamento psicossocial.

“O tratamento de saúde é um vazio legislativo”, avalia Feride. Além disso, ela considera que o processo de avaliação para conceder a pensão pode demorar muito e causa ansiedade nas sobreviventes. De acordo com a ex-presidente Atifete, cerca de 1.300 pedidos foram feitos até o momento e 300 benefícios foram concedidos.

Prazo curto para pedidos de reparação

O Comitê de Verificação, que analisa os pedidos de pensão, recebeu orçamento para trabalhar por apenas cinco anos, o que preocupa a Anistia Internacional quando se compara os resultados obtidos nos países da região. Na Bósnia e Herzegovina, por exemplo, a legislação para fornecer pensões a sobreviventes de estupros foi instituída em 1999. Desde então, de um total de 20 mil vítimas estimadas, apenas 800 haviam recebido a compensação do governo até 2017. Feride explica que o progresso da adesão dos sobreviventes nos primeiros anos de execução da medida dará fundamento para um futuro pedido de prorrogação do prazo. “As vítimas precisam de mais do que cinco anos para vencer o estigma e se inscrever no programa”, conta a fundadora do centro de reabilitação.

O relatório da ONG internacional ainda condena o fato do período oficial da guerra ter sido escolhido como o período de elegibilidade para a aprovação da pensão mensal. Dessa forma, a organização acusa a legislação de ser “discriminatória” contra sérvias e outras minorias, uma vez que elas foram estupradas, em sua maioria, após a intervenção militar internacional, como retaliação das ações sérvias.

Atifete nega que a lei seja discriminatória. Reforça que a pensão mensal é concedida a vítimas civis da prática de estupro como arma de guerra e que essa acabou no dia 10 de junho. Feride reconhece o problema, mas diz que os sobreviventes de estupro foram incluídos em uma lei já existente para outras categorias de vítimas civis da guerra. Por isso, era preciso respeitar o prazo determinado por ela.

Desintegração da Iugoslávia e a crise no Kosovo

Até a década de 1990, a Iugoslávia era composta de seis repúblicas: Bósnia e Herzegovina, Croácia, Eslovênia, Macedônia, Montenegro e Sérvia. O Kosovo era uma província autônoma até 1989, quando Milosevic retirou sua autonomia. A partir de então, aumentou gradualmente a presença militar na região e iniciou uma campanha de violação sistemática dos direitos humanos. A província possuía valor histórico para os sérvios, mas sua população era composta por 90% de albaneses étnicos. Preocupados com a forma como o governo havia atacado a Bósnia de 1992 a 1995, homens kosovares se uniram no ELK para lutar por sua autonomia. Isso levou, em 1998, a um conflito armado interno.

Temendo uma repetição do banho de sangue como o ocorrido na Bósnia, a Otan bombardeou a Sérvia entre 24 de março e 10 de junho de 1999 como forma de intimidar Milosevic. Em vez de frear os ímpetos do general, o efeito foi o contrário. Militares sérvios promoveram um genocídio no Kosovo. Trabalho da ONG Humanitarian Law Center Kosovo identificou cerca de 13 mil mortos.  Ainda, 1.600 permanecem desaparecidos em valas comuns, conta a ex-presidente Atifete.

Em junho de 1999, o Conselho de Segurança da ONU estabeleceu uma missão de administração com amplos poderes executivos no Kosovo. O órgão supervisionou o país até 2008, quando este declarou independência unilateralmente. A missão da ONU foi substituída por outra, liderada pela União Europeia de poderes executivos limitados, mas com responsabilidade de investigar e julgar os crimes de guerra de acordo com leis internacionais.

Atualmente, 116 países reconhecem a independência do Kosovo, segundo o Ministério de Assuntos Exteriores do país. O Brasil não consta da lista, assim como a Sérvia.