Querida mamãe,
Eu sei que há muito tempo não chamo você assim. Não me lembro quando parei, nem o motivo. Talvez tenha sido para mostrar que cresci – como se isso não fosse óbvio. Ou por alguma vergonha que agora me parece sem propósito. Sabe o que é estranho? Quando penso em você, penso deste jeito: Mamãe.
Claro que você deve ter notado essa troca muito antes de mim. E me deixou livre para chamá-la como eu quisesse. Aliás, me deixou livre para ser quem eu sou. Também me incentivou a ser independente. Com palavras e com exemplo. Com você aprendi que os relacionamentos devem ser de igual para igual. Que não devo ligar quando dizem que algo é “serviço de homem”. Afinal, na nossa casa, você foi eletricista, encanadora, quebradora de todos os galhos.
Lembro perfeitamente que brinquei como eu queria quando era criança. De boneca e de carrinho. O mesmo valia para as amiguinhas e os amiguinhos que iam nos visitar. Éramos apenas crianças. Aquelas coisas espalhadas no chão, numa pilha tremenda de bagunça, eram apenas brinquedos. E tudo era divertido.
Você sempre fez questão de ressaltar as nossas qualidades, as minhas e as da minha irmã, com adjetivos que iam bem além da beleza. Para você, sempre fomos inteligentes, alegres e espontâneas. Instigar nossa curiosidade era algo cotidiano. Por falar em curiosidade, acabei de lembrar de uma história e já estou rindo sozinha aqui.
O que foi aquele seu dia de mamãe-feiticeira-ícone? Não dá para esquecer. Minha irmã tinha 13 anos e você foi chamada à escola porque ela e uma amiga estavam lendo sobre Wicca. A diretora disse estar muito preocupada com os desenhos de pentagramas que ela fazia (não consigo parar de rir). Você disse para a diretora, em plena reunião, que também era bruxa. Só você, mãe, para desconstruir uma humilhação pública de forma tão bem-humorada: “Tenho um caldeirão no meio da minha sala. Posso transformá-la em um sapo”. E assim terminou a conversa.
Você sempre soube nos proteger, essa é a mais pura verdade. Do frio e do mundo. Quem me defendeu na primeira vez em que me vi numa situação de assédio? Mamãe. Na época, eu nem sabia que o nome era esse (o crime hoje é tipificado como importunação sexual). Só tinha consciência de que estava incomodada com aquele senhor querendo encostar em mim na fila da farmácia. Eu estava com 11, 12 anos, e meu corpo tinha começado a mudar. Eu dava um passo na fila. E o homem dava dois, tentava se esfregar em mim. “Desencosta que a filha é minha”, você gritou. Gritou mesmo.
Limite para nos defender você nunca teve. Chegou a repreender dois policiais que me olharam de forma desrespeitosa na rua. Eu estava me sentindo desconfortável e você lutou por mim. O desacato era deles, não seu.
Foram tantas, mas tantas as vezes em que me protegeu. Posso contar uma coisa? Lembro de cada uma delas. Agradeci, mas ainda acho que foi pouco.
Aquele meu namoradinho de adolescência, que resolveu fazer piada e implicar com o tamanho da minha saia? Sua resposta foi rápida: “Quem comprou essa saia fui EU, ela vai usar SIM. E se você não estiver gostando, o problema é SEU”.
O garoto não tinha a menor chance contra VOCÊ, a mulherona que brigou até com um cara que roubou a nossa casa. Muita gente não faria isso. Mas o resultado foi que ele devolveu todas as coisas.
Não deixo de pensar no quão batalhadora você sempre foi. Cuidou dos filhos, estudou, trabalhou. Respeitou, mas exigiu respeito de volta.
Tenho plena consciência de que todos os dias são seus. Mas achei que hoje era um bom momento para escrever esta carta e falar das muitas vezes em que tive orgulho de você. E de ser sua filha.
A carta acima foi construída a partir dos depoimentos de nove jovens. Confira o que elas disseram sobre suas mães:
Manuela Miniguini, de 16 anos, estudante (Sorocaba/SP)
“O mais incrível da minha mãe é como a relação dela e do meu pai é tão de igual para igual. Às vezes, até penso que ela é a cabeça da casa, porque sempre dá a palavra final. Outra coisa é que toda vez em que a casa precisa de uma reforminha, ela vai lá e faz tudo.”
Rafaela Pereira Cezar, de 18 anos, autônoma (Tucuruí/PA)
“Meus pais se separaram. Minha mãe é a encanadora da casa, a eletricista. Tudo o que a sociedade considera ‘serviço de homem’ ela faz.”
Isabela da Silva Zembrzuski, de 23 anos, estudante de Psicologia (Brasília/DF)
“Minha mãe sempre foi um hino. Nos criou sem nunca dizer ‘isso não é coisa de menina’ ou ‘se comporte como uma menina’. A gente se comportava e brincava como crianças, apenas. Ela ainda deixava os meninos que iam lá em casa brincar de boneca. Sempre elogiou nossa criatividade, humor e inteligência, e não só aparência. Sempre nos ensinou que a gente devia ser independente financeiramente – casar nunca foi a meta lá em casa, o importante era crescermos mulheres bem-sucedidas e felizes. Ela trabalhou e estudou muito. É médica, pós-graduada e chefe da área dela no hospital. Também é 100% aberta para aprender e mudar de pensamento. Sempre que eu posso, estou aplaudindo minha mãe.
Amanda Berdat Nery, de 22 anos, estudante (Campinas/SP)
“Eu tinha uns 11 ou 12 anos e estava na fila de uma farmácia. Um idoso que estava atrás de mim foi chegando muito perto. Eu dava um passo para frente, ele dava dois. Minha mãe chegou para me encontrar, viu a situação e berrou: ‘Desencosta que a filha é minha’. Todo mundo olhou para ele, que ficou vermelho de vergonha. Na época, não sabia o que aquilo significava, mas hoje sei. Olha, minha mãe é uma mulherona.”
Débora Boeckel, de 23 anos, socióloga (Fortaleza/CE)
“Quando eu tinha 13 anos, estava andando com minha mãe no centro da cidade e uns policiais começaram a me olhar e a fazer comentários. Minha mãe percebeu e gritou com os policiais. Lembro de achar que ela era demais. Eu só senti desconforto e medo. E ela foi lá e se arriscou a tomar um desacato.”
Janaina da Conceição Silva, 25 anos, analista jurídica (São Paulo/SP)
“Minha mãe sempre me disse que os homens veem a gente como objeto. Não acho que ela se considere feminista, mas é. Lembro até hoje de duas situações. A primeira foi quando comecei a me desenvolver um pouquinho, por volta dos 12, 13 anos. Um cara que morava na frente da minha casa falava alguma coisa toda vez que eu saía. Eu ficava muito incomodada. Um dia, minha mãe me pediu para ir comprar algo. Eu disse que não iria porque ele estava na rua. Quando contei o motivo, ela saiu atrás do cara. Ele nunca mais fez graça nenhuma. A outra foi quando comecei a namorar. O menino fez alguma piadinha sobre a roupa que eu estava usando. Ela falou: ‘Quem comprou essa saia fui EU e ela vai usar SIM. E se você não estiver gostando, o problema é SEU’.”
Fernanda Georges, 23 anos, auxiliar de escritório (Canela/RS)
“Uma vez, um cara assaltou nossa casa. Descobrimos quem foi. Minha mãe foi atrás dele e brigou tanto que ele chorou e devolveu as coisas que roubou. Eu amo. Fora que ela é super para frente. Ela sempre diz que é para eu aproveitar bem a minha vida e não pensar no que os outros vão dizer.”
Bárbara Olops, de 24 anos, designer gráfica e ilustradora (Holambra/SP)
“Ela desafiou meu pai e foi para a faculdade com mais de 30 anos e dois filhos pequenos. Começou a trabalhar e se formou só com nota boa! Minha mãe também se tornou maratonista sozinha – uma das primeiras da região. As pessoas xingavam na rua, mandado que ela fosse lavar louça, mas minha mãe seguiu forte. Hoje, mantém um grupo de mulheres corredoras. São mais de 30 pessoas e treina todas elas. Orgulho!”
Rachel Rogerio, de 32 anos, jornalista (Rio de Janeiro/RJ)
“Minha mãe foi a mais ícone de todas quando a diretora da escola disse que minha irmã, então com 13 anos, estava praticando bruxaria (gente, não consigo nem falar isso sem rir, sério). Ela e uma das amigas apenas estavam lendo sobre Wicca. Na reunião, a diretora também disse que estava preocupada porque minha irmã vinha desenhando pentagramas. Minha mãe, que no dia anterior tinha feito um curso rápido de Wicca com a ajuda do Google, respondeu: ‘O colégio não tem religião. Então, não estou entendendo por que você está expondo minha filha assim’. A diretora arregalou os olhos. Minha mãe continuou: ‘E se eu disser que não é só ela que é bruxa? Também sou. Tenho um caldeirão no meio da minha sala. Isso significa que posso transformar você num sapo’.”