Às vezes, santas. Em outras, nem tanto. Não são poucas as mulheres em músicas de compositores brasileiros. Existem os que fazem declarações de amor e os que não economizam palavras para objetificar e ofender suas fontes de inspiração. E há ainda os que enaltecem suas musas ou dão a elas a voz de protagonista nas letras, casos de Jorge Ben Jor e Chico Buarque, dois campeões em cantar o gênero feminino no Brasil.
O Estado analisou 130 canções com nomes de mulheres no título, todas escritas por homens, e consultou especialistas para comentar como o gênero feminino é retratado e para contextualizar a época em que algumas dessas músicas foram compostas. Desde as recatadas como a Amélia, de Ai, Que Saudades da Amélia, de Mário Lago, até as mais empoderadas ou perversas, como a Silvia “piranha”, de Marcelo Nova, passando pela Renata “ingrata”, do hit de Latino nos anos 2000, e pela Anna Julia, do clássico de Los Hermanos.
A música popular tem uma conexão muito forte com os valores da sociedade, não só com os dominantes – da moral, da política, dos costumes –, mas também com aqueles que são críticos, afirma o professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) Marcos Napolitano. Segundo ele, ao compor, os autores dialogam com perspectivas não apenas próprias, mas que circulam na época em que as canções foram compostas. “A partir de valores masculinos, os autores incorporam questões que estão soltas na sociedade e dão forma musical e poética”, explica o especialista em relações entre música e história.
Existem as canções que reafirmam uma visão tradicional de mulher – próxima de uma ideia de pureza e ingenuidade – e outras que afirmam representações resultantes de mudanças de padrões de comportamento. O professor da USP lembra, por exemplo, da “garota papo-firme” da Jovem Guarda. Embora o movimento fosse vanguarda, ele comenta que ela refletia a mulher que assustava: “Ela usa minissaia, tem ideias, opiniões, não se submete”.
Um dos gráficos elaborados pelo Estado traz a escala “De Amélia a Silvia, piranha”, uma análise de como os eu-líricos masculinos retratam as mulheres, nas 130 canções analisadas.
O fato de ter os nomes das mulheres nos títulos reforça a ideia da musa inspiradora nas músicas, não do protagonismo da mulher, com fala própria, de acordo com Isabel Nogueira, professora de Musicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Parece que as mulheres estão ocupando esse espaço, mas isso é um engano, porque são cantadas do ponto de vista dos homens.” Segundo Isabel, as formas de representação estão diretamente relacionadas ao papel das mulheres e à falta de diversidade na música, meio em que elas foram aceitas como cantoras, nem tanto como compositoras. “A visão feminina pode trazer o que é do dia a dia, de verdade, não a idealização das musas.”
Pagu, composta por Rita Lee e Zélia Duncan em 2000, é um exemplo de como a figura feminina é mostrada de forma diferente por compositoras. O título faz referência ao pseudônimo da jornalista e escritora Patrícia Galvão, conhecida por sua atuação no movimento modernista brasileiro. A letra retrata uma mulher independente, que rejeita os rótulos. “Não sou freira, nem sou puta”, diz o eu-lírico em um trecho.
Essa dicotomia – ou boazinha ou aquela que subjuga o homem e o faz sofrer – reflete bem o modo como as mulheres costumam ser mostradas em músicas feitas por homens, segundo a professora que coordena um grupo de pesquisa sobre gênero e música na UFRGS. “São retratados só os estereótipos. Quanto mais empoderada, mais perversa. Significa que magoou, não fez bem. E, quando é submissa, aí está bom”, comenta.
As musas de Chico, Ben Jor e Rennó
Essa abordagem é frequente, porém, não é a única. Chico, por exemplo, abarca a mulher em sua complexidade, lembra Marcos, professor da USP. “Chico tem um repertório cultural mais amplo. As questões são mais complexas, mais ricas, falando de questões comportamentais diversas, evitando clichê para falar da questão feminina, tentando retratar os sentimentos que estão em jogo.”
Com Carolina, Beatriz e tantas outras, Chico é o campeão de músicas analisadas no levantamento realizado pelo Estado, com 22 canções. Jorge Ben Jor, que homenageia sua mulher Domingas Terezinha em Cadê Tereza?, Maria Domingas e Terezinha, vem em seguida, com 12 composições contempladas na reportagem. Ben Jor também teve outras fontes de inspiração entre famosas. Rita Lee foi cantada em Rita Jeep; Marylin Monroe, em Norma Jean; e Astrid Fontenelle, em Funk Astrid. Xica da Silva ganhou o título completo da música.
A tal ideia de “musa inspiradora” reflete um pensamento de idealização que pode ser verificado em outras duas músicas brasileiras. Elas não carregam nomes femininos em seus títulos, mas pretendem homenagear as mulheres: Todas Elas Juntas Num Só Ser, de Carlos Rennó, e Mulheres, de Toninho Geraes.
Carlos Rennó reuniu mulheres com nomes de música e músicas que falavam de mulheres, no Brasil e no mundo, em uma só faixa. O resultado: 443 musas inspiradoras. “Por meio de alucinantes enumerações sem fim, ele (Rennó) declara amor a todas as mulheres que coexistem numa só, valendo-se para isso de uma espécie de somatória total do elenco de personagens femininas da canção brasileira e estrangeira como se pudesse esgotar o paradigma”, resume o compositor José Miguel Wisnik, professor de Literatura da USP, no livro Canções (Perspectiva, 2018), escrito por Rennó.
Quase dez anos depois, entre ideia e finalização da letra, em 2004, a música de Rennó – ou pelo menos a primeira parte dela – ganhou o mundo na voz de Lenine, em versão ao vivo gravada na Cité de la Musique, em Paris. A parceria rendeu à dupla o Prêmio Tim de música em 2005.
“Eu quis fazer um poema sobre e para a mulher. Algo grande que expressasse com exaustão a grandeza que representa para um homem, ou para quem ame uma mulher, a mulher. É como se fosse uma montanha, entende?”, explica o autor, ressaltando que a letra não se refere a alguém específico, mas sim a cada mulher que ele já teve e à mulher que ele ainda venha a ter.
De acordo com Rennó, o objetivo era demonstrar a grandiosidade do amor que alguém sente por uma mulher. Ou, nas palavras do compositor Bráulio Tavares, “a mulher que contém em si todas as mulheres, e a canção de amor que contém em si todas as canções”. Se Rennó vai parar por aí? “Eu já estou sentindo borbulhar a vontade de continuar, citando alguma coisa da Marília Mendonça, Wesley Safadão”, revela.
Já Mulheres, composta por Toninho Geraes e eternizada na voz de Martinho da Vila, ainda que não traga o nome de nenhuma musa específica, tenta abranger em si todos os tipos possíveis de mulheres. Não importa: seja do “tipo atrevida”, do “tipo acanhada” ou do “tipo vivida”, a canção homenageia de “donzela” a “meretriz”.
A faixa, segundo Martinho, é motivo recorrente de ciumeira por causa das tantas mulheres contidas na letra. “Algumas pessoas falaram que tinham namorada ou companheira que odiavam essa música porque ficava falando de mulher. Depois, ficavam insistindo e as parceiras acabam entendendo a música. Já conheci até quem resolveu se casar com essa música, não é legal?”
Outro gráfico elaborado pelo Estado mostra as 130 composições variando entre “vale tudo” e “vale nada” (eixo horizontal) e entre “faz sofrer” e “faz feliz” (eixo vertical), de acordo com a maneira como a mulher é retratada na canção.
Ai, Que Saudades da Amélia, de Mário Lago e Ataulfo Alves (1942)
Em um dos extremos do gráfico está Ai, Que Saudades da Amélia, quase santificada em terra pelos compositores Mário Lago e Ataulfo Alves. Ela, que “não tinha a menor vaidade” e era “a mulher de verdade”, foi eternizada no imaginário popular como um exemplo a ser seguido ou, em outros casos, desconstruído.
Em 1942, ano da composição, o Brasil vivia sob a ditadura do Estado Novo. As mulheres, à época ainda bastante vinculadas ao espaço doméstico, haviam conquistado o direito de votar apenas dez anos antes. É nesse cenário de submissão que nasce Amélia, como a música é popularmente conhecida. “As normas do período acabavam sacramentando a condição de inferioridade da mulher”, comenta Adalberto Paranhos, docente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
A professora do Departamento de Música da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Regina Machado pensa o mesmo sobre a época. “Era o olhar de que a mulher teria papel específico de submissão, e que isso a faria uma mulher de verdade. Ela não exigia nada, era uma figura que se anulava para as boas realizações do marido.”
Já o professor Marcos Napolitano, do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), diz que o predomínio era da ideia de uma mulher mais romântica. “Era mais próxima da santa, da mãe da pureza, da ingenuidade, valores típicos do século 19 e do começo do 20.”
Conceição, de Cauby Peixoto (1956)
Em uma época em que nem se sonhava com a expressão “mulher empoderada”, a musa de Cauby Peixoto foi uma mulher que rompeu com os costumes da época e “desceu do morro” para tentar mudar de vida, mas acabou decaindo moralmente frente à sociedade. É o que conta o professor Marcos: “Essa canção é interessante porque, apesar de falar da demanda por liberdade, reafirma que isso traz um risco, uma ilegitimidade. É uma visão bastante machista e conservadora, apesar de a canção retratar a mudança nos tempos”.
Geni e o Zepelim, de Chico Buarque (1978)
No quesito “vale nada”, Geni e o Zepelim recebeu nota máxima. A famosa canção de Chico Buarque, originalmente composta para a peça de teatro Ópera do Malandro, conta a história da prostituta Geni, retratada como uma mulher “feita pra apanhar” e “boa de cuspir”. A música, no entanto, ao contrário do que muita gente pensa, não faz apologia a discursos moralistas, mas os ironiza, em plena ditadura militar brasileira.
Sempre humilhada – apesar de muito procurada por homens e mulheres quando o assunto é sexo –, Geni só foi valorizada brevemente quando aceitou “passar a noite”, de acordo com a música, com o capitão do Zepelim, para evitar que ele cumprisse a ameaça de bombardear a cidade. Apesar de ter atendido ao pedido dos cidadãos contra a sua vontade, já no dia seguinte a prostituta voltou a ser alvo da sociedade.
Marcos, historiador da USP, destaca que em Geni e o Zepelim, pela primeira vez, a figura de uma travesti aparece na música brasileira. Para o especialista em relações entre história e música popular, a composição traz um olhar provocativo sobre as relações de gênero, os valores da sociedade, o poder entre homens e mulheres e essa outra identidade.
Silvia, de Marcelo Nova (1995)
A dona dos extremos dos gráficos é Silvia, chamada diversas vezes de “piranha” na música escrita por Marcelo Nova, da banda Camisa de Vênus. Na música, o eu-lírico é um companheiro ciumento que desconfia estar sendo traído. “Todo homem que sabe o que quer / Pega o pau pra bater na mulher” é um dos trechos polêmicos.” Em entrevista ao programa Pânico, da rádio Jovem Pan, em março deste ano, Nova admitiu que, se fosse lançada hoje, a faixa escrita em 1995 não seria bem vista diante do que chamou de “patrulha do politicamente correto”.
Renata, de Latino (2005)
Um dos sucessos do cantor Latino, Renata agitou as festas brasileiras nos anos 2000. A mulher cantada atingiu nota 8 nos quesitos “fazer sofrer” e “vale tudo”, já que o eu-lírico diz ter aberto mão de “bingo, night, futebol e amigos” pela amada – e ela, “ingrata”, teria trocado seu amor por uma “ilusão”.
Apesar de nunca ter declarado oficialmente quem é a Renata que “plantou sacanagem e colheu solidão”, Latino lançou a música em 2004, dois anos depois da separação dele com a cantora Kelly Key, que se casou novamente, desta vez com o empresário angolano Mico Freitas.
Além de Renata, Latino também cantou Cátia Catchaça (2006), uma ode à pinga, apelidada carinhosamente de Cátia: “Tenho ciúmes / De alguém chega na Cátia / Ela é como namorada / Companheira de deprê”.
Vânia, da Banda Uó (2012)
Esta empata com a Silvia do Camisa de Vênus. A música da Banda Uó mostra uma mulher “muito louca”, que “vomita na calçada”. O verso “Tarada, safada, a Vânia não vale nada” mostra um eu-lírico que faz juízo de valor em relação à vida sexual de Vânia.
Capitu, de Luiz Tatit (2007)
A Capitu de Luiz Tatit é, sim, a mesma de Dom Casmurro – e as referências ao romance estão presentes em versos como “A ressaca dos mares” e “A traição atraente”. Antes sem nome, a melodia precisou ser adaptada para a dona da narrativa. “Eu tentei com outros nomes, mas não dava certo”, conta Tatit. A partir da escolha da personagem de Machado de Assis para representar “a mulher em milhares”, a letra fluiu.
Luiz Tatit, além de analisar o papel da mulher na música brasileira, deu uma palhinha de Capitu.
Confira o vídeo: