Olhos de cigana oblíqua e dissimulada, na opinião do agregado José Dias. Olhos de ressaca, nas palavras redentoras do ainda enamorado Bentinho. Que olhar é este de Capitu, que mantém a força de sua atração 120 anos depois da publicação de Dom Casmurro? Nem detrator, nem apaixonado. Desafiamos aqui dez mulheres a retratar em suas respectivas artes o enigma de Capitu.
Ilustradora, cartunista, quadrinista, fotógrafa, designer, tatuadora, artistas plásticas. Todas também responderam o que a personagem representa para elas, como mulheres, e quem Capitu seria hoje em dia. “Ela é aquela moça da esquina ou a outra de terno que vai atravessando a rua para beijar a sua namorada. Ou, então, a cobradora do ônibus”, escreveu Maria Xilo, jovem artista plástica de 15 anos. Para a tatuadora Malfeitona, Capitu é todas as mulheres.
Perguntamos ainda o que de mais impressionante esses olhos presenciaram em seus 120 anos de existência. “O certo e errado foram reescritos diversas vezes ao longo desse tempo”, disse a ilustradora Manu Cunhas. “A diminuição dos preconceitos”, lembrou a fotógrafa Gabriela Biló, do Estadão. São dez olhares, de dez mulheres.
Malfeitona, tatuadora
Depoimento sobre Capitu:
Capitu é todas as mulheres. Bentinho culpava Capitu pelas inseguranças que eram e vinham dele. Vasculhava justificativas e enxergava motivos nas mínimas coisas. Sentia ciúmes até do mar que Capitu olhava, por não saber o que se passava em sua cabeça.
Toda existência de Capitu foi usada contra ela, suas ações e até mesmo sua existência física. Ela é culpada pelos seus olhos “de cigana oblíqua e dissimulada” tal qual absurdamente hoje uma criança violentada é culpada por ter um “olhar de mulher”.
Eva ou Capitu, 120 anos depois, mulheres ainda são vistas como portadoras de um mal inerente e os homens, isentos de responsabilidade. Ainda há uma cultura de culpabilização das mulheres que sofrem com violências sofridas pelos Bentinhos atuais. Também há uma obsessão pelo que as mulheres fazem com suas liberdades individuais.
Há um incômodo social quando não é possível controlar as mulheres, até mesmo o que pensam. A obra evidencia um problema estrutural que, apesar de avanços, ainda existe.
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Manu Cunhas, ilustradora
Qual foi a coisa mais impressionante que os olhos de Capitu viram nesses 120 anos?
Provavelmente, as mudanças nos paradigmas sociais. O certo e errado foram reescritos diversas vezes ao longo desse tempo. Deve ser assombroso perceber as conquistas que tivemos, bem como os retrocessos que vez ou outra damos.
Quem seria Capitu hoje em dia?
Difícil saber, afinal nunca tivemos como conhecer realmente a personagem, a não ser pela visão de seu amargurado ex-marido. Talvez continuasse a ser a mesma, atualizada das necessidades pessoais de uma nova era. O que sabemos é que devia ser resignada, inteligente e complexa demais para o próprio marido compreender.
Seguiu sua própria história, quebrando com a poderosa ideia de casamento até a morte. Se essa personagem seguiu a vida no exterior, deixando a amargura para trás numa época impensável, imagino que hoje faria isso com muito mais agilidade e sem precisar de um oceano de distância para fugir da difamação.
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Maria Xilo, artista plástica
Qual foi a coisa mais impressionante que os olhos de Capitu viram nesses 120 anos?
A mulher se assumir, votar, trabalhar e enfrentar o machismo. Os olhos também viram Betinho assumir sua homossexualidade, viram Maria da Penha nascer e virar lei, e esses mesmos olhos choraram por Marielle. Capitu viu as transformações femininas, mas sempre mantendo seu olhar de cigana que arde.
O que Capitu viu de mais impressionante foi a representatividade da mulher em dizer “eu existo, sou mulher e em meu corpo as regras são minhas”. Capitu viu a mulher enfrentar o machismo, morrer pela luta e não calar sua voz com medo!
Quero citar um frevo de Capiba:
Já se acabou o tempo
Que a mulher só dizia então:
– Chô galinha, cala a boca menino
– Ai, ai, não me dê mais não
Quem seria Capitu hoje?
Aqui no quarto ao lado estou trocando uma ideia com uma Capitu. Ela se chama Vivian, me trouxe ao mundo, é professora, mãe, amiga. Enfim, Capitu.
As Capitus são as Marias, Joanas, Claras. Ela é aquela moça da esquina ou a outra de terno que vai atravessando a rua para beijar a sua namorada. Ou, então, a cobradora do ônibus. São mulheres que veem tudo que acontece, e que fazem questão de ser atrizes principais de seu próprio enredo.
Tenho 15 anos, e nasci Capitu.
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Cris Eiko, quadrinista
Qual foi a coisa mais impressionante que os olhos de Capitu viram nesses 120 anos?
Pode ter sido a emancipação feminina ou o direito ao voto. Mas, também, o fato de, mesmo depois de 120 anos, ainda haver homens que se achem “donos” das mulheres, chegando a matá-las por ciúmes.
Quem seria Capitu hoje em dia?
Com a personalidade dela, creio que ela seria independente, bem-sucedida em uma profissão e não dependeria de Bentinho nenhum. Ela mandaria ele passear ou ir ao psicólogo para superar seu sentimento doentio.
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Gabriela Biló, fotógrafa
Refletindo sobre Capitu, pensei em fazer o abrir e fechar dos olhos como o movimento das ondas do mar, como uma ressaca. Na imagem, o olhar vai se perdendo até desvanecer.
O olhar de Capitu e, Capitu em si, são uma projeção da visão de Bentinho, um olhar masculino sobre o feminino. Em outras palavras, a distorção do que é a mulher faz ela não existir como feminino nessa ótica.
Qual foi a coisa mais impressionante que os olhos de Capitu viram nesses 120 anos?
As conquistas dos direitos humanos, diminuição dos preconceitos e o desenvolvimento da comunicação, que na minha opinião rege a evolução de uma sociedade.
Quem seria Capitu hoje em dia?
Capitu representa o feminino negligenciado. Hoje a vejo como um símbolo da importância da igualdade de gêneros. Capitu e toda a mulher moderna.
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Viviane Jorge, designer
Qual foi a coisa mais impressionante que os olhos de Capitu viram nesses 120 anos?
A evolução da tecnologia. Nem a mente prodigiosa de Machado de Assis seria capaz de imaginar tudo o que aconteceu.
Quem seria Capitu hoje em dia?
Capitu provavelmente seria uma vítima de fake news.
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Luiza Lemos, cartunista
Depoimento sobre Capitu:
Eu sou Capitu, e você não me conhece. Tudo que você sabe sobre mim são palavras amargas de um velho casmurro. Eu fui mulher dedicada e apaixonada, traída pelo homem que amava. Mesmo tendo me esmerado em elaborar planos para que nos casássemos e vivêssemos o amor que ambos declarávamos, fui vitimada por uma relação abusiva de possessão e ciúmes doentios de um homem inseguro e machista. Fui traída por acusações inadmissíveis e banida por insensatez.
Nesses 120 anos que se passaram desde que minha história fora supostamente contada por ele, vi outras iguais se repetirem durante décadas. Vi mulheres fortes e decididas desperdiçarem suas vidas com homens que não as mereciam, e muitas vezes sua insegurança e possessividade, frutos de um amor intenso que foi corrompido, os levou às vias de fato, excedendo limites que meu marido não ousou ultrapassar – o que de maneira nenhuma o faz melhor que os outros.
Vi mulheres que foram agredidas psicologicamente e fisicamente, e que foram mortas ou tiveram seus filhos mortos. Mas também as vi se levantarem contra essa opressão. Eu as vi conquistarem espaços que lhes eram negados e vi um Estado omisso se dobrando a esse brado feminino para criar leis e punir tantas injúrias e crimes. Vejo um mundo que ainda tem muito a progredir, e vejo mulheres que não descansam da luta por todas as outras.
Se eu ainda estivesse viva nos seus dias, eu estaria ao seu lado, mulher. Seria feminista, guerreira e determinada, como você. E não desperdiçaria mais minha determinação e meu amor com aqueles que não me merecem.
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Bárbara Malagoli, ilustradora
Qual foi a coisa mais impressionante que os olhos de Capitu viram nesses 120 anos?
Penso que Capitu teria testemunhado muitas coisas, mas em especial o processo de mudança. Em 120 anos ela veria o surgimento de outras formas de relação entre o masculino e o feminino, bem como o próprio questionamento desta distinção binária de gênero.
Quem seria Capitu hoje em dia?
Capitu é a personagem de um romance no qual um sujeito paranoico acredita piamente que foi traído. Suas palavras, seus gestos e até seus silêncios são interpretados contra ela. Hoje, ainda existem muitas mulheres que são vítimas dessa possessividade masculina. Portanto, infelizmente, ainda temos muitas mulheres neste papel de Capitu.
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Amma, ilustradora
Qual foi a coisa mais impressionante que os olhos de Capitu viram nesses 120 anos?
O modo como o feminismo está sendo amplamente discutido, como as mulheres estão sendo melhor reconhecidas e, mesmo assim, avançamos pouco quando o assunto é o direito das mulheres.
Quem seria Capitu hoje em dia?
Acredito que seriam todas as mulheres que não abrem mão de sua liberdade.
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Giovanna Grigio, atriz
Depoimento sobre Capitu:
O futuro é mulher.