Para as lutadoras, ele não é apenas treinador. É pai, amigo e companheiro na realização de sonhos. O ele em questão é Gilliard Alfredo Fagundes, o Mestre Paraná, filho de uma doméstica e de um pedreiro que queria seguir carreira nos octógonos, mas acabou se encontrando como mentor de mulheres no MMA. De sua academia, a Paraná Vale-Tudo (PRVT), saíram atletas do Ultimate Fighting Championship (UFC) como Priscila “Pedrita” Cachoeira e Jéssica “Bate-Estaca” Andrade. “Ele quebrou o tabu de que mulher é fraca”, afirma Jéssica.
O lar do “maior time feminino que treina junto no mundo”, como Paraná costuma descrever a academia, muitas vezes passa despercebido em meio ao movimento da Rua Noronha Torrezão, no Cubango, em Niterói (RJ). Mas a fachada danificada, pintada de verde, é cenário para o início de muitas histórias de superação.
“Saí do interior do Paraná, onde trabalhava na roça, para disputar um cinturão do UFC. Isso só foi possível porque ele é o homem mais sensível que já conheci”, diz Jéssica, que deve ter nova chance pelo cinturão peso-palha, desta vez contra Rose Namajunas. “Ele mostrou que é possível fazer MMA feminino, venceu o preconceito. E fez tudo isso com amor: por suas atletas, pelos companheiros e pela equipe.”
Nascida em Umuarama, Jéssica começou no esporte no futebol de salão. Queria ser Marta. Isso até o dia que decidiu ir a um treino de judô em um projeto social. Na aula experimental, deu um show de quedas e imobilizações. “Me perguntaram se eu já lutava, mas eu só brincava com o meu irmão. Ganhei um convite para treinar numa academia de jiu-jítsu, e nunca mais parei”, conta a lutadora, hoje número 2 de sua categoria no UFC.
A trajetória no jiu-jítsu, entretanto, começou mal. Ainda menina, foi desclassificada por um golpe ilegal, o bate-estaca, o que lhe rendeu o apelido famoso. A transição para o MMA acabou sendo um passo natural. Dessa estreia, entretanto, a lembrança é muito mais doce. A vitória sobre Weidy Borges, da PRVT, foi o início de uma relação que, apesar de não parecer, começou conturbada. Isso porque, naquela época, Mestre Paraná era desafeto do professor de Jéssica.
Dali em diante, por outros motivos, Jéssica acabou recusando um convite do dono de sua academia à época e chegou a pensar em parar. Mestre Paraná ficou sabendo, e a convidou para a filial da academia em Umuarama. Jéssica foi uma das primeiras atletas femininas de Paraná. Fio condutor do sucesso da PRVT, a lutadora enfileirou adversárias até ganhar um contrato com o maior evento de MMA do mundo, sempre com Paraná, a quem chama de pai, ao seu lado.
“São muitas histórias com as meninas, mas as mais marcantes foram com a Jéssica. Ela é o que sempre procurei em uma atleta e pessoa. É perfeita. Sinto realmente que é minha filha”, se derrete Paraná.
Da cracolândia para o UFC
Priscila Cachoeira foi líbero do vôlei do Fluminense dos 10 aos 16 anos. No juvenil, o técnico da Seleção brasileira à época foi às Laranjeiras assistir a um Fla-Flu da modalidade. Ele iria observar a menina, tida como uma promessa. Por ordem de um diretor, pai da menina que era reserva, entretanto, Priscila foi para o banco. A desilusão a fez largar o esporte.
Com um pai ausente e viciado e a mãe trabalhando para sustentar o lar, a então adolescente teve o fim de sua adolescência forjada nas ruas de Bangu, bairro da zona oeste do Rio. Um namorado da época lhe apresentou as drogas, um buraco de onde ela parecia não ter forças para sair.
O crack fez parte do cotidiano de Priscila dos 19 aos 23 anos, deixando a família sem saída. Com medo de que a filha se prostituísse para comprar a droga, sua mãe, Rosiméri, preferia dar dinheiro para o vício. “Ela me tirou da cracolândia. Foi até lá e, quando eu esperava uma ‘coça’, vi uma mão estendida e o melhor abraço que já senti”, conta Priscila. “Fizemos uma oração e eu prometi nunca mais voltar para aquele lugar. Ali eu larguei as drogas.”
Priscila se formou em um curso profissionalizante para cabeleireiras. Mas não se sentia completa. Algum tempo depois, ingressou no muay thai a convite de uma vizinha. Enquanto treinava com adversárias mais duras e experientes, Priscila lutava também contra seus demônios. Já com o apelido de Pedrita (herança do Nael Pedra Team, do muay thai), estreou no MMA vencendo uma lutadora invicta, justamente da PRVT.
O talento foi visto por um professor da academia, que fez o convite para um teste: um sparring (dupla de treinos dos atletas mais duros) com Jéssica Andrade. “Apanhei muito, mas não parei de andar para frente, e o mestre me disse que com essa postura, eu chegaria lá”, recorda. Pedrita se manteve invicta por oito lutas.
A relação entre mestre e discípula é daquelas que permitem até pegadinha. Um belo dia, Paraná convocou uma reunião na academia e disse que expulsaria Pedrita do time por ser uma “creonte” (gíria do mundo das lutas para traidor). Rasgou em sua frente o contrato do Invicta FC, maior evento exclusivamente feminino do MMA mundial. E, quando ela já entrava em desespero, ele fez o anúncio: Priscila Cachoeira era lutadora do UFC.
A estreia dela no UFC foi difícil. Uma derrota acachapante para Valentina Schevchenko, que levantou dúvidas sobre o nível da brasileira entre os fãs e com ela mesma. Lesionada — ela rompeu o ligamento cruzado do joelho direito —, Pedrita quis desistir. Mas Paraná não deixou. O treinador foi de Niterói até Bangu para fazer a atleta mudar de ideia. “Ele veio aqui e disse: ‘Só saio com a minha guerreira de volta’”, lembra a lutadora. “Não é todo mundo que trata uma adicta assim.”
Pedrita diz que esse apoio foi fundamental para que ficasse longe das drogas. “Salvou a minha vida. Eu só estou limpa porque encontrei algo que eu amo”, conta. “O Mestre me mostra, todos os dias, que eu mereço estar onde estou, que eu sou uma grande lutadora. “Ele é tudo o que meu pai não foi para mim.”
De tapa-buraco a referência
A Paraná Vale-Tudo tinha fama de “tapa-buraco” nos eventos nacionais, sempre oferecendo lutadores dispostos a aceitar qualquer adversário. “Eu não tive a chance de estar em uma grande equipe. Começar perdendo muito foi o jeito para furar a panela dos grandes eventos”, explica Paraná.
Criado pela mãe, ele mostrou sensibilidade e tato para vislumbrar o futuro das mulheres no esporte. O nicho do incipiente MMA feminino foi logo visto por ele, que descobriu em Jéssica Andrade um diamante bruto. Com ela, vieram parceiras de treino. Paraná percebeu algo que parece óbvio, mas que ninguém tinha pensado: mulheres precisavam treinar com mulheres.
Mariana Morais, hoje no polonês KSW, maior evento de MMA da Europa, foi uma das primeiras. A ex-judoca que lutava muay thai trocou São Paulo pelo para o Paraná ser desenvolvida pelo Mestre. “Ele é um visionário”, diz Mariana. “E a diferença é o amor que temos um pelo outro, a união. Por isso somos tão fortes.”
O pouco que Mestre Paraná tinha, dividia com os atletas. Ele deixou o Estado que lhe rendeu o apelido e fincou raízes em Niterói. Pagava logística, hospedagem e custeava até a alimentação dos atletas. Pouco a pouco, foi formando um time forte de meninas, de diferentes histórias.
A “mirradinha” Maria Oliveira, que lutou no Japão e no Contender Series, programa de scout de talentos para o UFC, começou em um projeto na escola. Sem nunca ter conhecido o pai, enfrentou a doença de sua mãe e o preconceito para virar lutadora. “O Mestre mudou tudo, transgrediu as regras e apostou nas mulheres na época que muita gente ainda torcia o nariz. Hoje somos as melhores do mundo”, destaca Maria.
Uma das “filhas” mais novas de Paraná, Jéssica Delboni foi eleita a melhor lutadora do MMA nacional em 2017. A capixaba deixou uma vida confortável e a faculdade de veterinária em seu Estado. “O legado dele é esse. Ele acredita mais que nós em nossos próprios sonhos. Parece durão, mas é um coração mole!”, conta Jéssica. “Eu nunca conheci ninguém assim.”
Paraná retribui o carinho e as palavras. E resume seu trabalho: “O que me move é ver elas se realizarem.”