Quem percorre universidades e confere autores de pesquisas pode até pensar que existe igualdade de gênero na ciência do País. As mulheres, afinal, correspondem a 54% dos pós-graduandos. No entanto, ao esmiuçar pesquisadores que recebem bolsas, a impressão se desfaz. A presença feminina cai conforme os níveis desses auxílios aumentam. Em áreas como Física e Matemática, elas não chegam a 10% dos que estão no topo da carreira. Em Engenharias e Ciências Sociais, o quadro se repete: as mulheres somam, respectivamente, 12% e 11,5%. A elite científica do Brasil é masculina.
Em dados absolutos, aqueles 54% de mulheres representam 165.565 matriculadas e tituladas em cursos de mestrado e doutorado no País. Os homens são 138.462. Na produção acadêmica brasileira, elas também têm um bom espaço. Mulheres foram autoras de 49% dos artigos científicos no Brasil, de acordo com dados do Gender in the Global Research Landscape, de 2017, da editora de literatura médica e científica Elsevier.
Até aqui, elas são maioria. A disparidade entre os gêneros aparece quando olhamos para a régua hierárquica que divide os pesquisadores com bolsa de produtividade no Brasil, oferecidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), uma das principais formas de reconhecimento na carreira científica. Quando o pesquisador chega aos últimos níveis — em ordem crescente: 2, 1D, 1C, 1B e 1A —, atingiu o topo da pesquisa científica no Brasil.
Os valores das bolsas por mês variam entre R$ 1.100 (no nível 2) e R$ 2.800 (no nível 1A). O salário deles, no entanto, não é influenciado por esses níveis. No Brasil, a pesquisa é feita principalmente dentro de universidades. Então, o salário de um pesquisador é, na verdade, o salário como professor. Aqueles de universidades federais têm um plano de carreira próprio, assim como o de Estados e de instituições privadas. Como pesquisador, ele concorre a editais que podem financiar projetos e recebe essas bolsas.
Nos níveis 1A e 1B, as áreas com mais mulheres são Saúde e Biológicas, como mostram dados da pesquisa Geographic and Gender Diversity in the Brazilian Academy of Sciences. Ainda assim, a representação feminina é baixa. Em Saúde, o número de pesquisadoras nos dois mais altos níveis é de 35%. Em Biológicas, é de 33%.
Queda de produção em decorrência da maternidade, rotina que impede uma dedicação exclusiva e órgãos de fomento sob comando masculino são alguns dos fatores que explicam essa diferença entre homens e mulheres na pesquisa brasileira, segundo especialistas.
Para a professora Márcia Barbosa, do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que coordenou a pesquisa Geographic and Gender Diversity in the Brazilian Academy of Sciences, a formação dos comitês que avaliam a progressão nos níveis ajuda a criar as disparidades. “Quando você olha os comitês de avaliação, eles são formados por homens. Por quê? Porque eles são escolhidos por quem está na liderança.”
Ela também critica a formação do comando do órgão à frente das bolsas. “O CNPq nunca teve uma presidente. Então, a diretoria vai ter menos mulheres. Quando você avalia, avalia o que é muito parecido com você mesmo.”
Atualmente, o CNPq tem apenas um mulher na diretoria. Em nota ao Estado, o órgão informou que os comitês de avaliação são definidos por seu conselho deliberativo, a partir de uma consulta à comunidade científica. Dos 19 integrantes desse conselho, 4 são mulheres.
Rede masculina de contatos
Outro ponto destacado pela coordenadora da pesquisa Geographic and Gender Diversity in the Brazilian Academy of Sciences é que os homens conseguem ter mais contatos com a comunidade científica em comparação ao que ocorre com as pesquisadoras. “Como a mulher vai transitar menos internacionalmente, por várias razões, incluindo a família, ela terá menos rede e vai cooperar com um menor número de pessoas. Ao fazer menos rede, você tem menos citações, menos impactos positivos na carreira.”
Esse formação de rede de contatos está inserida dentro de um dos critérios para a aquisição de bolsas de produtividade. Eles são: mérito do projeto de pesquisa, relevância da produtividade do pesquisador, inserção nacional e internacional e produção de recursos humanos. Nesse último critério, é observado o número de alunos orientados em projetos de pesquisa na graduação ou nos projetos de mestrado e doutorado.
Ainda de acordo com dados da pesquisa, mulheres produzem mais recursos humanos porque, além das orientações na pós-graduação, atuam mais com a iniciação científica, com estudantes de graduação. Do total de pesquisadoras, 16% realizam esse trabalho, contra 8% dos homens.
Mas essa atenção aos alunos de graduação não tem tanto peso na avaliação do CNPq. Na chamada pública de 2018, por exemplo, a definição do que é formação de recursos humanos citava a orientação de estudantes na pós-graduação. O órgão informou ao Estado que esses critérios são definidos em conjunto com comitês de assessoramento e são divulgados publicamente.
Para pleitear alguma das quatro classificações da categoria 1 do CNPq, é necessário, entre outros critérios, ter doutorado há oito anos. Mas o que realmente faz diferença na progressão na carreira de pesquisador é a produção científica, ou seja, o número de artigos que aparece no currículo Lattes.
“Nos mesmos níveis, homens e mulheres têm produtividade parecida. Em que ponto a produtividade afeta a mulher? Quando há maternidade. Mas quem retorna consegue produzir tanto quanto homem. Elas estão produzindo, mas de alguma maneira não estão sendo reconhecidas. Uma coisa é produzir e outra ter a liderança”, critica Márcia, que tem nível 1B.
Como a maternidade tende a criar um intervalo na carreira científica da pesquisadora, que geralmente dura quatro anos, de acordo com a pesquisa Parent in Science – Um Estudo Detalhado sobre o Impacto da Maternidade na Carreira Científica das Mulheres Brasileiras, a longo prazo isso impede que mulheres consigam avançar na régua de níveis das bolsas de produtividade.
Para driblar isso, um grupo de pais e mães pesquisadores vem pedindo que o CNPq reconheça o período de maternidade, indicando sua duração no currículo Lattes para contextualizar a queda de produtividade, além de editais de financiamento adaptados ao período da maternidade.
Mesmo quadro na Academia Brasileira de Ciências
A baixa presença feminina na elite científica também é vista na Academia Brasileira de Ciências (ABC). Apenas 100 dos 718 titulares são mulheres, o que equivale a 13,9% do total. Fundada em 1916, a ABC é uma entidade independente, com o objetivo de estimular políticas públicas para a área e representar a ciência brasileira internacionalmente.
A diferença entre gêneros na ABC é ainda maior quando os titulares são divididos por áreas. Na Matemática, elas correspondem a 4,4% dos pesquisadores. O melhor caso é Ciências Biológicas, com 25% de mulheres. Na Engenharia, há apenas uma mulher: Virginia Ciminelli, da Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista CNPq nível 1A e coordenadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Recursos Minerais, Água e Biodiversidade, (INCT-Acqua).
Apesar das dificuldades de progressão na carreira das mulheres, foi na ciência que a professora encontrou espaço. Logo depois de formada na graduação, Virginia não foi aprovada em uma vaga de emprego por ser mulher. Com o “não”, decidiu fazer o mestrado.
De acordo com ela, a família foi fundamental para que pudesse conciliar a maternidade e a criação de duas filhas com a progressão na carreira. “Eu trabalhava muito nesse período, mas a mulher que é mãe precisa se cercar de uma infraestrutura que dê suporte. Sempre tive um marido que participou muito”, explica Virginia. “É claro que não são todas as mulheres que podem fazer isso, mas, como docente, eu tinha recursos que ainda me permitiram criar uma infraestrutura de apoio.”
Para a professora, as disparidades na ABC são consequência de um falta de reconhecimento das pesquisadoras mulheres pelos seus pares. “A diferença entre gêneros na ABC e nos níveis mais elevados de pesquisadores do CNPq indicam a grande dificuldade no reconhecimento das pesquisadoras pelos seus pares. No meu caso, o reconhecimento no exterior veio primeiro e isso influenciou o meu reconhecimento no País.”
Em nota ao Estado, a ABC reconhece a disparidade de gênero entre seus membros e afirmou que essa é uma preocupação da Associação. A ABC afirma que para alcançar uma mudança gradual para um cenário de equidade na ciência é preciso: ter mudanças culturais que parem de suprimir características de liderança em mulheres desde criança e definir uma solução para os empecilhos na progressão de carreira que a queda de produtividade científica durante o período de maternidade causa.
A associação também reconhece que, como são os próprios membros que indicam novos nomes, o perfil majoritariamente masculino mantém-se, mas disse que está estimulando a discussão sobre a importância da diversidade.