Luma Nogueira de Andrade foi a primeira transexual a concluir um doutorado na rede pública do Brasil e também a primeira docente a integrar uma universidade pública federal. Filha de agricultores analfabetos do interior do Ceará, ela viu no ensino a única opção para mudar de vida. “Mas sempre fui tentada a deixar esse espaço, porque a escola não foi pensada para todas as pessoas, e sim para quem se enquadra nos padrões hegemônicos de uma sociedade elitista e conservadora”, afirma a professora.
Toda pessoa que foge desse contexto sofre a tendência de não estar ocupando esse espaço
Luma é exceção em uma realidade que começa na evasão escolar causada pelo preconceito e se espelha na faculdade. Levantamentos realizados pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e também pela reportagem do Estado com universidades públicas federais mostram dados semelhantes: estudantes transexuais representam apenas cerca de 0,1% do total de alunos da instituições federais de ensino superior.
Mesmo com a aprovação, em agosto de 2012, da Lei nº 12.711 (conhecida como Lei das Cotas), criada para fortalecer e ampliar oportunidades educacionais e sociais, a pluralidade ainda é incipiente. De acordo com a mais recente Pesquisa do Perfil dos Graduandos das Instituições Federais da Andifes, mulheres e homens cisgêneros, que se identificam com o sexo biológico, são maioria dos estudantes matriculados em 2018, com 48,1% e 40,15%, respectivamente. Não binários (0,6%) e homens e mulheres trans (0,1%) ficam quase invisíveis nesse panorama. O macroperfil, traçado em parceria com Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assistência Estudantil (Fonaprace), envolveu mais de 420 mil alunos, o que corresponde a 78% da rede.
O levantamento do Estado também aponta para a baixa representatividade. Pelo menos 410 estudantes autodeclarados como transexuais estão matriculados hoje em universidades públicas brasileiras. O número equivale a menos de 0,1% do total de 533 mil alunos de instituições federais, de acordo com a última estatística divulgada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). O diagnóstico considerou respostas de 26 das 63 universidades federais sobre solicitações de uso do nome social, incluindo alunos ou alunas com matrículas ativas, egressos ou com matrículas canceladas.
Diversidade pela inclusão
Para Tatiana Ferreira, pró-reitora adjunta de Assuntos Comunitários e Políticas Afirmativas da Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Paulo, muitos fatores contribuem para que transexuais não entrem na universidade. “Sabemos que há uma evasão escolar muito significativa (nos ensinos básico e médio), por causa de preconceito. Temos ainda a expectativa de vida dessa população, que é de 35 anos (a média nacional, segundo dados do IBGE, é de 75,5 anos), explica Tatiana. “Além disso, as atividades profissionais estão ligadas à prostituição. Tudo isso tem princípio na exclusão familiar.”
A UFABC foi a primeira instituição de ensino superior pública em São Paulo e a terceira do País a adotar política de cotas para transexuais. Com resolução publicada no fim de 2018 e, tendo como base políticas semelhantes das Universidades do Estado da Bahia (Uneb) e Federal do Sul da Bahia (UFSB), a universidade paulista destina 1,5% das vagas disponíveis para essa parcela de estudantes. Antes disso, resoluções para uso do nome social e para uso do banheiro conforme identificação de gênero já eram aplicadas pela instituição.
Das 2.008 vagas da UFABC, 32 foram destinadas a alunos transexuais em 2019. Dessas, metade é para quem possui renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita. “Políticas afirmativas como cotas para pessoas com deficiência, pretos, pardos, indígenas, refugiados e pessoas trans vão, no futuro, levar para a sociedade a percepção de que grupos minoritários nada mais são que pessoas que também têm um papel social e que não estavam participando disso por uma questão de exclusão”, diz Tatiana.
A pró-reitora também enfatiza os ganhos que universidade e sociedade podem obter com um processo de inclusão mais enérgico.
A diversidade dentro dos grupos de pesquisa, da extensão, quebra o muro que existe entre a academia e a sociedade, fazendo esta reconhecer que a universidade também é dela, e vice-versa
Trans na universidade
Lyz Vedra, de 23 anos, é uma dessas alunas trans que resistem no ensino superior. Prestes a se formar em Dança pela Universidade Federal do Ceará (UFC), ela terá o diploma emitido com o nome social. A alteração, solicitada há cerca de um ano, foi aprovada rapidamente pela universidade. “A gente se sente mais acolhida pela instituição. Sente que ela reconhece nossa existência”, afirma.
A estudante, em processo de construção como mulher, é uma das 39 pessoas que solicitaram o uso do nome social na UFC desde 2013, quando a universidade cearense aprovou resolução que permite a mudança. Isso ocorreu dois anos antes de concessão semelhante anunciada pelo Inep, que aplica o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), principal porta de entrada ao ensino superior público no País. Em 2018, o Exame atendeu 251 pedidos para o uso do nome social, segundo a instituição.
O número é o menor desde 2015, quando foi aberta a possibilidade da solicitação, e acompanha a queda de inscritos. Já no ensino básico, travestis e transexuais conseguiram solicitar alteração nos registros escolares somente a partir de janeiro de 2018, quando o Ministério da Educação legitimou a alternativa.
Lyz tem um histórico menos adverso por se reconhecer mulher quando já estava na universidade. Assim, ela conta que não enfrentou a negação comumente dada à população trans.
Essas políticas, como a do uso do nome social, têm de ser ampliadas para que a gente possa acessar espaços de educação e vislumbrar um futuro com mais dignidade
Com Pedro Schenk, de 19 anos, a história foi diferente. Desde o ensino fundamental, Pedro pedia na escola para falarem com ele usando o pronome masculino. “Conversei com professores e colegas de sala, mas apenas alguns amigos e uma professora respeitaram meu pedido”, lembra. “Fiquei quieto e esperei essa fase acabar para que eu pudesse ser quem eu sou de verdade quando entrasse na faculdade.” Hoje, ele é aluno de Publicidade e Propaganda na Universidade Jorge Amado (Unijorge), em Salvador.
A princípio, Pedro se apresentou com cautela aos colegas de faculdade, identificando-se como transgênero apenas para os mais próximos. Isso até que uma de suas professoras descobriu que ele se identificava como homem e explicou que ele tinha direito a alterar o nome social nos documentos acadêmicos.
“Foi um processo mais demorado porque meus pais não sabiam (da transição). Mas a universidade me recebeu de braços abertos”, lembra Pedro, que bateu o martelo na decisão quando entrou no terceiro semestre. “Me sinto muito mais à vontade agora.”
Após a alteração, a coordenadora do curso avisou aos professores que Pedro se identifica com o gênero masculino e deve ser tratado como tal. Hoje, depois de alguns incidentes nos dois primeiros períodos da universidade, ele afirma que se sente livre. “Não me senti excluído em nenhuma parte desse processo.”
‘Pedagogia da violência’
Em sua tese de doutorado, a professora Luma passou a pesquisar a vivência de outras transexuais no âmbito escolar, com um estudo que deu origem ao livro Travestis na Escola (Metanoia Editora, 2016). “Por não nos enquadrarmos dentro dessa ordem, passamos por um processo de exclusão tão bárbaro que eu passei a nomeá-lo na minha tese como pedagogia da violência”, explica a professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em Redenção, interior do Ceará. “É um tipo de pedagogia que vai tentar ensinar as pessoas a terem uma forma de comportamento de acordo com os padrões conservadores, nem que precise usar da violência física, psicológica, moral e todos os outros seus aspectos.”
Um dos efeitos colaterais dessa “pedagogia da violência” observada por Luma é a evasão escolar da população trans, que ela classifica como involuntária. “Quando fui a campo entender por que as meninas não iam à escola, descobri que aquilo se dava por elas não terem a oportunidade de serem elas mesmas. Nos dados da Secretaria de Educação, esses casos constam como evasão, o que culpabiliza a pessoa. Então, eu utilizo o conceito de ‘evasão involuntária’, porque não é algo desejado pela estudante, mas sim imposta”, conclui Luma, docente do Instituto de Humanidades e Letras (IHL) da Unilab.
Ela mesma foi agredida física e psicologicamente desde a infância por colegas que não aceitavam sua identidade de gênero. Luma conta que, quando reclamava, era repreendida por sua professora, que a culpava por “ser daquele jeito”. “Quem é vítima passa a ser vilão nessa história. A gente vive dois processos, de assujeitamento e de resistência. Precisei me sujeitar caladinha a muitas das coisas que eram impostas, para poder prosseguir e, mais tarde, resistir.”
Resistindo, ela deixava de sair nos intervalos do recreio para não apanhar no pátio da escola. Também evitava usar o banheiro, já que, apesar de ser identificada como “do campo feminino”, ela só tinha acesso ao dos meninos.
Não somos aceitas pela nossa performatividade corporal dentro daquele espaço. Eu era um corpo que, ao tempo todo, precisava ser questionado e violentado para tentar se adequar, nem que fosse de forma superficial, aparente e momentânea
Keila Simpson, diretora da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), concorda que a exclusão começa na base. “As escolas não desenvolvem nenhuma ação para que elas estejam na escola, da matrícula à permanência”, avalia. Para ela, os relatos de pessoas trans sobre abandono da escola convergem para a mesma causa, o preconceito. “Ninguém vai ficar em um lugar onde não tem respeitada sua forma de viver.” E o efeito colateral é imediato: quanto mais transexuais e travestis abandonam o ensino básico, menos ingressam no ensino superior.
A diretora da Antra também aponta que a população poderia ter impactos positivos na economia se não fosse marginalizada. “Estamos em um processo de envelhecimento do País. E a população trans que está fora da escola é formada de pessoas jovens, de 18 a 30 anos. É uma mão de obra que o Brasil vai perder, seja agora ou no futuro.”
De volta à escola
A pernambucana Telma Ferreira, de 46, abandonou a escola ainda pequena, no início do ensino fundamental. Se sentia maltratada por colegas e professores.
Riam da minha cara, me chamavam de mulherzinha. Eu disse para o meu pai que não queria mais estudar, pois não gostava da escola
Em busca de sua transformação e de condições melhores para viver, deixou o sertão pernambucano e se mudou para São Paulo. Na época, com apenas 14 anos, não pensou em retomar os estudos. A escola ficou marcada como um ambiente hostil. Mas hoje Telma está de volta à sala de aula na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), destinada aos que não tiveram a oportunidade de concluir os Ensinos Fundamental ou Médio.
A decisão de colocar em prática o sonho de aprender a ler e escrever foi motivada pelo Programa Transcidadania, da Prefeitura de São Paulo, que estimula a inclusão de pessoas trans e travestis nas escolas e no mercado de trabalho. Criado em 2015, já atendeu 603 pessoas. São 240 vagas ao todo – nem sempre preenchidas – e uma bolsa de R$ 1.047,90. O contrato tem vigência de dois anos e, caso conclua os estudos antes, o beneficiário é matriculado em cursos profissionalizantes. “Foi uma grande ajuda, nos tirou da prostituição”, conta Telma.
Além das aulas na EJA, o Transcidadania oferece cursos de capacitação, acompanhamento psicológico, jurídico, social e pedagógico. “Estamos falando de uma população que esteve durante anos fora do banco escolar e em sua maioria estavam inseridas no mercado do sexo”, afirma o coordenador de Políticas para LGBTI, Ricardo Luiz Dias. Segundo ele, o trabalho de retomada dos estudos, visando a conclusão do ensino regular, passa também por um trabalho de inclusão e reconhecimento da identidade dessas pessoas.