Michael Lionstar/Divulgação
Conhecida por suas visões controversas, Camille defende equidade entre mulheres e homens na política e no campo profissional

‘Feminismo não pode ser lugar de mulheres com ódio de homem’, diz Camille Paglia

Em entrevista, ensaísta e professora diz que movimento se tornou ‘uma religião’ e defende o que chama de protagonismo feminino autêntico

Camille Paglia não é uma mulher rotulável. A professora da University of Arts na Filadélfia, no Estado americano da Pensilvânia, critica abertamente os rumos do feminismo contemporâneo e algumas mulheres relacionadas ao movimento, que classifica como “loucas” e “neuróticas”. Apontada como feminista e antifeminista, Camille defende um protagonismo feminino genuíno. “A verdadeira libertação das mulheres ocorre por meio do empoderamento de si mesmas, de suas vozes, de suas mentes.”

Em entrevista ao Estado, a escritora falou sobre temas polêmicos, como educação sexual na escola e transexualidade, e explicou por que considera o estudo de gênero atual como uma “ideologia”. “Em geral, apresentam apenas uma maneira de pensar.”

Confira abaixo os principais pontos da entrevista:

A senhora acompanhou a última eleição presidencial no Brasil? Como vê o momento político no País?

Parece-me algo similar ao que ocorreu nos Estados Unidos. Existiam diferentes problemas sociais que estavam piorando e não eram resolvidos. Eu sou uma democrata, meu candidato era e ainda é o (Bernie) Sanders, mas eu claramente via os problemas do meu partido. Escrevi sobre eles na minha coluna na Salon (revista eletrônica semanal) por muitos anos. Acho que a mesma coisa aconteceu no Brasil: os problemas foram ignorados e a massa de eleitores ficou impaciente, brava, e se voltou à direita política. Quando figuras emergem da direita, elas tendem a não pertencer à elite educada. Mesmo que Donald Trump tenha frequentado escolas de primeira classe, é como se ele tivesse adotado o estilo da classe trabalhadora no modo como se apresenta. A forma como ele fala é muito ofensiva para a elite educada. Acham que Trump é estúpido e que as pessoas que votam nele são estúpidas, mas na verdade Trump fala da mesma maneira que o trabalhador da construção civil nos canteiros de obra. Aqueles que votam nele estão processando isso como sendo genuíno, honesto, direto, não tendo medo de mostrar a bruta realidade social.
Assim como nos Estados Unidos, as eleições no Brasil deixaram evidente a polarização da população em torno de algumas temáticas, como a descriminalização do aborto, a educação sexual nas escolas e o próprio debate feminista.

Por que a sociedade não consegue debater esses temas sem paixão e hostilidade?

Por que a sociedade não consegue debater esses temas sem paixão e hostilidade?
Nesse período, as pessoas estão preocupadas com a perda de sua própria identidade cultural e penso que muito disso tem a ver com religião. Eu sou ateia, falo sobre o sentido espiritual da religião. A elite educada se afastou da religião tradicional e agora apresenta um humanismo secular. A mídia está falando sobre direitos de grupos como os gays, transgêneros enquanto a grande massa não está necessariamente convencida. O catolicismo tradicional recuou no Brasil. Existe essa onda em direção ao cristianismo anglicano. E isso tem carregado muito do movimento conservador no País. Pelo que posso ver a distância, a elite educada, os ricos, as pessoas da mídia brasileira parecem pensar que religião é algo ultrapassado. Esse ataque à religião e essa força que foi solta no Brasil, de cristãos anglicanos, é muito mais rigorosa que o antigo catolicismo era. Você precisa de religião ou algum senso de moralidade para poder fazer escolhas éticas na vida. Eu acho que as pessoas mais comuns perceberam isso. Existe um vácuo moral e ético na elite educada, na Europa, nos Estados Unidos e agora no Brasil. Isso na verdade ajudou a dar força para essa virada para a direita.

Você fala sobre as diferenças biológicas entre mulheres e homens desde SPersonas Sexuais: Arte e Decadência de Nefertite a Emily Dickinson (o primeiro livro de Camille, publicado em 1990). Como o movimento feminista deveria balancear aspectos biológicos e sociais?

Acho que o feminismo foi muito longe com essa ideia de gênero como performance. Que nós nascemos quadros em branco e todas as diferenças de gênero são resultado das influências e pressões do ambiente social. Com certeza isso é um importante fator, como podemos ver na história. Obviamente, eu posso ser muito mais hoje do que poderia ter sido se tivesse nascido na Inglaterra em 1808. Hoje, mudanças do contexto social são bem-vindas ou não tão reprimidas como em outros períodos. Mas acho que o feminismo se tornou um dogma, uma religião. Houve períodos no movimento feminista em que falamos sobre diferenças biológicas, na década de 1970, mas isso meio que desapareceu. Agora a ideia dominante é que não há gênero e você pode ser o que quiser. Se uma pessoa escolher ser diferente ou pensar em si mesmo de maneira diferente, em questão de gênero, isso deve ser permitido. Mas isso se tornou uma confusão terrível. Se uma criança gosta de se vestir com roupas do sexo oposto quando tem 5 ou 6 anos, agora há essa pressão terrível dizendo: “Você deve ser transgênero, então nós vamos ajudá-lo. Vamos injetar-lhe bloqueadores de puberdade e você pode fazer uma cirurgia quando quiser.” É insano, absolutamente terrível. Quando eu era pequena, me vestia no Halloween com roupas de homem. Já fui um soldado romano, Napoleão e Hamlet. Hoje, as pessoas teriam me identificado como alguém que é transgênero. Crianças não estão preparadas para tomar decisões sobre se querem ter cirurgias para modificar permanentemente seus corpos. Isso é um abuso dos direitos humanos. Por causa da falha de jornalistas e professores liberais em confrontar isso, o que está acontecendo é que as pessoas estão se movendo para a direita. Essa questão de gênero fortalece o movimento para a direita nos Estados Unidos, no Brasil, na Hungria, em todos os lugares. Não está ajudando o liberalismo a longo prazo.

O que a senhora chama de “feminismo burguês”?

Não quero um feminismo paternalista, que busca figuras de autoridade para supervisionar a vida privada das pessoas e o que se passa em um encontro. Não quero uma vigilância constante, como no stalinismo, em que se pede por mais e mais burocracia, mais e mais figuras autoritárias para proteger as mulheres. Não! Obviamente nós não queremos que ninguém seja atacado, incluindo os homens. Mas isso normalmente não é sobre o que as pessoas estão falando. Geralmente, estão falando sobre coisas como: “Ele (o homem) não aceita um não como resposta”. Existem homens que são estúpidos, certo? Que são atrapalhados em suas investidas. O que estou alertando às mulheres é que não se pode forçar um homem a ser como uma mulher. Essas mulheres, que frequentaram Princeton, Yale e Harvard, estão acostumadas com esse tipo de homem. Aqueles que entram nessas escolas já foram treinados sobre como você deve se comportar em relação a essas mulheres privilegiadas, de classe média alta. Elas esperam que todos sejam assim. É por isso que elas não podem ouvir Trump e esse tipo de machismo. Elas nunca viram nada parecido e consideram como horrível, bruto e irracional. Mas não percebem que, quanto mais esse tipo de “homem de escritório”, educado e suave, é promovido como o “melhor modelo de homem da história”, maior será a reação da velha linha de machismo, muito crua. É isso o que estamos vendo em tantos países agora. Estamos vendo isso na Europa, onde você tem o líder da Hungria fazendo uma declaração de que não haverá estudos de gênero nas universidades, porque o estudo de gênero é uma ideologia e não um campo acadêmico. Bem, adivinhe, eu venho dizendo isso há 30 anos! E é realmente verdade. Nem todas as facetas que envolvem a questão sexual têm voz nas disciplinas de estudos de gênero que estão nos currículos. O que você tem é um tipo de abordagem muito intolerante, quase messiânica. Nas universidades da Europa, e agora cada vez mais no Brasil, nos Estados Unidos e no Canadá, você muito raramente ouve o lado oposto. Por exemplo, meus trabalhos nunca, ou muito raramente, são levados em conta. Em geral, apresentam apenas uma maneira de pensar. “Aqui está a maneira de pensar e esses são os principais pensadores”, como Judith Butler, que é só uma seguidora de Foucault, que não fez nenhum estudo sobre biologia, história, antropologia… Todas as coisas que você precisa para poder falar de sexo e gênero.

Existe uma idade apropriada para as crianças entrarem em contato com as ideias de respeitar as mulheres? Deve haver uma educação sexual para jovens?

Eu não gosto de nenhum tipo de intromissão nas escolas, do que eu chamaria de ideologia do bem-estar social. Eu não acho que as escolas estão lá para ensinar as pessoas a se comportar ou ensinar a pensar. Estão lá para introduzir os alunos a toda a história humana do sexo. As escolas estão tentando agir como pais, mas estão se tornando tiranas e opressoras, porque os professores, pelo menos nos Estados Unidos, têm apenas uma ideologia. Eles nem percebem quão ideológica foi a própria educação. Se há desordem nas escolas e assédio, de alguns alunos por outros alunos, ou assédio virtual e assim por diante, obviamente, a escola precisa intervir e parar com isso. Mas as escolas têm de parar de agir como uma religião. Religião é que ensina ética e moralidade. Se há desordem na sala de aula, assédio de qualquer tipo de pessoa, isso tem de acabar. Tanto se for de meninos com meninas, como também de meninos com meninos. Isso não é aceitável e as pessoas que se comportam assim devem ser expulsas da escola por assediar outras.

Você acredita que esse movimento de gênero deve ser reavaliado pela sociedade ou, como você disse antes, é algo historicamente cíclico que não pode ser interrompido?

Na história, quando você tem essa aparição de androginia, transexualidade e transgênero, é geralmente um sintoma do colapso de uma civilização. É quando aparecem o declínio e a decadência. Se pudéssemos viajar no tempo para o Império Romano, encontraríamos pessoas muito tolerantes, muito sofisticadas em termos da sexualidade, que eram bastante abertas tanto à heterossexualidade quanto à homossexualidade. Era nisso que a elite educada de Roma acreditava também. Então, o que aconteceu? Houve um vácuo moral, um vácuo ético. O resultado final disso? Religiões que a princípio eram muito pequenas, vindas da Palestina, se espalharam por todo o mundo Mediterrâneo. Isso foi o cristianismo, que se espalhou por causa do vácuo de uma sociedade imperial romana que era tão sofisticada em relação a gênero, mas não tinha outro programa ético a oferecer. Por isso aqui estamos, 2 mil anos depois. A Roma antiga está em ruínas e o cristianismo continua em evidência mesmo com os problemas do Vaticano. De todos os lugares do mundo, ninguém jamais esperaria que o Brasil vivesse um movimento cristão evangélico. O Brasil tem uma reputação de ter uma das culturas sexuais mais sofisticadas no planeta, mas o que aconteceu é que esse movimento evangélico cresce cada vez mais. Para mim, parece exatamente como a situação no fim de Roma, foi exatamente o que aconteceu.

Você disse antes que homens e mulheres devem se aproximar. Como isso poderia ser feito?

Na minha opinião, o constante ataque aos homens pela ideologia retórica feminista tem de parar. Foi o homem que construiu este mundo com seus escritórios, empresas, organizações e permitiu que as mulheres fossem financeiramente autossuficientes pela primeira vez na história. Isso não só no passado. É também o homem que está constantemente fazendo o trabalho sujo que mantém esse mecanismo fantástico da moderna sociedade industrial e pós-industrial. Essa falta de gratidão ao homem é um veneno terrível no feminismo contemporâneo. A liberdade moderna das mulheres vem deste mundo que o homem criou. Então, para mim, a grande resposta é que o feminismo precisa parar de atacar o homem. Há homens que se comportaram mal, eu acho que eles são uma minoria. Eu sou uma feminista da equidade, eu quero que o mundo público seja estruturado de uma forma que permita às mulheres avançarem igual aos homens nos campos profissional e político. É sobre isso que o feminismo deveria tratar. O feminismo não deveria tentar mudar as pessoas em suas vidas privadas, foi aí que ele deu errado. Eu quero que esse limite seja estabelecido para que se torne racional de novo e seja respeitado novamente. Para isso, o feminismo não pode permitir que mulheres loucas, realmente neuróticas, se tornem o rosto do movimento. Isso está afastando as mulheres racionais modernas. O feminismo não pode ser um lugar para as mulheres que têm ódio ao homem e problema terríveis em suas vidas privadas. Movimentos políticos costumam atrair pessoas loucas e fanáticas e, a longo prazo, isso tende a ser uma praga. Isso realmente aconteceu na primeira onda do feminismo. As pessoas em geral tendem a se afastar dos movimentos quando esses atraem fanáticos.