Ilustração: Brunafrog No Brasil, mais garotas do que garotos expressam desejo em seguir uma profissão na área - cerca de 43% delas demonstraram o interesse, contra 34% dos meninos
No Brasil, mais garotas do que garotos expressam desejo em seguir uma profissão na área – cerca de 43% delas demonstraram o interesse, contra 34% dos meninos

Meninas nos laboratórios? Sim, elas podem

Garotas têm interesse maior em seguir carreiras científicas. Mas desempenho ainda é mais baixo do que o dos meninos. Para especialistas, aspectos culturais desestimulam alunas

A Paleontologia não está entre as escolhas mais comuns de jovens de 17 anos. Ainda assim, é a carreira que a estudante Millena Borba, de Porto Alegre, pretende seguir. “Me encanta como um único fóssil pode nos dizer tudo o que aconteceu ao seu redor”, conta a garota, que conheceu a profissão no programa Meninas na Ciência, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Millena representa boa parte das meninas brasileiras quando o assunto é Ciências. No País, mais garotas do que garotos expressam desejo em seguir uma profissão na área – cerca de 43% delas demonstraram o interesse, contra 34% dos meninos. Os dados são do último Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês) e colocam o Brasil como parte de um pequeno grupo de países onde isso acontece. O exame é feito com adolescentes na faixa etária de 15 anos.

A estudante conta que, na escola, a contribuição das mulheres em pesquisas e descobertas não é destacada. “Não tem a presença feminina nos exemplos dos professores. É como se tudo tivesse sido criado por homens”, afirma Millena. “Várias mulheres fizeram coisas legais, mas não vejo ninguém citando nas aulas”, afirma a estudante.

É no programa Meninas na Ciência que ela tem contato com esse conteúdo. Por meio de vídeos curtos, a iniciativa já mostrou o trabalho de mulheres com relevância histórica e de jovens cientistas com trabalhos atualmente em destaque, que possam servir de inspiração para elas. “A ideia desses programas é criar modelos. Muitas meninas não se enxergam nas profissões de ciências e exatas porque não têm em quem se espelhar”, conta Carolina Brito, coordenadora do projeto.

Apesar do maior interesse em Ciências, as meninas têm, na média, desempenho inferior ao dos meninos na matéria. Foram quatro pontos a menos. O fato de elas tirarem notas piores, mesmo dizendo gostar mais, está ligado a fatores culturais, segundo a professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e doutora em antropologia social, Marília Gomes. “Várias pesquisas vêm demonstrando, especialmente nas aulas de Ciência e Matemática, que os meninos são muito mais estimulados a desenvolver seus trabalhos e a participar de atividades em grupo do que as meninas.”

Parte da explicação, diz Marília, está no tratamento dos professores em sala de aula, que muitas vezes reforça a desigualdade de gênero. A estudante Millena conta que já passou por situação parecida no colégio. “Sinto que há um tratamento diferenciado. Quando eu e um colega falamos a mesma coisa, o professor diz que o menino está certo.”

Esse tipo de situação foi tema de uma atividade da pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, Sandra Gouretti. Ela realizou uma dinâmica com docentes da rede pública do Estado de São Paulo para analisar a percepção deles sobre o desempenho de meninos e meninas no sistema de avaliação da educação estadual, o Saresp.

No exame estadual, as estudantes têm desempenho historicamente menor em Matemática, por exemplo. Ao questionar os professores sobre o porquê da diferença, Sandra ouviu respostas que explicitam os estereótipos culturais construídos na sociedade. “Os professores diziam que as meninas não têm interesse em Matemática”, conta. “Por outro lado, falavam que os meninos são mais ligados na disciplina e têm o raciocínio mais rápido.”

As notas das meninas também são menores no Pisa o desempenho das meninas fica abaixo do dos meninos em Matemática, mas não há dados específicos sobre o interesse na disciplina entre os dois grupos. De 2003 a 2015, a diferença das notas entre os alunos brasileiros dos dois sexos manteve-se quase estável. Em 2015, era de 15 pontos. As meninas, no entanto, tiveram desempenho consideravelmente superior em Leitura, com média de 23 pontos a mais.

Ilustração de BrunafrogDados do Pisa mostraram que a disparidade nos resultados se manteve quase inalterada na Matemática nos últimos anos
Dados do Pisa mostraram que a disparidade nos resultados se manteve quase inalterada na Matemática nos últimos anos

 

Matemática também é para menina

Licenciada em matemática, Julia Jaccoud, de 24, é um exemplo de como é possível estimular mais meninas a seguir carreiras em áreas até então muito masculinas. Jovem e com cabelo colorido, ela quebra estereótipos em seu canal A Matemaníaca, no YouTube, no qual publica vídeos com dicas de matemática e assuntos relacionados à área.

Homens são cerca de 70% de sua audiência. Mas o público feminino é o que mais interage com ela por meio das redes sociais, enviando comentários. “Acho que elas se sentem confortáveis de ter alguém que não vai julgá-las para discutir o nosso espaço dentro da ciência.”

Julia nunca foi desmotivada verbalmente a seguir na profissão, mas diz que tampouco recebeu apoio. “A falta de incentivo também é um desincentivo. Acho que falta isso, mostrar para as pessoas quais são suas oportunidades.”

Para estudar as relações de gênero em sala, a pesquisadora Lindamir Casagrande acompanhou aulas de Matemática em uma escola durante seis meses. Já nos primeiros dias, observou tratamento diferente dos docentes conforme o sexo dos alunos. “A professora pediu para os estudantes resolverem os exercícios no quadro negro. Três meninos e uma menina pediram para ir. Ela chamou o menino”, conta Lindamir. “No exercício seguinte, os mesmos quatro pediram e a professora chamou outro menino. Na sequência, ela repetiu o primeiro menino.”

Na pesquisa, que deu origem ao livro Silenciadas e Invisíveis: Relações de Gênero no Cotidiano das Aulas de Matemática, ela conclui que, involuntariamente, os meninos têm mais incentivo nas escolas. “A menina foi silenciada durante o ano. No fim, ela já não se manifestava mais, não pedia mais para participar, ao passo que os meninos continuavam querendo participar.”

Uma das poucas mulheres a ganhar medalha de ouro na Olimpíada Brasileira de Física (OBF), Alícia Fortes, de 19 anos, acredita que se trata de um problema cultural. “Há bastante tempo, Física e Engenharia não eram vistas como coisa de mulher, mas claramente está sendo mostrado hoje em dia (que também é)”, diz a aluna, uma das duas únicas na sala de 30 pessoas no curso de Engenharia de Computação no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA).

Alícia conta que foi desmotivada a seguir a profissão. “Já ouvi algumas vezes de familiares que não deveria ser engenheira, mas médica”, conta a universitária. “Provavelmente, por ser mulher. Se fosse um garoto, eles apoiariam.”

Garotos e garotas seguem caminhos diferentes dentro da ciência, conforme conclui o Pisa. Seguindo uma tendência global, meninas se veem mais como profissionais da saúde, ao passo que os meninos se reconhecem mais como engenheiros, cientistas e profissionais da área da tecnologia.

Segundo Alícia, o ITA tem cerca de 10% de mulheres entre professores e alunos. Uma iniciativa das estudantes do instituto busca mudar esse cenário. “Nós fazemos oficinas com crianças de 8 a 10 anos. A ideia é incentivá-las a gostar dessas áreas e a ter mais curiosidade. É interessante mudar a mentalidade desde pequena”, diz Alícia.

 

Falta de modelos restringe as possibilidades

A pesquisadora de ensino e gênero Lindamir analisou livros didáticos de 5ª e 6ª séries em sua dissertação de mestrado. Segundo ela, as mulheres são majoritariamente representadas no material escolar em profissões que exigem baixo grau de escolarização, enquanto o material escolar deveria ser repensado para apresentar novas possibilidades profissionais a alunas e alunos. “Os livros didáticos servem para estimular as crianças a escolher outras carreiras e a mudar a história familiar.”

Quando se olha os livros das disciplinas de ciências, o problema é ainda maior, pois os registros históricos foram feitos sob a perspectiva masculina. Na prática, elas são pouco estudadas em sala de aula, explica Marília. “As mulheres são invisibilizadas na nossa história. Isso gera um sentimento de inferioridade delas com relação aos homens”, afirma a doutora em Antropologia Social.

Ilustração de BrunafrogMeninas sentem falta de modelos nos quais se inspirar no material didático
Meninas sentem falta de modelos nos quais se inspirar no material didático

 

O problema vem de berço

De acordo com os especialistas ouvidos pelo Estado, a disparidade de notas entre gêneros pode ter raízes no período da infância anterior à fase escolar, no momento em que as crianças começam a ser socializadas. “Isso começa desde que a mulher sabe o sexo do bebê. É quando começa a ser construída aquela ideia da princesinha e do herói”, diz Lindamir. Para a pesquisadora de ensino e gênero, brinquedos “de menino”, como carrinhos e jogos, estimulam a criatividade e iniciativa, enquanto as meninas recebem desde o começo estímulos ao cuidado, com bonecas e casinhas.

“Os meninos são mais valorizados por comportamentos de liderança e assertividade, características que são muito valorizadas na nossa sociedade. Por outro lado, meninas são estimuladas a se manterem em seu espaço”, diz Marília. A professora da UTFPR explica que essa diferença nos estímulos acaba por provocar nas meninas maior timidez, o que prejudica a capacidade de atingir um desempenho escolar mais elevado.

Julia, a matemática com um canal no YouTube, defende que o mesmo ocorre quando as crianças são elogiadas. Em sua visão, meninos são elogiados por seu desempenho, ao passo que garotas são recompensadas por seu bom comportamento. “A gente cria garotos para resolver problemas e meninas para serem perfeitas.”

Ilustração de BrunafrogAs diferenças na educação começam desde a socialização, quando as crianças 'aprendem' quais brincadeiras e comportamentos são 'adequados' para cada sexo
As diferenças na educação começam desde a socialização, quando as crianças ‘aprendem’ quais brincadeiras e comportamentos são ‘adequados’ para cada sexo

 

As ilustrações desta reportagem foram feitas por Bruna Romero. Assinando como Brunafrog no Instagram, é formada em publicidade pela ESPM. Ela resolveu deixar de lado a rotina caótica das agências para se aventurar no universo da arte e da criatividade. Hoje, atua como designer e ilustradora, e usa a temática dos sentimentos para guiar o seu trabalho.