Viktor Braga/UFC | Arte de Pepita Ortega Pesquisadora segura pele de tilápia. Tecido é rico em colágeno 1
Mais de 500 pessoas no Brasil já foram beneficiadas: tecido protege a derme queimada, reduzindo risco de contaminação

Pele de tilápia? Rica em colágeno, ela vem sendo usada para tratar de queimaduras a câncer ginecológico

Mais recente vitória da prótese biológica foi uma cirurgia corretiva de redesignação sexual, realizada na Unicamp em abril

Do uso pioneiro no tratamento de queimaduras graves às possibilidades abertas em áreas como cardiologia e traumatologia, nem o céu é limite para as pesquisas médicas com pele de tilápia. Prova disso é que um curativo feito com o peixe de água doce pode ser levado ao espaço em breve, em um projeto da Nasa. Mas enquanto isso não ocorre, a mais recente vitória é a utilização da pele em uma cirurgia corretiva de redesignação sexual.

Os estudos para o uso médico da tilápia começaram em 2014, na Universidade Federal do Ceará (UFC), com o professor Odorico de Moraes, coordenador do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM), e com o médico Edmar Maciel, do Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ), em Fortaleza. A ideia inicial era usar o tecido, rico em colágeno do tipo 1, para ajudar na  recuperação de pacientes com queimaduras graves. O procedimento, em que a pele da tilápia é usada para cobrir os ferimentos, foi patenteado no Brasil e no exterior. Se obtiver liberação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o material pode vir a ser usado no tratamento de queimados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Viktor Braga/UFC | Arte de Pepita Ortega
Estudos na UFC reúnem 189 pesquisadores: universidade tem banco de pele capaz de produzir mil unidades em 48 horas

Com os resultados positivos em queimados – e pelas características da pele de tilápia, que é resistente e elástica -, surgiu a possibilidade de usar o tecido também em casos ginecológicos. Seja no tratamento de mulheres com câncer de vagina ou das que nasceram com Síndrome de Rokitansky, doença rara que ocasiona a ausência do canal vaginal e do útero. Nos dois casos, a pele é utilizada para reconstrução cirúrgica do canal, evitando procedimentos mais complexos e de alto custo.

Foi uma paciente de Campinas (SP), a artesã Majô, como prefere ser chamada, que sugeriu expandir o uso da técnica para correção de cirurgia de redesignação sexual ou de mudança de sexo, como a operação é popularmente conhecida. Lendo notícias sobre a técnica, Majô deduziu que a pele de tilápia pudesse corrigir a cirurgia pela qual havia passado duas décadas antes. “Criei uma expectativa muito grande. Pensei: é a solução”, explica a artesã de 44 anos.

O passo seguinte foi entrar em contato com o professor Leonardo Bezerra, do Departamento de Saúde Materno-Infantil da UFC. “Ele me respondeu prontamente e disse que existia a possibilidade de me ajudar”, lembra Majô. “Contou que tinha interesse em ampliar (o tratamento) de mulheres cis para mulheres trans.”

No procedimento tradicional de redesignação, ao qual Majô se submeteu, o canal vaginal é construído a partir da pele do órgão sexual masculino. “Como ela havia feito hormonioterapia, houve redução do pênis, gerando um canal vaginal muito pequeno, que impossibilita relações sexuais”, explica Leonardo, que participou do processo cirúrgico ao lado de especialistas da Unicamp e da Universidade de São Paulo (USP).

A operação foi realizada com sucesso em abril, no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM), vinculado à Unicamp. Os médicos usaram um molde de silicone para fixar o novo canal vaginal e o processo de cicatrização deve durar entre 60 e 90 dias. Apesar do pouco tempo desde a segunda cirurgia, Majô está otimista. “É muito diferente da primeira técnica. Agora posso dizer que estou completa.”

Até o fim de junho, estudos para desenvolver a aplicação da pele de tilápia desde o início da cirurgia de redesignação sexual devem ser iniciados em uma instituição de Cali, na Colômbia. No próximo semestre, a investigação deve continuar também na USP.

Rokitansky e câncer de vagina

A pele de tilápia pode ser aplicada em outras duas situações. Uma delas é em mulheres que tiveram câncer de vagina e precisaram passar por radioterapia, tratamento que acaba ressecando o canal vaginal. A outra, em casos das que nasceram com a Síndrome de Rokitansky (Síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser), uma malformação que acomete 1 em cada 5 mil mulheres no mundo, segundo a Associação Americana de Ginecologia e Obstetrícia.

Foi o caso da jovem Laura, de 18, que se submeteu à cirurgia com pele de tilápia há cerca de um ano. Assim como a maioria das mulheres com a doença rara, ela só descobriu que tinha algo de errado com seu corpo em 2014. Como na época estava com 14 anos e ainda não tinha menstruado, procurou uma ginecologista. Durante o exame de ultrassom, a profissional notou que Laura não tinha útero. “Ela disse que nunca tinha visto um caso como aquele em sua carreira. Ela chamou outras pessoas e ninguém tinha visto”, conta a jovem.

Esse seria o início de um processo de muitos exames, consultas e diagnósticos equivocados, que só terminaria em 2017, quando Laura descobriu que tinha Síndrome de Rokitansky e havia nascido também sem o canal vaginal.

Em casos da síndrome congênita ou de câncer de vagina, o mais comum ainda é fazer a reconstrução utilizando tecido da própria mulher, como do intestino. Todas as opções foram oferecidas à Laura pelo professor Leonardo, que fez a cirurgia. “Ele disse que a cirurgia com a minha pele seria mais invasiva e eu corria o risco de infecção”, lembra a jovem. “Optei pela operação com pele de tilápia.” Quase um ano após a cirurgia, Laura afirma que o procedimento lhe possibilitou ter uma vida sexual ativa e saudável.

Ao todo, uma paciente com câncer de vagina e dez mulheres com Síndrome de Rokitansky já foram submetidas a processos cirúrgicos com pele de tilápia no Brasil. Todas as pesquisas para o método foram realizadas no NPDM da UFC e na Maternidade-Escola Assis Chateaubriand (MEAC/UFC), onde a técnica é aprimorada há cerca de três anos.

Futuro da pele de tilápia

A universidade cearense conta com 189 pesquisadores atuando na área e já tem o primeiro banco de pele do animal no Brasil – capaz de produzir até mil peles a cada 48 horas. Desde o início dos estudos sobre uso do tecido em queimados, no fim de 2014, mais de 500 pessoas no País já foram beneficiadas pelo método alternativo. Na aplicação em pessoas queimadas, a pele de tilápia se adere à derme humana, preservando o leito da ferida do meio externo. Com isso, evita-se perda de líquido e contaminação. O procedimento possui patente no Brasil e no exterior.

Os pesquisadores agora pretendem registrar a técnica na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O uso da pele de tilápia em queimados foi tratado pelo pesquisador Odorico de Moraes, em encontro com o presidente Jair Bolsonaro (PSL) e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em 10 de maio. O registro na Anvisa é o primeiro trâmite necessário para que o material biológico possa ser adotado no tratamento de queimaduras pelo SUS.

A pesquisa já é utilizada em outros seis Estados: Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio, Goiás e Pernambuco. Também há 43 estudos sobre a pele de tilápia em países como Alemanha, Holanda, Guatemala, Equador, Colômbia e Estados Unidos. Curiosamente, a técnica já foi até citada nas séries Grey’s Anatomy e The Good Doctor (ambas da emissora norte-americana ABC).

Cena de Greys Anatomy, reproduzida no Instagram da UFC

Segundo o presidente do IAQ, Edmar Maciel, um dos coordenadores da pesquisa, outras 15 áreas têm projetos para desenvolver produtos derivados da pele do peixe de água doce, que devem ser testados inicialmente em animais. “Na cardiologia, pode-se desenvolver válvula ótica. Na traumatologia, resolver problemas de lesões de tendão. Na própria ginecologia, alças para levantamento de útero e bexiga. Na cirurgia plástica, reconstrução de próteses mamárias e em queimaduras profundas”, exemplifica.

Nasa

A aplicação da pele de tilápia em diversos procedimentos atraiu a atenção da agência de exploração espacial norte-americana Nasa. O estudante Luis Gabriel de Sales Castillo, de 15 anos, foi escolhido para participar do Cubes in Space, que envia projetos de jovens entre 11 e 18 anos para o espaço. Luis, aluno de uma escola em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, propôs que os astronautas levassem a pele do peixe, que será exposta à estratosfera em junho deste ano.

A proposta é que os cientistas entendam como o material biológico se comporta em condições diferentes de pressão atmosférica, radiação e gravidade. “Quando esse material voltar, vamos fazer estudos para saber, principalmente, se houve mudanças na proteína colágeno 1, que é muito importante para a cicatrização”, explica o médico Edmar.