Quando tinha 28 anos, Rodrigo Silveira descobriu, durante um exame de rotina, que havia sido infectado com o vírus HIV. Àquela época, estava em um relacionamento fazia quatro meses. Seu parceiro sumiu após saber do diagnóstico. Apesar de entender o avanço da medicina e que seria possível viver com a sorologia positiva, Rodrigo diz só ter se lembrado de seus ídolos, como Renato Russo e Cazuza, que foram levados, entre as décadas 1980 e 1990, pela aids – estágio avançado do HIV. “Como qualquer outro jovem que recebe esse resultado, achei que estava recebendo um atestado de morte.”
Do diagnóstico até a aceitação, Rodrigo, hoje com 32 anos, teve apoio de amigos e da família. Mas ele também rememora dores, trazidas, geralmente, pelo preconceito. “Já aconteceu caso de agressão de gente que eu estava conhecendo, que não aceitou minha condição.” Atualmente, ele mantém a ONG Florir, em Divinópolis, cidade de Minas Gerais, que estimula pessoas soropositivas a viverem sem medo.
A idade que Rodrigo tinha quando soube do vírus é uma das faixas etárias com mais casos de notificações de HIV ao longo da última década. Segundo Boletim Epidemiológico mais recente do Ministério da Saúde, pessoas entre 25 e 29 anos estão entre as mais infectadas. Considerando todas as faixas etárias, a população negra, incluindo pretos e pardos, é uma das que mais contraem o vírus (56,3% em 2017) e morrem em decorrência de aids no Brasil – 60,3 pessoas em cada 100 mil habitantes, no ano passado. Uma das formas de prevenção ao HIV, o uso de camisinha cresceu a partir de 1980, mas estagnou na última década no País, mantendo uma média de 40 mil novas infecções por ano, de acordo com pesquisa do Departamento de Psicologia Social da Universidade de São Paulo (USP).
“Como qualquer outro jovem que recebe esse resultado, achei que estava recebendo um atestado de morte.”
– Rodrigo Silveira
Somente até junho deste ano, 2.564 homens nesta faixa foram notificados. O número é 222,5% maior que o registrado em 2007, quando 795 homens receberam o diagnóstico. Quando observadas as notificações no gênero feminino para a mesma faixa etária, os números também saltam, em menor proporção, de 553 em 2007 para 641 mulheres infectadas até junho de 2018.
Em 2017, a população ainda mais jovem, com idades entre 20 e 24 anos, também atingiu o maior número de infectados ao longo dos 30 anos de luta contra o HIV e aids no Brasil. Ao todo, 6.670 homens e 1.459 mulheres foram notificados com a doença no ano passado, quando o triste recorde de novos casos foi batido. A quantidade de infectados vem crescendo com o passar do tempo.
Mais jovens
O fato de infectados no País serem mais jovens se deve a múltiplos fatores, como explica Rico Vasconcelos, infectologista e coordenador do Estudo Profilaxia Pré-Exposição (Prep) Brasil. O médico cita alguns aspectos da juventude atual que colaboram para isso, como a iniciação na vida sexual mais cedo, o aumento de gravidezes indesejadas na adolescência e a hipersexualização dos corpos, principalmente dos femininos. Mas Rico enfatiza que vai além disso. “É um pacote grande. A melhor maneira de explicar o porquê (deste ‘rejuvenescimento’) é que os jovens de agora são a juventude de agora. O mundo é outro, as pessoas são diferentes, se relacionam de maneira diferente.”
Diretora da Unaids no Brasil, programa da Organização das Nações Unidas (ONU) dedicado ao combate do HIV, Georgiana Braga-Orillard compara a geração que viveu o surto da epidemia da aids no País, nos anos de 1980, com a de hoje. Embora os jovens tenham mais acesso à informação, eles têm menos instrumentos para entender as informações que os envolvem. “Isso porque não estamos investindo em educação sexual, principalmente nas escolas, e as famílias não estão fazendo isso em casa, assim como a sociedade também não faz”, afirma.
“Não estamos investindo em educação sexual, principalmente nas escolas, e as famílias não estão fazendo isso em casa, assim como a sociedade também não faz.”
– Georgiana Braga-Orillard, diretora da Unaids Brasil
Apesar de ter reduzido o total de registros do ano passado para este, o número de infectados atualmente pode ser maior, considerando-se as subnotificações. De acordo com relatório da Unaids, quase 10 milhões de pessoas no mundo ainda não sabem que foram contaminadas pelo vírus, o que representa 25% dos infectados. Os outros três quartos (75%) conhecem seu estado sorológico. Georgiana afirma que é difícil dizer exatamente por que as pessoas não estão fazendo os testes. “Por falta do próprio insumo, de teste, de acesso ao teste. Em outros lugares, por criminalização, seja da prática sexual ou do uso de drogas”, sugere.
Além do ‘use camisinha’
Pesquisadora da prevenção da aids desde a década de 1980, Vera Paiva reforça que informar sobre prevenção vai muito além de dizer “use camisinha”. “Se pregação de pai e mãe, ou até mesmo de religião, não importa qual, funcionasse para todos os jovens, a aids não tinha sequer começado.”
Apesar de o preservativo ser associado à doença desde o início da epidemia, ela lembra que a maioria de pais e mães agradeciam pelo trabalho de prevenção desenvolvido pelas escolas. “Naquela época, o uso do preservativo era zero. Passou para 48% em 1998, 54% em 2003 e 65% de 2005 para cá.” Esses dados, segundo Vera, se referem à primeira relação sexual — o uso de preservativo nem sempre continua posteriormente.
Segundo Vera, que também é professora titular no departamento de Psicologia Social da USP, como o uso de preventivos cresceu e estagnou no País, as infecções se mantêm na média de 40 mil pessoas contaminadas por ano. “Mas devia diminuir, ainda mais num país onde você tem, em tese, acesso universal à medicação e aos insumos de prevenção.”
Mulheres negras
Outro dado que chama a atenção no boletim do Ministério da Saúde é o porcentual de mulheres negras infectadas. Em pouco mais de uma década analisada, 41,9% dos casos se deram entre brancas, ante 57,1% entre negras — aqui, somam-se pretas e pardas autodeclaradas. Em 2017, a proporção de óbitos entre mulheres negras foi superior à observada em homens negros: 63,3% e 58,8%, respectivamente.
“Eu vejo isso como uma resposta do Estado para a saúde de mulheres negras. Não existem estratégias específicas para a saúde delas. Faltam insumos, informação e, por isso, mulheres negras são as que morrem de aids até hoje”, avalia a artista plástica Micaela Cyrino, integrante do coletivo Amem. O grupo propõe discussões sobre a liberdade do corpo feminino, objetificação do corpo negro, homoafetividade negra, silenciamento e estigma em torno do HIV.
Infectada verticalmente, quando o vírus é transmitido de mãe para filha, Micaela hoje tem 30 anos — a mesma idade do movimento de combate à epidemia. A artista reforça o papel da informação para prevenir a infecção e desconstruir o preconceito. “E isso tem muito a ver com a memória que foi construída em relação ao HIV e à aids. Não existe uma atualização das informações. A gente precisa pensar mecanismos para falar disso o ano inteiro, não só em dezembro (mês de conscientização sobre a aids).