O ano era 1975. A Organização das Nações Unidas (ONU) realizava a Conferência Mundial do Ano Internacional da Mulher, na Cidade do México. Enquanto isso, no Rio, em pleno regime militar, nascia o Centro da Mulher Brasileira, fundado por uma geração de feministas que retomou os movimentos de rua no País para reivindicar direitos como a igualdade salarial e o fim da violência contra a mulher. Uma história que o Museu Histórico Nacional (MHN) quer recontar a partir da reunião de artefatos pessoais de algumas das protagonistas do movimento feminista brasileiro da década de 1970.
A montagem da coleção faz parte do programa de criação de acervo de história contemporânea do Brasil, como explica o diretor do MHN, Paulo Knauss. “Somos um museu de acervo. Então, temos esse trabalho de construir coleções que contem a história contemporânea”, diz Knauss. “Uma das partes deste trabalho envolve os movimentos ligados à promoção e à construção de identidade.”
O processo está sendo coordenado por técnicos do museu em cooperação com representantes do movimento feminista da década de 1970. O recorte histórico foi escolhido por se tratar de um momento chave na volta das manifestações de rua e do protagonismo feminino na vida social e política do País. “O Ano Internacional da Mulher é o marco para o ressurgimento das mulheres na rua. Você ainda tinha um grande chapéu no Brasil, a redemocratização”, diz a professora Hildete Pereira de Melo, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Políticas Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF). Naquela década, ocorreu uma segunda onda feminista, de acordo com Hildete, uma das representantes ativas do movimento naquele período.
Enquanto o primeiro levante batalhou pelo sufrágio universal, conquistado em 1934, o movimento seguinte tinha influências como a escritora francesa Simone de Beauvoir e a fundadora da Organização Nacional das Mulheres nos Estados Unidos, Betty Friedan. “Entre os movimentos das sufragistas e as conquistas posteriores, como o Estatuto da Mulher Casada, que garantiu igualdade na sociedade conjugal, em 1962, houve um interlúdio muito grande, resgatado pelos movimentos que vinham de fora e repercutiam no Brasil, e também pelo livre acesso da mulher à educação”, afirma Hildete.
O Museu Histórico já conseguiu a doação de objetos pessoais que resgatam a história de algumas das pioneiras dessa segunda onda. “Já temos os óculos de Rose Marie Muraro, os óculos escuros de Ruth Escobar e o cinzeiro de Carmen da Silva”, conta Paulo Knauss. “Por meio desses objetos pretendemos montar uma coleção que permita formar uma biografia coletiva do movimento.”
Histórias feministas
Hildete nasceu em Campina Grande, em 1943. Ativa no movimento estudantil na Paraíba, mudou-se para o Rio com o marido porque, segundo ela, não conseguia emprego em decorrência de sua atuação. Na capital fluminense, formou-se em Economia e em 1966 foi com o marido estudar na França, onde ficou até 1968. De acordo com a economista, a mudança no engajamento político feminino nesse período ficou evidente na sua volta.
“A diferença do Brasil que eu deixei e o Brasil que eu encontrei um ano e meio depois foi grande. E a educação foi um fator decisivo para a retomada do movimento feminista, com o aumento do número de mulheres na universidade”, relembra. “Encontrei muitas mulheres na política, ainda sem voz nos microfones, mas participando.”
Os movimentos estudantis de 1968 foram importantes para a retomada da presença feminina nas ruas, segundo Hildete. Mas o trabalho de algumas pioneiras, que têm suas histórias resgatadas no acervo do MHN, também se mostrou decisivo.
“É o caso de Carmen da Silva, jornalista que escrevia a coluna A Arte de Ser Mulher na revista Claudia, onde defendia sempre a independência financeira como forma de alcançar a liberdade feminina”, conta Hildete. “É a partir das leitoras dela, as mesmas mulheres que haviam posto os pés na universidade nos anos 1960, que se organiza no Rio uma semana de debates sobre a situação da mulher, o embrião do Centro da Mulher Brasileira.”
Outra feminista retomada pela coleção é a escritora Rose Marie Muraro, então editora da Vozes, ligada à Igreja Católica, trabalhando ao lado de intelectuais como Leonardo Boff. “Em 1971, Rose promoveu a vinda de Betty Friedan para o Brasil para divulgar um de seus livros. Ela teve uma longa participação desde os anos 1960 e conosco no Centro da Mulher Brasileira.”
Causas do movimento
A inauguração do Centro da Mulher Brasileira representou um passo importante para as feministas de então. Com uma agenda própria, as mulheres conseguiram pleitear seus direitos de forma institucional.
Por meio do trabalho desenvolvido pela instituição, surgiram a propostas como o texto da emenda ao Código Civil que instituiu o direito ao divórcio. Além disso, o órgão serviu para pautar o debate público em torno das causas do movimento. “As maiores bandeiras naquele momento eram a igualdade salarial, ‘o salário igual pelo trabalho igual’, e o fim da violência contra a mulher. Avançamos bastante também com o direito das trabalhadoras domésticas, que sempre foram esquecidas.”
O respaldo político ajudou a obter a implementação de relevantes políticas públicas. Na década de 1980, Tancredo Neves, em Minas Gerais, e Franco Montoro, em São Paulo, inauguram as primeiras delegacias voltadas para mulheres.
Para além da agenda desenvolvida pelo Centro da Mulher Brasileira, pautas externas foram incorporadas com o passar dos anos. Com a anistia e a volta de mulheres exiladas ao Brasil, por exemplo, um tema que ganhou espaço no debate nacional foi a descriminalização do aborto, já discutida em outras partes do mundo.
“A primeira manifestação de rua pelo aborto foi em 1980, depois da prisão de algumas mulheres. A volta das exiladas foi fundamental para esse debate, porque a luta pela descriminalização do aborto já havia no mundo inteiro.”
Doação de itens relevantes
Apesar do esforço para remontar a história do movimento feminista, ainda não há uma previsão de quando e nem de como será a exposição ao público. Apenas ao fim do processo de coleta de itens e de consolidação da coleção, explica Knauss, é que se analisará a forma de apresentação.
“Com base no que for possível coletar para montar a coleção é que o museu vai averiguar se poderá colocar em um espaço ou em uma coleção permanente – a que conta a história geral do Brasil”, conta o diretor.
A instituição tem canais diretos com o público para quem se interessar em fazer uma doação. Nem todos os itens podem ser recebidos, uma vez que o próprio museu tem capacidade limitada para manter a conservação de determinados objetos. Pelas redes sociais é possível conseguir os contatos em caso de interesse em contribuir com o acervo.
Apesar de o processo ainda estar no começo, Hildete comemora o processo para criação da exposição como mais um espaço a ser ocupado pelas mulheres. “A segunda década do século 21 está mostrando uma coisa: Se nós éramos ignoradas e silenciadas na maioria do século 20, não dá mais para achar que as mulheres não existem”, diz Hildete. “Espero que esta nova geração de mulheres que chega à vida adulta, a geração da minha neta, não permita que a bola caia. Que continuem a luta pela igualdade.”
Figuras históricas
A exposição permanente, que apresenta a história do Brasil desde o período Pré-Colombiano, evidencia também o papel de marcantes figuras femininas. Mulheres como Paraguaçu, Maria Bonita e Princesa Isabel estão representadas no museu por meio de objetos, pinturas e alegorias.
O MHN digitalizou parte do acervo exposto. O material está disponível no site oficial da instituição e inclui, entre muitas atrações, parte dos desenhos de Sophia Jobim, pioneira no estudo de indumentária e de moda no Brasil. Além disso, é possível fazer um tour virtual em parte do museu.