Entre medos, expectativas, erros e acertos, três mães narram aqui o processo de descoberta, os diálogos e o que mudou – ou não – na relação entre elas e seus filhos transexuais. São mulheres que nunca deixaram de acolher aqueles que amaram desde sempre. Que provam no cotidiano a premissa do amor incondicional. Isso não significa que o processo de aceitação tenha sido fácil. Na maioria dos casos, foi o oposto disso.
Para as mães de transexuais, a apreensão existe pelo simples fato de os filhos serem quem são. Medo de agressões na rua, da repressão na escola e da rejeição da própria família. Problemas que enfrentam com coragem e orgulho.
Em comum, são relatos de aprendizagem. Elas contam o que os filhos ensinaram sobre transexualidade, disforia de gênero, redesignação sexual e outras palavras complexas. Mas o conselho que dão para quem está passando por este momento de descoberta é simples e unânime: aceitação e amor. Mais nada.
Gretchen Miranda, mãe de Thammy, de 36 anos:
“O começo foi difícil, como é para todos os pais. O processo de descoberta foi complicado, principalmente para uma mãe que conviveu com uma menina extremamente sensual como o Thammy foi. Mas acabou se tornando um aprendizado conjunto, porque ela também não sabia como lidar com aquilo que estava acontecendo e o que fazer com o sentimento de se sentir atraída por outras mulheres. Hoje, eu tenho um filho com a força e a determinação de um menino, e a delicadeza e sensibilidade de uma menina.
O grande problema entre nós foi mais o que não conversamos. Ela não me contou, fui eu que descobri. Sempre que eu perguntava, ela negava e dizia que era coisa da minha cabeça, que eu estava inventando. Então, o que me machucou mais foi a omissão, porque eu, com minha experiência de mãe, já sabia que algo estava acontecendo.
Qualquer homossexual, trans ou pessoa LGBTQI+ precisa, em primeiro lugar, do carinho de mãe. Aquele carinho que você sentiu desde o primeiro momento da gestação, antes de saber se era menino ou menina. É esse amor incondicional que você tinha pelo bebê ainda na sua barriga.
O que eu digo para as mães que estejam passando pela mesma situação é: não demorem! Não demorem para perceber e, depois disso, chamem o filho ou a filha para conversar. Sejam sinceros e sejam abertos, por mais dolorido que possa ser. É mais difícil você chegar para um filho viciado e dizer ‘Eu sei que você se droga’ do que ‘Eu sei que você é homossexual, eu vou ajudar, não quero que você passe por discriminações nem por preconceitos. Estou do seu lado para o que der e vier’. Eu sou muito feliz com o meu filho trans. Considero um presente.”
Adriana Sampaio, mãe de Victor Summers, de 23 anos:
“Eu tive uma formação que acabou me auxiliando no processo de descoberta. Nada para mim foi muito complexo, incrível ou estranho. Não porque eu seja uma supermãe e as outras sejam horríveis, não mesmo. Minha facilidade vem do fato de que o tema é algo naturalizado para mim. Quando eu era pequena, morei em um morro do Rio de Janeiro e convivi com muitas pessoas travestis, transexuais e drag queens. Andávamos todos juntos. E a única maneira de sobrevivermos era um ajudando o outro. Para mim, o mundo era aquilo ali, o que me foi apresentado desde que nasci. Só quando vim para a Bahia que entendi como as coisas não eram sempre assim.
Por aqui, não podia ser gay afeminado, travesti só saía de casa à noite. Eu fiquei deprimida demais na infância, mas aos poucos me acostumei. Aos 24 anos, tive o Victor. Sempre percebi que o comportamento dele não era adequado ao que as pessoas entendem como ‘de menina’. Enquanto ele crescia, houve um processo muito grande de não-identificação com a própria imagem. Ora o cabelo estava feio, ora o rosto, depois não gostava do peso…
Eu achei que ele cresceria e se assumiria uma menina lésbica, mas eu sabia que não era o meu lugar perguntar isso. Ele me diria quando estivesse pronto. Porque às vezes nem a pessoa se identifica assim, está preparada ou tem maturidade para lidar com isso. Depois, realmente aconteceu. Foi quando ele tinha por volta dos 14 anos. Primeiro, senti alívio. Imaginei que a sensação de inadequação que ele sentia com o corpo, o rosto e o cabelo iria passar. Mas só piorou.
Fomos a um psicólogo. Ele disse que não se tratava de um caso de orientação sexual, mas sim de identidade de gênero. Aí o alívio finalmente veio. Vi que o Victor poderia desenvolver seu potencial e parar de se sentir triste. Sou pobre, assalariada e mãe solteira, mas perguntei: ‘E agora? O que a gente faz?’. Victor me disse que queria fazer cirurgia e tomar hormônios. Respondi que faríamos isso, mesmo que precisasse pegar um empréstimo no banco. Peguei. E estou pagando até hoje. Eu entendia que, para o meu filho, aquilo não era uma ‘opção’.
A cirurgia foi realizada há mais de seis anos e deu tudo certo. O aprendizado que ficou foi como as pessoas que estão em nosso entorno tratam o tema. Hoje, eu costumo ter um alto grau de paciência, porque tenho vocação para explicar. Acredito, efetivamente, que quanto mais se fala de um modo coerente e didático, mais naturalizada a questão fica. O problema é invisibilizar.”
Érika de Souza, mãe de Vinícius e Victor, de 19 anos:
“Com 16 anos, o Vinícius me contou que era um menino transexual. Sempre achei que ele fosse uma menina lésbica, mas por mim não tinha nenhum problema. Nós sempre conversamos muito sobre sexualidade, mas me imaginar como mãe de uma pessoa trans era algo que nunca passou pela minha cabeça. Quando ele me disse, à mesa do jantar, que tinha de contar uma coisa… Eu sabia que era algo sério.
O Vinícius me disse: ‘Existe um grupo, o Mães Pela Diversidade, e eu acho que você vai precisar conhecê-lo, porque eu sou um menino transexual’. Na hora, a minha cabeça virou uma geleia e eu não entendi o que aquilo queria dizer. Só respondi: ‘Beleza, tô aqui para o que você precisar, não mudou nada’. Entrei no quarto e chorei por quatro dias. Achei que ninguém pudesse me entender. A não ser a Gretchen – e eu não tinha o telefone dela.
Meu filho é um desbravador, por toda a paciência que teve comigo. Eu não sabia de nada e ele explicava tudo, me dava os recursos para entender, quantas vezes fosse necessário. Não foi fácil no início, mas depois eu descobri que era algo comum nos seres vivos, a gente que não tem o conhecimento. Ele é o mesmo filho que corria para mim e eu protegia. Não mudou nada, exceto que agora ele tem a oportunidade de ser quem realmente é.
Um ano depois, o irmão dele se sentiu seguro e disse que também era trans. Algumas mães relatam que passam por um período de luto, que haviam “perdido” a filhinha. Mas eu não tive isso. Os pais precisam ter gentileza e amor no coração. E olhar para os filhos com esse carinho. São as mesmas pessoas, mas que hoje desabrocharam. São mais felizes e melhores. Aprendo com eles todos os dias.”