Bentinho e Escobar representam bem mais que vértices de um talvez quem sabe triângulo amoroso em Dom Casmurro. São ícones de uma sociedade carioca em transformação, na qual velhos costumes do Império e ideias republicanas entraram em colisão em áreas diversas. Na política e na economia, o embate é mais claro. Mas também está de alguma forma representado no esporte, na opinião de especialistas no assunto. Principalmente na oposição entre o tradicional turfe e as modalidades aquáticas como remo e natação, que começavam a despontar.
“Dom Casmurro diz mais sobre a sociedade do Rio de Janeiro do que exatamente sobre a história de amor. Machado de Assis era um escritor realista e incorporou a cidade em todos os seus romances e crônicas”, defende o professor Victor Melo, do programa de pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “É muito possível que esses personagens tenham alguma inspiração na realidade.”
Para o professor, há um enredo oculto em meio ao suposto romance cruzado, que envolve valores de uma sociedade em transformação e dois modelos de masculinidade, uma mais bacharelesca e outra mais empreendedora. “Machado vai colocar um pouco dessa transição em Bentinho e Escobar. O velho homem do Império (Bentinho) vai ficar muito assustado com esse novo homem republicano (Escobar), do progresso, que conquista com seus próprios braços.”
No período em que se passa o romance, entre as décadas de 1850 e 1870, esse conflito estava evidenciado também na cena esportiva. Turfe e remo eram modalidades que já se consolidavam como atividades reconhecidas e populares na sociedade. O turfe, ligeiramente mais antigo, estrutura-se profissionalmente a partir de 1949, com a fundação do primeiro clube de corridas da cidade, enquanto o remo tem uma regata mais bem organizada em 1951.
Parte de um conjunto de mudanças na sociedade, o remo começa a atrair maior atenção, principalmente da burguesia em ascensão. “Ao fim do século 19, o mar vai se tornar em um espaço de festa para o carioca, algo que vai se consolidar no começo do século 20. Nesse momento, o remo e a natação serão os esportes que se destacam, inclusive combatendo o turfe, que lembra uma cidade rural, pela presença do cavalo, e a lógica imperial. O remo vai ser relacionado à burguesia urbana em formação.”
A conquista do remo está relacionada também com uma nova conceituação do espaço social da praia e dos banhos de mar, até então entendidos como prática terapêutica, sendo inclusive prescritos em consultórios médicos. A conquista da praia como espaço de entretenimento e prática de atividade física criam também uma socialização, criando uma associação dos esportes aquáticos com o progresso, transformação que o professor enxerga em Escobar. “Escobar era um homem esportivo, muito parecido com o homem do século 20. Ele é aquilo que a sociedade vai apontar para o futuro enquanto ideal de progresso e civilização, do qual o esporte fazia parte.”
E as mulheres?
Apesar de serem inicialmente praticados apenas por homens, tanto o turfe quanto o remo abriram caminhos para uma maior participação feminina, bem restrita na vida social. Para garantir o “caráter familiar” dos ambientes esportivos, as mulheres começaram a ser incentivadas a comparecer às arquibancadas, que também se tornaram um espaço de flerte. Isso, segundo Victor, foi essencial para a criação da ideia de amor romântico, iniciando uma quebra com a tradição de casamentos arranjados.
“Pode parecer pouco, mas isso já era um avanço para a mulher poder sair de casa mais vezes, considerando que na primeira metade do século 19 havia um ditado no Rio de Janeiro que dizia: ‘Uma mulher honesta só sai de casa duas vezes: para casar e quando morre’”, conta o professor.
O protagonismo feminino iniciado nas arquibancadas foi impulsionado com os valores em mudança. Em 1875, diários de notícia cariocas já publicavam textos sobre mulheres jóqueis, enquanto em 1876 Maria Domitila de Aguiar e Castro, neta da Marquesa de Santos, vencia um dos páreos inaugurais do Jóquei Club de São Paulo. É nesse protagonismo feminino emergente na virada do século 19 para o século 20 que Victor acredita que Machado de Assis se inspirou para retratar outro conflito de Dom Casmurro.
“Começamos a ver um aumento do protagonismo feminino. Nem sempre isso era explícito na vida pública, mas, na época do romance, com certeza já acontecia dentro dos lares, em um processo gradual”, diz Victor. “Nesse sentido, o romance também carrega o embate entre dois modelos de mulher, com Capitu e Sancha. O homem do passado está casado com a mulher do futuro, Capitu, e o homem do futuro, Escobar, está casado com a mulher do passado.”
Embora o romance não incorpore cenas de prática esportiva, Victor especula que as mulheres que começavam a ganhar destaque na cena pública possam ter vindo a inspirar o autor ao construir Capitu. “No que se refere à atividade física, no quartel final do século 19, começamos a perceber um maior número de mulheres fazendo atividade física. Já temos, por exemplo, remadoras registradas em jornais. Já temos nadadoras”, afirma o especialista. “O romance não incorpora esse perfil de mulher, mas certamente Capitu é essa mulher mais ativa frente a Sancha, que é ainda mais presa à ordem privada. Não é por acaso que a brincadeira que Machado de Assis faz é justamente com a turbulência do mar: Capitu tem olhos de ressaca.”
Nasce o subúrbio
Bentinho, Capitu e Escobar convivem nos mesmos espaços em boa parte do romance: o casal na rua da infância, os dois amigos no seminário e todos no mesmo bairro na vida adulta. No entanto, os três personagens têm origens sociais completamente distintas. Enquanto Bentinho era de uma família aristocrática, de tradição rural, Escobar era filho de um advogado e vivia no Rio com um parente comerciante, possivelmente parte da burguesia que começava a se estabelecer no período. Capitu, apesar de ser de uma família sem posses, era vizinha de Bentinho na infância.
A explicação, segundo a professora Adriana Carvalho, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), tem a ver com outro enredo retratado na obra: a evolução urbana da cidade. “O Rio retratado no livro é uma cidade em que diferentes classes sociais ainda conviviam em um mesmo espaço comum. Toda a população basicamente vivia no centro, pela pouca mobilidade da cidade”, explica a professora.
A trajetória de Bentinho reconta um pouco da história da cidade. A infância é passada na Rua de Mata-Cavalos, no limite do centro do Rio, área mais populosa da cidade no começo do século 19. A fase adulta, ao lado de Capitu, é passada na zona sul, na freguesia da Glória, também uma área nobre. Já a velhice é vivida no Engenho Velho, área próxima ao atual Maracanã, então subúrbio carioca. “É a transição de um subúrbio que não é o subúrbio proletário que a gente conhece hoje no Rio. Machado descreve um subúrbio em transição, ainda dos casarões, das chácaras, que vai se transformar depois em um subúrbio proletário.”
A mudança de Bentinho, no entanto, é um mistério tão grande quanto o que envolve a suposta traição de Capitu. Segundo Adriana, não fica claro se a reconstrução da casa da infância no Engenho Novo representa um desejo de isolamento ou apenas um hábito da classe abastada frente às mudanças urbanas do Rio. “Bentinho recriar a casa no Engenho Novo pode sugerir tanto o refúgio, o isolamento, como também pode indicar um personagem que ainda tenta surfar nessa onda de um subúrbio um tanto glamouroso, que tem estação de trem que conduz a Petrópolis e um Jockey Clube.”