As mulheres jogam mais que os homens, mas se consideram menos gamers do que eles. Quando se tornam profissionais, têm dificuldade maior para conseguir patrocínio e sofrem preconceito e assédio ao entrar com nomes femininos no bilionário mercado dos eSports. Entre os desenvolvedores de jogos, elas são apenas 12%, segundo o Sioux Group. A desigualdade de gêneros nos games é tanta que já chama atenção até da pesquisa acadêmica.
Integrante do Brazilian Crusaders, hoje um dos principais times de eSports do País, a estudante Danielle Andrade já havia lidado com o assédio online algumas vezes. Nada comparado, no entanto, às mensagens ofensivas e sexistas recebidas após sua indicação a melhor jogador de Rainbow Six: Siege (RSS) no Prêmio eSports Brasil. “Esperava que fosse acontecer, mas foi pior do que pensei”, conta a estudante de 18 anos, que joga como Cherna. “Foram muitas pessoas me xingando, até mulheres, isso foi realmente um baque.” Ela é a única jogadora entre oito nomes na disputa pelo título de número 1 no RSS, game de tiro com popularidade crescente em 2018.
As mulheres são maioria entre os jogadores de videogame (58,9%), pelo terceiro ano consecutivo, ainda segundo Pesquisa Game Brasil 2018, organizada pelo Sioux Group por meio do Gamelab e do Go Gamer. Mas apenas 20,1% daquelas que jogam se consideram gamers – entre os homens, são 35,4%.
“Se assumir gamer é ter de provar constantemente que se é uma boa jogadora. É ter de conhecer muitos jogos e provar que joga horas a fio”, explica Paula Bristot, bacharel em Tecnologia da Informação e autora do artigo A Representatividade das Mulheres nos Games. “Assim como os homens, as mulheres querem apenas se divertir, competir ou relaxar, sem provocar estranhamento, discriminação, ofensa ou assédio.”
Não é difícil ouvir que homens têm vantagem biológica sobre mulheres nos games. Algo que não é real. Ao contrário dos esportes tradicionais, nos quais a aptidão física tem influência direta nos resultados, os esportes eletrônicos são pautados por reflexos e sinapses cerebrais — aspectos em que o gênero do competidor não faz diferença.
Em pesquisa realizada em 2017 na Universidade de Berkeley, na Califórnia (EUA), a professora de Comunicação Cuihua Shen acompanhou cerca de 10 mil homens e mulheres em três diferentes jogos, avaliando a velocidade necessária para se passar de nível. Resultado: as jogadoras avançaram tão rápido quanto os homens. Só que elas também afirmaram que os estereótipos de diferença entre os gêneros foram cruciais para que elas se sentissem desencorajadas em começar a jogar.
Nos Estados Unidos, 60% da população adulta afirma jogar videogame diariamente. Por lá, as mulheres ainda estão em menor número, representando 45% do total. Mas há uma faixa em que a situação já se inverteu: a quantidade de jogadoras com mais 50 anos já supera a dos homens de mesma idade, segundo estudo divulgado neste ano pela Entertainment Software Association, o Essential Facts about the Computer and Video Game Industry (numa tradução livre, Dados Importantes sobre a Indústria de Jogos Eletrônicos).
Partidas e patrocínios nos eSports
Embora haja quem se sinta ameaçado pelo empoderamento feminino nos games, ter mulheres ativas no meio ajuda a elevar o número de jogadores tornando o mercado mais competitivo, dinâmico e inovador. Os eSports, apesar de serem algo novo, já alcançam cifras bilionárias ao redor do mundo. Levantamento da auditoria holandesa Newzoo em fevereiro mostrou que o segmento arrecadou 655 milhões de dólares (cerca de R$ 2,5 bilhões) no último ano e a estimativa é que ultrapasse 906 milhões de dólares (R$ 3,5 bilhões, aproximadamente) em receitas em 2018, graças aos contratos de transmissão com as empresas que promovem os torneios.
Jogos como Counter-Strike: Global Offensive, League of Legends e Overwatch são líderes de audiência, e os integrantes das equipes que participam dos torneios são tratados com a mesma reverência e adoração que craques como Cristiano Ronaldo e Lionel Messi recebem dos fãs de futebol. Apesar disso, o machismo inerente que permeia a cultura gamer também afeta os eSports e as poucas mulheres que jogam profissionalmente precisam superar barreiras diárias para se destacarem.
Desde o início da sua carreira nos eSports, Danielle sofreu com o assédio. A princípio, ela se identificava como “Heitor” – e nunca recebeu uma mensagem maldosa ao usar nome masculino. Quando se assumiu como mulher, a Cherna, viu a situação mudar. “Teve gente dizendo que eu trapaceava e era por isso que eu estava jogando bem, que não era o meu lugar, que meu irmão que estava jogando com a minha conta, e por aí vai.”
Enquanto não se identificava como mulher, Danielle chegou a receber propostas para jogar em times, que foram retiradas após ela revelar seu sexo. A jogadora de RSS também percebeu que empresas davam prioridade a seus colegas homens na hora de oferecer patrocínios ou parcerias. “Os patrocinadores estão aparecendo agora por saberem da minha capacidade, mas percebo que ainda preferem homens a mulheres na hora de fechar alguma parceria”, lamenta Danielle.
Desenvolvimento e pesquisa
Apesar do aumento significativo no número de mulheres gamers, o de jogos desenvolvidos por elas ainda é pífio: apenas 12% dos desenvolvedores são mulheres, de acordo com o Sioux Group. Pesquisa realizada em 2017 pelo LinkedIn mostra que, desde 2008, o número de mulheres que ocupam cargos de liderança no setor de tecnologia aumentou apenas 18%.
Quando comecei a aprender design de jogos e só tinha eu de mulher, pensei que o problema era comigo: que eu era muito esquisita por ser mulher e gostar de videogame
Dados da ONU Mulheres Brasil revelam que as mulheres estão fora dos principais postos de trabalho gerados pela revolução digital e somente 18% delas têm graduação em Ciências da Computação. Pensando nisso, a engenheira e designer de games Ariane Parra fundou, em 2014, o Women Up Games, organização que promove a inclusão de mulheres, tanto jogando quanto desenvolvendo para a indústria do videogame.
“Quando comecei a aprender design de jogos e só tinha eu de mulher na minha sala, pensei que o problema era comigo: que eu era muito esquisita por ser mulher e gostar de videogame.” Ariane conta que, apesar de já existirem muitas meninas aficionadas pelos games, várias não “davam a cara a tapa”. “Temiam machismo, assédio e todas as coisas horríveis que acontecem nesse cenário.”
Nestes quatro anos, mais de 3 mil mulheres fizeram parte dos workshops, bate-papos e campeonatos femininos promovidos pela Women Up Games — entre eles, o primeiro torneio de Fifa feminino da América Latina. “As meninas desistem antes de começar porque não veem uma carreira para crescer. A importância de a gente falar sobre a representatividade feminina não é fazer uma divisão de clube das meninas e dos meninos. É para dar uma oportunidade igual. Ou pelo menos tentar”, resume Ariane.
É interessante que elas se vejam. Olhem e percebam: Eu também posso estar atuando nesse segmento
Lynn Alves, coordenadora do grupo de pesquisa Comunidades Virtuais da Universidade Estadual da Bahia (Uneb), afirma que, apesar de ainda ser um espaço bem desigual, os questionamentos acerca da igualdade de gêneros nos games vêm se tornando recorrentes. Não só entre os desenvolvedores, mas também na pesquisa acadêmica a respeito.
O grupo, que tem como um dos objetivos produzir novos conhecimentos relacionados a comunidades virtuais e suas interfaces e mídias, se dedica também a debater e a promover encontros sobre o assunto. Segundo Lynn, até 2016, 34,6% dos mestrados acadêmicos, mestrados profissionais e doutorados sobre jogos produzidos no Brasil foram escritos por mulheres. “É interessante que elas se vejam. Olhem e percebam: Eu também atuar nesse segmento. E isso tem crescido porque agora existe um grupo de mulheres e homens integrados para mobilizar e incentivar as mulheres.”