Juntar uma galera, ir ao estádio e torcer pelo time do coração. Deveria ser algo normal para quem gosta de futebol, mas para as mulheres tornou-se uma forma de se proteger e resistir ao machismo das arquibancadas. “Nossa intenção não é levantar bandeira política nem nada. É simplesmente acolher as torcedoras”, afirma Camila Rocha, uma das fundadoras do VerDonnas, movimento de mulheres palmeirenses que surgiu há cerca de seis meses.
A iniciativa teve origem após uma torcedora do clube ser agredida e expulsa do metrô por corintianos em setembro do ano passado. “Foi um episódio que nos motivou a fazer alguma coisa”, explica Camila. Em pouco tempo, o movimento que começou com 11 mulheres ganhou visibilidade nas redes sociais e o apoio de torcedoras que se identificaram com a causa.
A principal ação nas primeiras semanas foi marcar pontos de encontro pela internet para que as mulheres não fossem sozinhas ao estádio. “Eu já fui muitas vezes sem ninguém aos jogos e, sempre que levantava para xingar algum jogador ou comentar algo, vinha uma massa de homens dizendo que eu não sabia o que estava falando”, diz Camila.
“Como mulher, o assédio já ocorre muito e é desconfortável, mas parece que quando você coloca uma camisa de time ele triplica” — Camila Rocha, palmeirense
O coletivo de torcedoras do Palmeiras é apenas um dos mais recentes de uma série de grupos criados ao longo dos últimos anos no futebol brasileiro. O rival Corinthians, desde 2016, também tem o próprio movimento: o Toda Poderosa Corinthiana. Um manifesto divulgado pelas organizadoras do coletivo após a criação pede que as mulheres tenham voz nas decisões do clube, seja no comando da equipe, seja na torcida.
“Queremos ter a possibilidade de ocupar cargos na diretoria do Sport Club Corinthians Paulista e o direito de poder balançar uma bandeira dentro de uma Torcida Organizada sem sofrer repressões. Queremos a prerrogativa de frequentar as arquibancadas e os bastidores do futebol sem nos sentirmos um pedaço de carne”, diz um trecho do texto publicado pelo Toda Poderosa em seu site oficial.
Organizadas ‘tradicionais’
Em algumas torcidas organizadas, as mulheres realmente têm restrições. Como um ‘código de conduta’ da instituição. “A mulher não tremula a bandeira, nem toca bateria na arquibancada”, diz Natalia Zanotti, diretora de comunicação da Gaviões da Fiel. Em geral, os cargos de diretoria estão reservados aos homens. O caso de Natalia na Gaviões é uma exceção.
Yasmin Moro, integrante da torcida organizada Mancha Alviverde, não se incomoda com essa situação. “Cargo é muito supérfluo. Ter uma voz é mais importante que ter um cargo”, diz. A diretora da Gaviões também não se preocupa com as restrições. “A gente tem muito mais a contribuir nessa organização do que estar na arquibancada tremulando bandeira.”
Também existe controle quanto às viagens da torcida para assistir alguns jogos em outras cidades, as chamadas caravanas. Segundo Natalia, isso ocorre por uma “questão de segurança”. Na Mancha Alviverde, Yasmin conquistou o direito neste ano, depois de quase dez anos dentro da instituição, quando foi ao Rio de Janeiro assistir a uma partida contra o Flamengo, no Maracanã. “Eu entendo que a mulher precisa assumir cada vez mais espaços. Eu acho que em torcida organizada caminha, né? Lentamente.”
Frequentadora de um espaço culturalmente masculino, a palmeirense admite que ainda sente o machismo como um problema a ser discutido. “A mulher, na torcida organizada, entra mais como um símbolo sexual do que qualquer outra coisa.” Ela conta que entrou na Mancha em 2009, quando tinha 14 anos. Aos 23, não é mais vista como um símbolo sexual. “Se a mulher se faz presente, ela conquista o respeito e passa a ser olhada de outra forma.”
Organizadas ‘femininas’
Se nas torcidas tradicionais, a cultura da soberania masculina ainda impera, algumas iniciativas mostram que é possível combinar a tradição da organizada ao olhar feminino. Torcida organizada exclusivamente de mulheres, a Força Feminina Colorada (FFC), do Internacional, foi criada em 2009 e hoje conta com mais de 150 sócias ativas. Elas têm reconhecimento oficial do clube, banda própria, fazem caravanas e têm cadeira cativa no Estádio Beira-Rio, em Porto Alegre. Mas ainda não conquistaram por completo seu espaço.
“São inúmeros os casos de machismo”, conta Malu Barbará, uma das porta-vozes da torcida. Para a torcedora, a mulher ainda é muito invisibilizada, ainda que tenha conquistado seu espaço na arquibancada. “Apesar de ser uma torcida de mulheres, nós levamos nossos maridos e muitas vezes percebemos que os outros torcedores só se dirigem a eles. Nunca a nós. Como se nós fôssemos tuteladas.”
Atualmente, o Internacional é o clube com a maior porcentagem de sócias-torcedoras no Brasil. Dos 116 mil associados, 22% são mulheres, segundo dados confirmados pela diretoria do clube gaúcho.
“Já fomos hostilizadas pela Torcida Geral do Grêmio. Tiraram nossas faixas e exigiram que a gente saísse dali porque não era o nosso lugar” — Kelly Plaz, gremista
A iniciativa colorada influenciou até mesmo o rival Grêmio. Um grupo de torcedoras criou no ano passado o Comando Feminino Gremista. Atualmente, o movimento tricolor tem 178 mulheres cadastradas e já ocupa um espaço dentro da Arena do Grêmio. “Só o que fizemos foi juntar mulheres que antes iam em setores diferentes do estádio, muitas vezes sozinhas, e agora vão juntas.”
Neste sentido, a internet estabeleceu um fator de transformação na forma das mulheres torcerem. “Você encontra muitas pessoas que pensam parecido com você para ir junto para o jogo. As redes sociais te ajudam a conectar com torcedores do mesmo time”, analisa Monique Torquetti, torcedora do XV de Piracicaba e autora do blog independente Fala Torcedora!, onde abre espaço para que mulheres possam contar suas experiências dentro do estádio.
“Eu ia ao estádio sozinha e sempre me olhavam torto. Perguntavam: ‘Cadê seu pai? E seus amigos? Você veio aqui para arrumar homem?’ — Monique Torquetti, torcedora do XV de Piracicaba
Histórico feminino
As mulheres não começaram a torcer ontem. O conceito de arquibancada como ambiente machista é histórico e remete ao início do século 20, segundo o historiador Victor Melo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “As mulheres iam aos eventos esportivos para assistir e conferir ‘caráter familiar’ nestes locais”, explica.
Foi também nas primeiras décadas do século passado, no bairro de Laranjeiras, zona sul do Rio, que elas exerceram um papel fundamental na origem do termo ‘torcida’. Nos jogos de futebol daquela época, as mulheres e filhas dos atletas homens iam aos estádios ou parques esportivos com roupas longas e formais. Ainda que estivessem debaixo do sol escaldante do Rio. Por conta do calor e da tensão com o jogo, elas tiravam as luvas e torciam o suor em um gesto de angústia. Ficaram assim conhecidas como ‘torcedoras’.
Depois disso, em pouco tempo, a desambiguação linguística tratou de popularizar a expressão “torcida” como o coletivo dos fãs de um clube esportivo. Já na década de 1920, é possível encontrar o verbete “torcedoras” nas páginas do Estado.
Quase 100 anos depois, a presença feminina nas arquibancadas ainda é minoritária, mas tem crescido. Uma pesquisa feita pela diretoria do Bahia em agosto apontou que 69% das torcedoras do clube frequentam o estádio regularmente. Ao mesmo tempo, 29% declarou que jamais iria ao estádio sozinha e 23% já sofreu algum tipo de discriminação na torcida pelo simples fato de ser mulher.
“Minha mãe nunca me deixou ir ao Maracanã de short. Mesmo quando criança indo com meu pai, me mandava colocar calça para não sofrer assédio” — Alexandra Guida, torcedora do Fluminense
Em junho de 2017, o Museu do Futebol, em São Paulo, recebeu o primeiro Encontro Nacional de Mulheres de Arquibancada. O evento reuniu representantes de cerca de 50 torcidas organizadas vindas de todos os cantos do Brasil, com o objetivo comum de incentivar a resistência e o empoderamento das mulheres por meio da ocupação de espaços nos estádios.
Presidente da Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg) e um dos presentes no evento, Alex Minduim aponta que esses movimentos e encontros são importantes, mas pontua que o machismo no meio futebolístico só vai mudar quando a mulher ocupar cargos de comando em outros setores. “O futebol é apenas um dos lugares em que essa supremacia dos homens se faz presente. O machismo é um problema social complexo e geral, não específico só do esporte.”