O dia do julgamento do assassino de Alana encerrava um ciclo. “Foi o pior momento da minha vida”, conta Madalena. “Como se eu estivesse terminando de enterrar a minha filha.” Somente naquela sala de tribunal, cercada de estranhos, ela viu o retrato completo do abusivo relacionamento vivido por sua filha. E também as muitas pistas que haviam sido deixadas pela escalada da violência de Paulo Henrique.
Durante as treze horas de sessão, Madalena fez questão de ficar sentada à frente de seu ex-genro, o homem que matou Alana. Ele não olhou em seus olhos. O depoimento, para ela, confirmou apenas o quão grande era o sentimento de posse que ele sentia. “Percebi que, na cabeça do Paulo, é como se ele tivesse feito a coisa certa.”
A morte da Alana poderia ter sido evitada, assim como a da maioria das vítimas de feminicídio no Brasil. “Vemos cada vez mais a intensificação do ciclo da violência. Daquele relacionamento abusivo que começa nas primeiras agressões, humilhações e ameaças. E se intensifica até a morte da mulher”, explica a promotora de Justiça Silvia Chakian, coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid) do Ministério Público Estadual de São Paulo. “Não é em um ato de loucura que o homem mata a mulher. É como se fosse uma tragédia anunciada.”
Alana tinha 26 anos quando conheceu Paulo Henrique. Ela cursava Engenharia Mecânica em São João da Boa Vista, cidade perto de Poços de Caldas, onde morava. Todas as sextas-feiras, ia com amigos a um bar próximo da faculdade. Foi onde conheceu Paulo Henrique. Ele fazia bico como garçom no bar. Durante o dia, atuava como representante de uma marca de maquiagem.
De tanto se encontrarem no mesmo ambiente, os dois acabaram se aproximando. “Um dia, ela me falou: ‘Mãe, estou saindo com uma pessoa e ele disse que gosta muito de mim’. Eu perguntei se ela também gostava dele e a resposta foi que estavam se conhecendo”, recorda Madalena.
Paulo aparentava ser um homem calmo e extremamente tranquilo. Não era de falar muito, tampouco de reclamar. “Perto das pessoas, ele estava sempre disposto a fazer tudo o que ela queria”, conta a mãe. Um perfil muito recorrente entre os autores de violência doméstica e familiar, segundo a promotora Silvia.
Por agir de forma “socialmente adequada”, algumas pessoas não pensam, no primeiro momento, que se trata de um homem capaz de cometer atos de violência doméstica. E acabam muitas vezes não acreditando na vítima. “Esse perfil não corresponde àquele imaginário do criminoso comum, com vasta folha de antecedentes, que não tem emprego, família ou amigos, e vive à margem da sociedade”, afirma a promotora.
O relacionamento dos dois evoluiu rapidamente. Em menos de um ano, Paulo e Alana decidiram morar juntos. Preocupada com a rápida evolução do relacionamento, Madalena resolveu questionar. Perguntou se a jovem tinha certeza do que estava fazendo, disse que achava a filha muito nova. Mas ela parecia determinada. “Vamos só morar juntos, não casar.”
Percebi que ele não deixava Alana dançar ou conversar com os amigos. Ele não deixava fazer nada
Antes do namoro, Alana era extrovertida, vaidosa e não dispensava uma ida à balada ou ao bar, conta a mãe. Com o passar do tempo, foi se distanciando dos amigos e passou a falar menos com a família. “Uma vez, em um churrasco, percebi que ele não deixava Alana dançar ou conversar com os amigos, nem jogar baralho, que era algo que ela gostava. Ele não deixava fazer nada.”
As visitas à casa do casal foram se tornando raridade. Apesar de Alana ser a dona do imóvel, Paulo evitava receber amigos e família. “Ele não deixava ninguém frequentar a casa. Dizia que era o refúgio dele”, lembra Madalena.
Situações da vida da filha e do genro causavam estranheza à mãe. “Às vezes, ela estava de folga e me pedia para ir ao apartamento, mas dizia que o Paulo tinha levado a chave sem querer.” Mesmo trancada dentro da própria casa, Alana tentava naturalizar a situação. Ocasiões em que Paulo tentava mantê-la dentro de casa, isolada, se repetiam.
Madalena relembra a vez em que a filha ligou pedindo carona, pois o namorado havia levado a chave de seu carro. “O veículo era dela, foi um presente do pai, meu ex-marido.”
Além de se afastar dos amigos, Alana deixou a faculdade. Algo que a mãe só foi saber bem depois. A jovem procurou justificar a saída, disse que o curso não havia atendido às suas expectativas. A realidade era outra, de acordo com Madalena: Paulo havia proibido Alana de frequentar as aulas, que ocorriam no período noturno.
Esse foi o mal da minha filha, não falar
Alana conversava pouco com a mãe sobre o relacionamento. Nos raros comentários, descreveu um namorado ciumento e possessivo, que não gostava de sair em sua companhia. As brigas do casal giravam em torno da vida social de Paulo. Ele queria frequentar bares sozinho, sair com os amigos, mas não aceitava que a namorada fizesse o mesmo, fato que a incomodava.
Madalena começou a perceber que algo não ia bem no relacionamento. “Criei você para escolher o que quer da vida. Não para outra pessoa escolher por você”, disse à filha. Ela, porém, acreditava que o namorado poderia mudar de comportamento, segundo Madalena. Alana evitava conversar sobre a rotina com o namorado. “Esse foi o mal da minha filha, não falar.”
O silêncio é marca comum de relacionamentos abusivos. “É preciso que a mulher se conscientize de que está em uma situação de violência doméstica”, explica a promotora de Justiça Maria Gabriela Prado Manssur, integrante do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid).
Com a violência psicológica, vem a queda na autoestima, diz Gabriela. A mulher passa a oscilar entre momentos de felicidade, violência e muita tristeza. “Ela fica em dúvida. Às vezes, acha que está exagerando e que o parceiro vai mudar. A mulher vai protelando esse pedido de ajuda.”
Falaram que a criança que ela estava esperando não era filha dele. E aí começou o inferno
Ter filhos não estava nos planos de Alana. “Ela não queria, era muito nova, tinha só 25 anos”, conta Madalena. “Mas ele começou a falar na cabeça dela.” Alana engravidou e se casou com Paulo, em mais um movimento repentino no relacionamento. A gestação acabaria sendo mais um motivo de desgaste e desavenças.
Durante a gravidez, Alana trabalhava em uma floricultura e funerária em Poços de Caldas. Cuidava das ornamentações e dos serviços de transporte. A irmã de Paulo trabalhava no mesmo local, em função diferente. Como Alana estava grávida, a empresa contratou um jovem para ajudar Alana com a parte mais pesada do serviço. Os dois ficavam boa parte do dia lado a lado, principalmente nos momentos de transporte, no carro da funerária. A convivência começou a causar burburinho.
Madalena acredita que o amor da filha pelo marido já não era o mesmo. Nas visitas à mãe, a jovem aparentava tristeza. Não era mais comunicativa nem brincalhona como antes. “É como se ela tivesse medo do Paulo. Quando a gente ia falar com ela, Alana olhava para ele. Como se algo que a gente dissesse fosse causar briga entre os dois”, relata.
Nos fins de semana, Alana passou a não atender mais às ligações da mãe. Madalena estranhou, e a jovem acabou explicando o motivo. “Tenho dois celulares, um para trabalhar e outro que ele toma de mim no fim de semana. Durante a semana, falo com você do celular do meu trabalho.” Madalena ouviu o relato com preocupação. Tentou dizer que isso não estava certo. “Ela me contou isso na última vez que nos vimos.”
Tirar a autonomia da mulher é um das ações típicas dos feminicidas. O criminoso precisa sentir que controla, que possui a companheira. “Trata-se a mulher como objeto”, diz a juíza Teresa Cristina Cabral Santana, da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário do Estado de São Paulo.
Eles brigaram, parece que por conta das fofocas, e ela resolveu sair de casa
As fofocas sobre uma possível traição com o colega de trabalho provocaram uma séria briga entre Alana e Paulo. Era um domingo, 2 de julho de 2015. Exausta, ela pegou a filha e seguiu para a casa do pai, também em Poços de Caldas. “Acho que ela não suportou mais aquela pressão toda”, conta Madalena.
Na ocasião, Alana ligou para a mãe e se mostrou decidida a terminar o relacionamento. “Não tem jeito. Tentei de todas as maneiras. É muita briga, ele já não está me respeitando mais.”
O rompimento da relação é um momento crítico para que o feminicídio aconteça, explica a promotora Silvia. Segundo ela, o crime geralmente ocorre quando a mulher tem sua emancipação social ou econômica, subvertendo uma ordem pré-estabelecida. “O contexto mais frequente é quando ela passa a poder mais, deixando o papel muitas vezes esperado por parte de um homem controlador ou quando diz não àquele relacionamento.”
Foram três dias na casa do pai. Na terça-feira, Paulo pediu para fazer uma visita. “Alana me ligou e disse que o marido queria se encontrar com ela. Aconselhei que conversassem em um lugar público. Senti que ela estava correndo perigo”, relata a mãe. No encontro, que acabou ocorrendo na residência do pai, Paulo levou flores e tentou reatar a relação. Alana se mostrou irredutível. Os dois combinaram que ela e a filha voltariam para o apartamento, enquanto o marido ficaria um tempo na casa do pai de Alana.
No dia em que se encontrou com Alana, Paulo chegou a ligar para a sogra e a pedir que ela convencesse a filha a manter a relação. “Ele chorava muito, estava desesperado. Dizia que os dois tinham a criança para criar, mas expliquei que mulher nenhuma fica com homem por conta disso.” Madalena pediu para que o genro desse um tempo para Alana e deixou claro que daria todo o apoio à filha. “Espero que você seja homem o suficiente para respeitar a decisão dela”, disse ao genro, por telefone.
No mesmo dia, Alana comentou com a mãe que estava preocupada com Paulo. O marido disse que iria se suicidar, ateando fogo ao corpo. Ele costumava andar com um galão de combustível no carro por conta das viagens a trabalho. Madalena tentou tranquilizar a filha, aconselhou que ela seguisse com sua vida e perguntou sobre as chaves do apartamento em que o casal morava. “Ele devolveu a cópia da chave, mãe. Está só com a chave da garagem, porque ele vem tirar a moto daqui.”
O que ele fez com a televisão, pode fazer com você. Mas a gente imaginava bater, agredir. Não matar
Na quarta feira, Alana voltou para seu apartamento e Paulo foi para a casa do sogro, como combinado. Às 21h20, ela ligou para a mãe e contou que não dormiria em seu quarto. Estava chateada. Paulo tinha quebrado a televisão do quarto do casal, comprada havia poucos dias. O equipamento estava no chão, estilhaçado. Madalena tentou convencê-la a ir para Campinas, onde estava sua família: “Eu vou te buscar. Você já pensou? O que ele fez com a televisão pode fazer com você”. A mãe tinha medo de que o genro batesse na filha.
Equipamentos quebrados e fotos rasgadas indicam violência doméstica e devem ser observadas pelos policiais durante uma investigação, aponta Maria Laura Canineu, advogada e diretora do escritório Brasil da Human Rights Watch. Ela destaca a importância do treinamento da polícia para identificar a presença da violência contra mulher o mais cedo possível e caracterizar as ocorrências com as motivações do feminicídio.
Durante uma ligação que fez para Madalena na quarta-feira, Alana expressou o desejo de recuperar sua identidade. “A única coisa que eu quero é voltar a ser aquela pessoa que eu era, só isso. Voltar a ser feliz. Aquela pessoa que eu era e não sou mais.” Foi a última frase que a filha disse à mãe.
Alana não acreditava que Paulo poderia partir para uma agressão física. “Pode ficar tranquila, ele não vai fazer nada não”, tentou tranquilizar Madalena. Ela estava preocupada com o marido. Chegou a ligar para a madrasta e o pai de Alana pedindo que levassem alguma comida para Paulo. Foi no momento em que eles deixaram a casa que Paulo pegou o carro e foi para o apartamento da mulher.
“A maioria das mulheres não acredita que vai morrer, pensa que não é tão grave assim. Esse é um discurso muito frequente, de acreditar que grave é aquele caso que sai na mídia, aquele caso terrível que passou na televisão, mas não aquela violência que ela sofre dentro de casa”, explica Silvia. “Ainda existe uma tendência da própria vítima de minimizar aquele episódio de violência e de não acreditar no risco que ela corre.”
Quando chegou à casa de Alana, Paulo abriu a porta da garagem. Da sacada, ela avistou o marido e atendeu ao pedido de descer para pegar a chave que estava com ele. Em frente ao portão, eles começaram a conversar. O celular de Alana tocou. Não se sabe se ela atendeu ou não, mas foi naquele momento que Paulo deu início à discussão. Ele acreditava que o telefonema era do suposto amante de Alana.
Ele diz que agiu num momento de forte emoção
Por volta da meia noite, o telefone tocou na casa de Madalena. Do outro lado da linha, a sobrinha policial pedia que a tia fosse à delegacia, pois havia acontecido uma tragédia. “Fale o que Paulo fez”, perguntou a mãe ao telefone. Por conta dos relatos que ouviu da filha naquela semana, imaginou que o genro tivesse feito algo contra a própria vida. “Tia, só vem pra cá, precisamos de você aqui”, insistiu. Desesperada, já aos prantos, a mãe acordou a filha mais nova e o marido, que imediatamente pegou o telefone para falar com a sobrinha. “Ele falou com ela e provavelmente ela revelou o ocorrido. Quando vi a cara dele e percebi o jeito que ficou, eu falei: ele matou ela, não matou?” Sem rumo, Madalena ligava para o celular da filha. “Eu gritava, filha, me atende. E ela não atendia.”
Alguns minutos depois, Madalena foi para Poços de Caldas. Apesar de não ter nenhuma confirmação da sobrinha, já sabia que Paulo havia matado sua filha. “Eu sabia que ele tinha matado ela, mas a pior coisa foi que eu não sabia que eu não ia poder ver mais a minha filha.”
Quando chegou à delegacia, em Poços de Caldas, encontrou com a sobrinha. “Me leva para ver a minha filha, quero vê-la.” A resposta da sobrinha foi negativa: “Tia, não tem jeito de você ver ela. Ela vai ser enterrada em caixão lacrado.” Madalena se desesperou. “ Ele não matou a minha filha. Ele exterminou ela.”
Edna estava em sua casa quando ouviu um grito de socorro. Ao sair na rua, se deparou com uma outra vizinha, que apontou para uma casa de portão aberto e exclamou: “Tem fogo lá em cima!”. Edna e sua filha entraram na casa e avistaram o corpo de Alana caído no chão, em chamas. A menina lembrou que ela tinha uma bebê e logo correu para procurar a criança. A bebê, de 1 ano e 2 meses, estava dormindo no berço.
“Muitas vezes os filhos testemunham o abuso”, comenta a advogada Maria Laura. De acordo com o Raio-X do Feminicídio: é Possível Prevenir a Morte, estudo feito a partir de dados do Ministério Público do Estado de São Paulo, 1 a cada 4 feminicídios, tem vítimas além da mulher. Dessas vítimas secundárias, 57% são filhos – 43% deles sofrem violência indireta, a que é marcada pelo sofrimento psicológico; os outros 14% sofreram algum ataque no contexto.
Alana foi atacada no corredor que levava aos quartos da casa. Bateu a cabeça no rodapé. Não é certo se ela se arrastou ou foi levada por Paulo até a cozinha. Tendo o porta-facas a seu alcance, ele tirou os utensílios um a um e esfaqueou a mulher quatro vezes. Todas as facas entortaram ou quebraram durante os golpes, de acordo com o relatório da perícia. Em seguida, o marido pegou um galão de álcool, espalhou pelas costas e pela cabeça da mulher, e ateou fogo. Ainda deixou todas as saídas de gás do fogão abertas, o que poderia causar explosão ou morte por asfixia.
Instrumentos “caseiros” como facas, ferramentas, materiais de construção ou as próprias mãos são os mais utilizados em casos de feminicídios (consumados ou não), segundo o estudo Raio-X do Feminicídio. O convívio do agressor com a vítima também é um identificador importante, o que explica a maior incidência de feminicídios na própria casa das vítimas.
Paulo chegou a gritar por socorro. Duas vezes. Em seguida, pegou o carro e fugiu, mas acabou batendo o veículo na cidade de Águas da Prata. Ele ficou preso às ferragens e foi encaminhado a um pronto-socorro em São João da Boa Vista. Pelo rádio, o policial que atendeu a ocorrência ficou sabendo da possibilidade de Paulo ser o autor de um homicídio em Minas Gerais. Questionado, ele confessou que havia esfaqueado e ateado fogo na mulher após uma discussão por ciúmes. Foi preso em flagrante.
“Não, não é motivação de ciúmes. É um crime de poder. Quando o sujeito mata uma mulher porque ela não quer mais ele, não quer mais o relacionamento, ele está dizendo que ele manda naquela mulher. É muito mais grave do que você simplesmente sentir ciúmes de alguém” – promotora Silvia Chakian.
Até aquele momento, o nome de Alana nunca havia aparecido em um boletim de ocorrência. A filha de Madalena não denunciou o marido pelas violências que sofria. “Existe um grupo de mulheres que morre sem nunca ter pedido ajuda, sem nunca ter registrado um boletim de ocorrência”, diz Silvia. Mas também há vítimas que morrem acionando o sistema de Justiça. Em ambos os casos, a promotora afirma que as falhas são do poder público. No primeiro cenário, porque de alguma maneira a mulher não teve acesso à informação e a serviços de proteção. No segundo, por conta da falta de efetividade de decisões judiciais, como a medida protetiva.
A última expressão da violência que Alana sofreu durante anos foi documentada por um registro policial realizado às 6h07 do dia 15 de julho de 2015. O boletim indica o atendimento de denúncia de infrações contra mulher, violência doméstica. A natureza da ocorrência foi descrita como homicídio, e a causa presumida, como passional. Três meses antes, a tipificação de feminicídio havia sido criada pela Lei nº 13.104. No entanto, a referência à qualificadora aparece somente na denúncia apresentada 14 dias depois do crime ao Ministério Público. Segundo o inquérito, Paulo “praticou os crimes contra mulheres, esposa e filha, em razão da condição de sexo feminino, qual seja, violência doméstica e familiar”.
No processo de registro, há duas possibilidades para se considerar o feminicídio, diz a promotora Gabriela. De forma objetiva, por se tratar da morte de uma mulher, ou subjetiva, comprovando que a morte foi decorrente da condição de gênero. Quando se cadastra um boletim de ocorrência como homicídio, a questão subjetiva está sendo aplicada. Mas a promotora afirma que é importante que os óbitos sejam registrados como feminicídios desde o início, para que as investigações sigam por um caminho que avalie o passado do relacionamento da vítima, os históricos de ocorrências e as medidas protetivas, além de sinais de violência.
Para Luz Maria Comanelli de Castro, promotora de Justiça de Poços de Caldas que atuou no caso de Alana, os policiais militares que fizeram o BO talvez ainda não tivessem recebido instruções sobre a lei do feminicídio, aprovada pouco antes. Só em abril de 2016 foram publicadas as Diretrizes Nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres (feminicídios). Segundo Gabriela, o uso das diretrizes é recomendado, mas não obrigatório. A promotora Silvia complementa: “O protocolo foi divulgado, e cada Estado tem de trabalhar para incorporar nas suas instituições”.
Ao trazer orientações para a investigação de crimes de feminicídio no Brasil, o documento aborda não só os pontos que levam até a última expressão da violência contra a mulher, a morte, mas também indica como evitá-la. O protocolo ainda deixa evidente a importância da tipificação do feminicídio e identificação de crimes de tal natureza “para dimensionar o fenômeno das mortes intencionais de mulheres por razões de gênero e tirá-lo da invisibilidade resultante da falta de dados estatísticos”. Segundo a professora de Direito Penal e Direitos Humanos da Fundação Getúlio Vargas Maíra Zapater, há uma relação entre as interpretações sobre as condições do feminicídio, o registro e a investigação desses crimes, e as estatísticas que representam o fenômeno.
Os levantamentos sobre feminicídio no Brasil podem levar em consideração diferentes bancos de dados, mas nenhum deles apresenta uma estatística completa, afirma Leila Posenato, técnica de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “Então, acabamos tendo de montar um quebra-cabeça.” Leila destaca que em todos os casos as estatísticas são alarmantes.
O julgamento do assassinato de Alana ocorreu três anos e meio depois do crime, entre 9 e 22 horas de 30 de outubro de 2018. Foi a primeira vez que Madalena viu o ex-genro depois do crime.
O júri foi composto por seis homens e apenas uma mulher. Cada uma das partes do processo – defesa e acusação – tem direito de recusar três pessoas do tribunal do júri. A defesa optou por vetar três mulheres. “Se tratando de um caso grave que envolve uma mulher e uma criança, se a mulher é mãe, ela vai condenar, porque ela vai se comover com o que está ali. Se for uma feminista ou algo do tipo, a defesa se preocupa com isso. Na nossa estratégia, recusamos as mulheres”, explica Fabiano Viti, advogado que faz parte da defesa de Paulo junto à Karla Felisberto dos Reis e Lucas Gomes Flauzino.
Paulo afirmou que agiu em um momento de forte emoção. No inquérito policial, também consta que ele alegou ter perdido a cabeça. A mãe da vítima diz que, no júri, a defesa de Paulo procurou abordar a questão da suposta traição de Alana, pelo lado moral. A suspeita de traição é algo diretamente relacionado aos aspectos culturais do homem, que se julga no direito de tirar a vida da mulher, aponta a promotora Silvia Chakian.
A argumentação do crime passional tem diminuído, explica a juíza Teresa Cristina. Mas ela acrescenta que, em determinados momentos, a culpabilização da vítima é aceita de maneira sutil. Essa interpretação ocorre muitas vezes quando a questão da moral e da honra são abordadas no tribunal. A promotora de Justiça Gabriela destaca que o Ministério Público não fala em crime passional. “Não aceitamos qualquer relativização da violência contra a mulher ou qualquer tipo de diminuição da culpa do homem que comete crime de violência contra a mulher de forma a justificar a conduta dele.”
O advogado de Paulo diz que a justificativa da traição foi mencionada de maneira genérica no julgamento, em respeito à Alana. “A defesa não entrou a fundo nisso para não denegri-la. Não era esse o ponto que deveria discutir. A vida humana jamais é substituída.” Segundo ele, Paulo já era réu confesso, e o papel da defesa era discutir de forma técnica o procedimento.
A notícia da morte de Alana foi recebida na cidade, que tem pouco mais de 80 mil habitantes, com estranheza, justamente pelo comportamento de Paulo, que sempre havia sido considerado “adequado”. “Eu ouvi de muitas pessoas, principalmente mulheres, frases como: ‘Nossa, que triste o que aconteceu com a sua filha. Mas o que ela fez pra ele fazer isso com ela?’. Eu respondia: ‘E de onde você tirou que a minha filha fez alguma coisa? Isso justificaria?’”, conta Madalena.
Nos casos em que a mulher tem um comportamento tido como “não adequado”, isso é avaliado contra ela, diz a promotora Silvia Chakian. “Ela é muitas vezes transferida do banco de vítima para o banco de réu, e o seu comportamento a sua reputação passam a ser utilizadas como justificativa para aquela violência. Isso ainda acontece, ainda hoje, como se ela não pudesse ser verdadeiramente vítima.”
Segundo Luz Maria, promotora que atuou no caso de Alana, Paulo chegou a comentar que queria manter a família unida, ao justificar o que fez com a suposta traição. A promotora contou ainda que a defesa usou a tese de que o crime foi praticado após a vítima ter provocado Paulo. Uma tentativa de obter redução da pena e eliminar o caráter hediondo do crime. Os jurados, no entanto, não aceitaram a tese.
Paulo foi condenado a 27 anos e 4 meses de prisão. Dezoito são referentes ao homicídio quadruplamente qualificado de Alana – feminicídio, motivo fútil em virtude de desavenças amorosas, emprego de fogo e recurso que impossibilitou a defesa da vítima. O restante diz respeito à tentativa de homicídio da filha, com as mesmas qualificadoras, mas sem reconhecimento da questão do feminicídio. O entendimento do Ministério Público na denúncia, porém, era de que a criança sofreu, sim, uma tentativa de assassinato em um contexto de violência doméstica e em virtude da condição de ser mulher. Segundo a promotora, a alegação da defesa era de que momento nenhum Paulo colocou a filha em risco.
Para a defesa, o assassinato de Alana não se trata de um caso de feminicídio. “O feminicídio está relacionado com violência doméstica. Só que neste caso específico, a defesa não entende que ele (assassinato) vem decorrente dela”, afirma o advogado de Paulo. Segundo ele, a motivação do crime não foi do fato de Alana ser mulher. De acordo com a lei, considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve violência doméstica e familiar, ou discriminação à condição de mulher. “Foi ciúmes, foi uma discussão acalorada entre os dois, e isso gerou a tragédia que aconteceu”, afirma o advogado.
O caso de Alana também causou uma discussão jurídica. Segundo a promotora Luz, o Tribunal de Justiça acatou um recurso apresentado pela defesa de Paulo, que alegou haver incompatibilidade das qualificadoras de motivo fútil e feminicídio, que não poderiam ser usadas simultaneamente. O Ministério Público recorreu, então, ao Supremo Tribunal de Justiça, que entendeu não haver incompatibilidade. A promotora explica que o debate gira em torno da interpretação do feminicídio como qualificadora objetiva, uma circunstância, ou subjetiva, uma motivação. “As decisões do STJ têm apontado que o feminicídio é uma qualificadora objetiva.”
Como se trata de um crime hediondo, Paulo cumprirá 40% da pena em regime fechado. Depois deste período, ocorre a progressão para o semiaberto e, dependendo de onde ele estiver cumprindo pena, pode ir para a prisão domiciliar.
Hoje trabalhando como cabeleireiro na prisão, Paulo participa de um projeto de leitura que ajuda a reduzir os dias de pena. Segundo seu advogado, ele tem uma conduta tranquila. “Quando é crime contra a mulher, o preso costuma ficar isolado dos outros presos, pois há risco. O Paulo não. Ele está no convívio comum”, relata. Paulo também fez artesanato e participou de atividades de ressocialização. “A cada 3 dias trabalhos, 1 dia é abatido da pena.”
Fabiano, que vê Paulo pelo menos 2 vezes por semana, diz que levou um ano para que a ficha do ex-marido de Alana caísse. Segundo o advogado, Paulo planeja, quando sair da prisão, falar com a filha sobre o que aconteceu e “mostrar que ele não é o monstro que todos estão falando”.
“Toda vez que ele vê a foto da Alana, ele chora de arrependimento e tristeza. Da filha, não vou nem comentar. Só de pensar ele chora” – Fabiano Viti, advogado de defesa de Paulo.
Para o advogado, a situação do assassino de Alana é diferente da maioria. “Existem uns presos que são realmente bandidos, têm uma vida voltada para o crime, têm uma índole criminosa. O Paulo era uma pessoa comum, trabalhava bastante. Nenhuma passagem na polícia”. Fabiano considera que o caso de Paulo e Alana foi uma tragédia. “A gente entende que foi um crime passional, foi a primeira tese da defesa. Não é um criminoso, é uma pessoa que cometeu o ilícito penal em decorrência de um nervoso. Fruto de uma tragédia, não de um ato criminoso”, diz.
Depois da condenação, a defesa entrou com um recurso de apelação para discutir pontos relacionados ao plenário do júri. A coexistência da qualificadora do feminicídio com o motivo fútil é um dos pontos. Eles também estão questionando a pena base adotada. “O juiz não partiu da pena base que é 12 a 30, partiu de 15, e não foi considerada a confissão espontânea. É motivo de recurso. Certo exagero na hora de dar a pena. Não teve tanta imparcialidade”, diz o advogado.
A violência continua gerando coisas depois que ela é feita
“Sua filha era igualzinha a você, por isso que ela morreu.” A frase, dita pelo marido de Madalena durante uma discussão, marcou o início de uma mudança. “Quando ele falou isso, eu fiquei questionando várias coisas. O que ele quis dizer? Que ele pode me matar? Ele estava defendendo o que o outro fez?”
O assassinato de Alana deixou em Madalena mais do que dor e saudade. Mudou a forma como ela enxergava a violência contra a mulher, muitas vezes camuflada nos gestos do dia a dia. “O meu segundo casamento acabou. Eu comecei a olhar para o meu marido de outra maneira. Comecei a ouvir as coisas que ele me dizia e analisar de outro jeito.”
Nas ligações em que o marido pedia satisfação do horário de sua volta, Madalena enxergava o controle. Nas críticas à cor do batom que escolhia, enxergava a posse. Ela começou a questionar a própria relação e a não mais pensar que certas atitudes eram naturais. “Coisas que eu aceitava para manter o casamento, passei a não aceitar mais.”
Hoje, Madalena tem para si que, para ser feliz, é preciso se amar. “Se eu me amar, eu vou ser feliz. Custei para descobrir isso. Foi o legado da minha filha. Só comecei a ver isso depois que ela morreu.”
Madalena participa de um grupo de apoio criado pela promotora Gabriela, que reúne pessoas que sofreram violência. Por meio das redes sociais, a mãe de Alana não só conversa sobre questões que envolvem a neta, que ela ficou responsável por criar, mas também reflete sobre diferentes aspectos da violência contra a mulher.
Diariamente tem de lidar com o conflito de querer ser avó, mas precisar ser mãe. “A avó deixa os netos fazerem o que eles querem. Mas eu tenho que ser a mãe, criar como a mãe. Essa é a minha missão”, conta. “Dar o castigo, deixar se frustrar, não deixar fazer o que quer. Preciso formar o caráter dela. E eu não queria isso.”
A menina chama Madalena de “mãe”. Quando vê uma foto de Alana, responde que é a “mamãe Alana” que mora “lá na estrelinha”. O pai, diz Madalena, é um buraco na vida da pequena de apenas 4 anos. “Não mostro as fotos dele. Eu tenho as fotografias porque, quando ela tiver idade para compreender e entender, vai saber que teve uma vida normal. Ela teve tudo. Um pai, uma mãe, carinho, amor. Até esse acontecido.”
Os olhos e o jeito de sorrir da criança trazem certo conforto à avó. Afinal, lembram muito os traços de sua filha. “Eu tenho fotos da Alana pequena, as duas são muito parecidas. É como se eu estivesse criando Alana de novo. Às vezes, chamo a menina de Alana.”
Após ter criado as filhas com liberdade, Madalena agora precisa enfrentar o medo para fazer o mesmo com a neta. “Não consigo deixar ela com ninguém. Não consigo ter paz se ela levantar e for até ali. Eu tenho pavor”, conta. “Não criei a mãe dela amarrada assim, presa. Mas é o medo. Medo que eu tenho de alguém fazer mal para ela como fizeram para minha filha. Medo de ela sumir, desaparecer. Mas sei que eu não posso criar ela presa.” A menina vive uma vida normal com Madalena. Passa tempo integral na escola e, garante a avó, é muito inteligente. “É alegre, feliz. Ela é vida.”